Capítulo II

Aquela que partiu


  Vívian massageou as têmporas e olhou rapidamente para o relógio na parede. Por algum milagre, conseguiu entregar os documentos solicitados por Joshua, mesmo que isso tenha custado seu horário de almoço, e havia conseguido terminar dois terços das pilhas de papéis deixados em sua mesa pela manhã. Como o que restara não era algo urgente, Vívian optou por sair uma hora e quinze após o final do seu expediente, o que comparado com as três horas diárias excedentes era um grande alívio. 

  Quando seus colegas, pontualmente às dezoito horas, guardaram seus pertences apressadamente e saíram da sala na velocidade da luz para que ninguém os recrutasse para as horas extras intermináveis, Vívian começou a guardar suas coisas tentando esconder a ansiedade e a urgência que sentia em sair dali. Para ganhar tempo e evitar ter que dividir a lata de sardinha que o elevador se tornava no final da jornada de trabalho, ela decidiu ir para o térreo descendo os três lances de escada. 

  Ao chegar na calçada, a jovem se permitiu soltar um suspiro aliviado ao constatar que conseguiu sair sem ser arrastada para o trabalho extra e nem recrutada para as reuniões nada seguras e completamente suspeitas que aconteciam pós-expediente com algum cliente V.I.P. Segundo o que Sônia havia lhe dito certa vez, aquelas reuniões serviam apenas de fachada para uma longa noite de bebedeira e prazeres sem amarras de seus superiores, além de ser uma forma nojenta de pressionar algumas funcionários a participarem de tais "reuniões de trabalho".

  — Vívian. — Os pés dela travaram no lugar quando a voz de sua colega de setor chegou aos seus ouvidos. — Quase não consigo sair da reunião de orçamento — a mais velha ralhou fazendo uma careta desgostosa.

  Sônia era subgerente do departamento administrativo, então, quando Joshua Bills não estava na empresa, o que era frequente, era ela quem assumia a responsabilidade de se reunir com os gerentes dos outros departamentos. Havia sido um grande desafio para Sônia conseguir aquele posto, principalmente devido ao preconceito de muitos dos superiores e dos colegas de trabalho que desacreditavam de sua capacidade e de seus conhecimentos simplesmente por ela ser mulher e além disso ter sido estigmatizada como "a pobre mãe solteira da administração" . Em mais de uma situação ela teve que morder a língua para não esfregar na cara de alguns que eles deviam parar de querer desmerecê-la só porque estavam com dor de cotovelo por não fazerem um trabalho bem-feito.

  — Vai direto para casa? — Vívian assentiu sem ânimo. Voltar para seu quitinete abafado e úmido não lhe era nada convidativo. — Então, pegue isso. — Sônia lhe entregou algo embrulhado em jornal. — Estava arrumando algumas coisas velhas e achei que você poderia gostar. 

  Curiosa, Vívian abriu parcialmente o embrulho de jornal e sorriu levemente ao ver o que era.

  — O Imperador de Aldrebrahäm — leu dedilhando cuidadosamente as letras douradas na capa azul petróleo.

  Fazia anos que não pegava em um livro que não fosse didático ou contábil e há mais de uma década não lia algo apenas para seu entretenimento. Na verdade, nem tinha tempo para o entretenimento em sua rotina corrida e em sua lista de preocupações constantes, sem falar na falta de orçamento.

  — Pra mim, é um livro de aventura meio fraco e de romance sem graça, mas serve para relaxar e passar o tempo. — Sônia deu de ombros. — Minha filha adorou, na verdade.

  — Obrigada — disse sorrindo sincera e encarando agradecida a outra mulher, que fez um floreio com a mão e saiu do prédio se despedindo brevemente.

  Vívian não sabia bem se podia considerar o que tinham uma amizade segura, porque todo o contato que tinham se limitava ao trabalho, mas sabia que Sônia se preocupava consigo e tentava ajudá-la de sua própria forma. E era extremamente grata por isso.


  Às vinte horas, Vívian adentrou o quitinete e inspirou profundamente, se arrependendo logo em seguida quando seu nariz começou a coçar em sinal de uma crise sucessiva de espirros devido ao mofo. Rapidamente, abriu a pequena janela e deixou o ambiente ventilar, mesmo que isso significasse deixar o leve odor de fumaça, que permanecia no ar mesmo quando o expediente nas fábricas do bairro encerrava.

  Ela jogou a bolsa sobre o balcão da cozinha e foi para o banheiro. Tentou ligar o chuveiro, mas aquele era um dos dias que ele havia decidido não funcionar. Então, teria que encher a pia e tirar a água dela com um copo para conseguir se banhar. Pensando seriamente em adiar o banho para o dia seguinte, Vívian iniciou todo aquele cansativo processo antes que o cansaço lhe vencesse. Entretanto, nada estava ao seu favor.

  Talvez devido a parede mofada ou ao suporte desgastado, a pia despencou se partindo em inúmeros pedaços pelo ladrilho do banheiro e molhando o chão e os sapatos da jovem. Uma onda de sentimentos a atingiu, mas Vívian engoliu o bolo que ameaçava subir por sua garganta e fechou os olhos respirando profundamente. Ela tentava não se deixar dominar por todos aqueles sentimentos que não conseguia compreender, porém, parecia que o buraco em seu peito havia aumentado e ela não conseguiu controlar as lágrimas que mancharam sua face e nem conseguiu impedir que seu corpo desabasse no chão do banheiro, enquanto ela abraçava a si mesma e tentava sufocar o grito entalado em sua garganta.

  Após algum tempo, ela conseguiu controlar as lágrimas e se forçou a ficar de pé, mesmo que todos os seus membros estivessem rígidos e que seu corpo desejasse se encolher. Vívian foi até a cozinha a passos arrastados e encheu um balde na pia para tomar um banho rápido. Dessa vez, ela conseguiu atingir seu objetivo sem mais percalços.

  Quando enfim se deitou no colchão duro de sua cama, ela pensou que se entregaria rapidamente ao sono, mas sua mente agitada parecia ter outros planos para si, planos que incluíam passar a madrugada rolando de um lado para o outro na cama. Suspirando frustrada, ela foi até a cozinha comer algumas bolachas de água e sal e um copo de leite para ver se relaxava, mas não pareceu adiantar muito.

  Enquanto se apoiava no balcão da cozinha e devorava a última bolacha, seus olhos foram capturados pelo embrulho de jornal sobre a sua bolsa. Ela trocou o peso de um pé para o outro ponderando se começar a ler um livro aquela hora poderia lhe ajudar a relaxar ou só colaboraria para que se atrasasse mais do que o de costume no dia seguinte, pois sempre que lia e ficava imersa em uma história, não conseguia largá-la até terminar a última página. 

  Decidindo que já era uma adulta que sabia se controlar o suficiente, pegou o embrulho e marchou para o quarto. Achando uma posição confortável na cama, ela enfim abriu o livro e o folheou rapidamente para entender do que se tratava a história e imediatamente sua atenção foi capturada. A história tinha como personagem principal o príncipe herdeiro Wolfram H. Aldrebrahäm e acompanhava sua sangrenta trajetória ao posto de imperador, pois mesmo que o antigo imperador houvesse nomeado o primeiro filho como herdeiro, muitas facções da nobreza tinham seus próprios candidatos e desejavam desesperadamente a morte de Wolfram para chegarem até o trono.

  — Vai ser só um capítulo — Vívian disse para si mesma. — Só um capítulo e eu vou dormir. — Ela mordeu o lábio inferior. 

  Sabia que aquilo era uma mentira deslavada, pois, raramente, quem dizia ler apenas um capítulo, lia realmente apenas um capítulo. Quando sua mente encontra-se imersa nas palavras e seu coração ressoa com os sentimentos descritos a cada página, deixar uma história de lado e voltar ao mundo real enquanto não a conclui se torna um desafio terrivelmente difícil.  E, quando menos se espera lá se foram dois, seis, doze capítulos. Com Vívian, isso não foi diferente.


  — Não acredito que a história termina assim — falou desacreditada. — Como assim tudo se resolveu com a execução dos envolvidos no golpe de Estado? E o casamento do Wolfram? Ele vai mesmo ficar com aquela oportunista? E o Império de Azuryus? Como vai ficar a relação de Aldrebrahäm com eles?

  Vívian estava no mínimo inconformada. Haviam tantas pontas soltas e tramas mal resolvidas que não acreditava que a história de Wolfram terminasse daquela forma tão insossa e fantasiosa. Ela acreditava piamente que deveriam ter dado a ele um final mais digno depois de tudo o que Wolfram teve que enfrentar para sobreviver a guerra pelo trono desde que era apenas um bebê aprendendo a dar os primeiros passos. Contudo, infelizmente, quem escreveu aquela história parecia ter ficado satisfeito com aquele final meia boca.

  — Isso é frustrante — a jovem disse se espreguiçando e só então percebeu que em algum momento da leitura havia se deitado. — Não acredito que o Wolf terminou assim. — Bocejou fechando os olhos e se acomodando melhor no colchão. — Se fosse eu, não deixaria que ele ficasse com aquela sonsa e nem permitiria que a relação com Azuryus chegasse a pontos tão extremos. — Se aninhou melhor entre os lençóis.

  Ela estava pronta para adentrar o mundo dos sonhos, mas, o barulho da sirene que anunciava o início de mais um turno na fábrica despertou todos os seus sentidos de supetão, pois aquilo só acontecia quando ela já estava dentro do ônibus a caminho do terminal, ou seja, estava terrível e inegavelmente atrasada.

  Uma tontura súbita a atingiu quando ela levantou de supetão, o que a forçou a se sentar no colchão e fechar os olhos até tudo parar de girar. Respirando fundo, Vívian firmou os pés no chão e trocou de roupa apressadamente. Ao passar pela cozinha, pegou sua bolsa e as chaves e saiu aos tropeços do quitinete. A jovem correu como se um maratonista que estava a poucos passos de obter alguma medalha importante, mas já havia perdido até mesmo o segundo ônibus que passava em direção ao terminal.

  Vívian esperou impacientemente o próximo ônibus e, quando ele apareceu, o adentrou como um furacão. No terminal a situação não foi muito diferente. O que complicou ainda mais a sua situação foi o horário que o terceiro ônibus que precisava pegar passava, era dali a uma hora e ela não tinha esse tempo sobrando. Então, vendo que o limite de seus atrasos de meia hora já estava quase sendo batido, ela pegou outro ônibus que parava alguns quarteirões mais longe de onde trabalhava, mas que passava naquele exato momento. Teria que correr seis quarteirões tão rápido quanto um corredor profissional, mas, pelo menos, não se atrasaria tanto.

  Quando a jovem desceu do ônibus, apertou a bolsa contra o seu corpo e começou a correr. No segundo quarteirão, seus pés já ardiam devido ao desconforto daqueles sapatos que de forma alguma havia sido feitos para correr. No final do terceiro, a tontura de mais cedo estava começando a voltar, mas ela piscou algumas vezes tentando espantar o mal-estar. O problema aconteceu justamente quando ia do quarto ao quinto quarteirão.

  Ao começar a cruzar a rua em meio ao caos do trânsito daquele horário, a tontura piorou a níveis exorbitantes e ela sentiu como se estivesse em um navio em alto mar, sem conseguir fazer suas pernas seguirem em linha reta. E, como naquele horário, todos estavam apressados e loucos para chegar em seu destino, não era incomum que os veículos estivessem em uma velocidade além da permitida e costurassem o trânsito como se estivessem em alguma corrida desesperada.

  — Cuidado! — alguém em algum lugar gritou no momento em que uma buzina estridente entorpeceu ainda mais os sentidos de Vívian, que só conseguiu ver pelo canto dos olhos um vulto embaçado enquanto seu corpo era arremessado.

  Em meio ao torpor, sua mente não conseguiu processor as imagens que passavam ou o turbilhão de sons que ouvia, mas, de uma coisa tinha completa certeza, não sairia viva dali. E, sabe aquela história de que sua vida passa como um filme em frente aos seus olhos no momento de sua morte, bem, aquilo era uma mentira ou talvez, Vívian só não tivesse realmente vivido para ter o que ver em seus momentos finais.

  Quando sentiu o impacto de seu corpo com algo duro que julgou ser o asfalto, ela quis rir do seu infeliz infortúnio, mas cada fibra do seu corpo doía e sua consciência se desvanecia. 

  Em meio a imagens borrosas, sons desconexos e o cheiro forte de ferro, seu corpo pareceu flutuar em um mar profundo e subitamente silencioso e ela teve a impressão de ouvir uma voz longínqua suplicar:

  — Proteja o meu bebê.


Olá, docinhos.

Surpresos com o destino de Vívian ou já esperavam por isso?

Espero que estejam gostando e que continuem acompanhando 

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