Capítulo 3 - O Buraco Negro
— Come on, baby don't you wanna go back from the land of California to my sweet home Chicago?! — Cantava Esmeralda, tocando os acordes no violão com a maior energia.
Uma coisa divertida na sua família era que todos adoravam música. Ninguém era músico por profissão, mas não diminuía o fato de que, para eles, um dia sem música era um dia desperdiçado.
Esmeralda fechou os olhos por alguns segundos enquanto cantava quase aos gritos e tentava fazer uma dança desengonçada com o seu tronco. Estava sentada nos pés de sua cama com os seus próprios cruzados um sobre o outro.
Até que pensou ter ouvido alguma coisa. Um estalo.
Parou e olhou ao redor procurando pelo que poderia ter feito o som. Não levou muito tempo até a surpresa.
— Poxa vida, não pare por minha causa! — Era aquela mesma voz falando novamente de trás dela, mas dessa vez não houve susto. Esmeralda virou-se e encontrou a mulher platinada sentada sobre sua cama. — Eu estava adorando.
— É, eu aposto que sim. — Respondeu a menina com um leve tom de desdém. Levantou-se e começou a guardar seu instrumento. Não sabia exatamente o que sentia. Era um misto de curiosidade com raiva bem complicado. Havia semanas que o encontro delas na praça acontecera. — Uma estranha me aborda num banco de praça, tem uma conversa sem pé nem cabeça comigo, demonstra me conhecer e some no ar. Aí eu gasto tempo e energia procurando por ela pelo parque inteiro, porque né, foi totalmente estranho esse encontro inusitado e não acho. Procuro por toda a internet e lá ela não existe. Até que enfim eu desisto. — Sofia volta e ergue o indicador em riste na direção de Sofia. Agora estava com raiva e falava entre dentes. — Aí você aparece aqui do nada, invade o meu quarto, e quer falar comigo como se nada estivesse acontecendo? O que tem de errado com você?
Sofia mordiscou os lábios carnudos e vermelhos. Sorrira quando a menina a vira, mas agora começava a adquirir um tom mais sério. Arrumou sua postura e, por fim, anunciou:
— Você tem uma escolha a fazer agora. E, apesar de ter que escolher em minutos, ela é muito importante, então pense bem antes de fazer alguma coisa.
Esmeralda fuzilou a mulher com o olhar. Ela ainda tinha a audácia de levantar mais perguntas e não prover nenhuma resposta. Falou num tom baixo, mas evidentemente com a raiva crescendo dentro de si:
— Você não acha que antes de me pedir alguma coisa você me deve algumas explicações? — Sofia baixou os olhos. Esmeralda respirou fundo, contendo-se, e sentou-se ao lado. Procurou os olhos da outra com os seus. Pela primeira vez percebia que os dela eram tão claros que chegavam a ser violeta e viu, no olhar da moça, compreensão, o que fez com que ela voltasse a falar num tom levemente mais brando. — Você apareceu do nada, mostrou me conhecer e sumiu de repente. Agora, depois de meses, brota no meu quarto e me demanda uma escolha. — Esmeralda explicou de novo o seu lado, dessa vez com um pouquinho mais de calma. — Quem é você? Como você me conhece?
Sofia ergueu os olhos e encontrou os esverdeados da garota. Sentiu as bochechas enrubescerem levemente. Sabia que iria pedir demais, mas não tinha escolha. Apoiadas no colchão, Sofia segurou uma das mãos da menina.
— Olha, eu sei que eu estou pedindo demais pra você, mas você vai ter que confiar em mim. Eu sou Sofia. De onde eu venho, as pessoas fazem jus ao seu nome. De onde eu venho, traição é crime. Eu sou Sabedoria. Você não sabe, mas você vem do mesmo lugar que eu. E nós precisamos de você conosco agora. Você não lembra, mas veio pra cá pra fugir de tudo isso, então... Eu não pediria se não fosse a nossa última opção.
Esmeralda recuou de imediato movida não só pela raiva que sentia, mas também pelo fato de que o toque da pele de Sofia na sua lhe pareceu familiar. Aos poucos, o sentimento que ardia dentro de seu corpo foi sendo substituído pela incerteza.
Sofia também tinha dúvida se falava mais alguma coisa ou deixava seu olhar agir sobre a outra. O momento de incerteza que pairou sobre o quarto foi tão intenso que, num dado momento, crente de que a menina não aceitaria, seus olhos marejaram. Esmeralda viu aquilo.
— Como eu posso ser de outro lugar? Eu nasci aqui. Eu tenho fotos desde bebê. Essa é minha família, meus amigos, meu... — ela não soube exatamente porque disse isso, mas a palavra só saiu — meu mundo.
— O seu mundo sim, mas não o do seu espírito. Você nunca se perguntou se a vida era realmente só esse ciclo: nascer, crescer, se reproduzir e morrer? Qual seria o sentido, então, de viver sempre sob certos preceitos? De fazer bem para os outros e não saber que deixou sua marca no mundo? Pra que fazer bem se o fim será sempre o mesmo para todos?
— Essa é uma colocação bem egoísta. Se eu faço bem para os outros não é para me sentir bem e sim pra que eles se sintam assim.
— Bom... Então você é a pessoa mais altruísta do mundo. E eu respeito isso, de verdade, mas infelizmente não é assim que a maioria das pessoas se comporta.
— Minha mãe já dizia que eu não sou todo mundo, né? Então, sua colocação não se aplica a mim, portanto não me convence.
— Tá bom, então vamos pensar por outro lado. Você nunca imaginou porque você é a única pessoa no mundo que tem o cabelo naturalmente verde?
Aquela pegou Esmeralda de surpresa e ela demonstrou seu desconcerto quando piscou e deixou a boca entreabrir. Claro que ela já havia se perguntado. Ninguém nunca entendeu como ela nascera com o cabelo naquela cor. Seus pais sofreram bastante represália por "pintarem o cabelo de um bebê". Eles nunca entenderam, nem Esmeralda, nem os médicos. As pontas de seus dedos enrolaram de leve as pontas de uma mecha de ser cabelo, distraidamente. Sofia deixou as extremidades de seus lábios se erguerem um pouquinho quando viu que ali ela tinha pego a garota.
— É uma marca unicamente sua. Meu cabelo também é naturalmente branco. Existem outras pessoas assim no lugar de onde viemos. — Ela fez uma pausa e tomou a liberdade de apoiar uma das mãos exatamente no meio delas, curvando seu tronco um pouco na direção de Esmeralda. Tomou a liberdade de se aproximar um pouco, mas sem que a garota visse necessidade de se retrair novamente caso quisesse. — Esmeralda, você precisa entender... Você é uma das mais fortes de nós. Eu juro que vou te explicar tudo quando chegarmos lá, mas até lá você precisa saber que há uma guerra acontecendo e nós precisamos da sua ajuda para ganhar. Tem uma batalha importante se aproximando e nós não podemos perdê-la.
— O que acontece se vocês perderem?
Sofia engoliu em seco. Se sentia desconfortável só de pensar nessa possibilidade.
— Muitos dos nossos amigos vão morrer e esse mundo em que você vive, esse plano, estará mais perto de sucumbir.
— Mais perto? — Esmeralda soltou uma risadinha. — Sofia, você é sabedoria e não sabe que a Terra entrou num buraco negro do qual a gente só pode ter a esperança de que ela saia?
Sofia suspirou sentindo um pouquinho mais o peso que aquela derrota teria.
— Eu sei e a esperança da Terra agora é você.
— Não. Eu tenho 17 anos. Você não pode botar esse peso nas minhas costas e achar que eu vou aceitar tranquilamente.
— Eu não faria isso. — Agora Sofia prendeu a mão de Esmeralda entre as suas e obrigou os olhos esverdeados da outra a encararem os seus violeta. — É por isso que você não estará sozinha. Nós precisamos que você some com a gente. Eu nunca deixaria você sozinha, Esmeralda.
De novo aquela sensação de familiaridade, mas dessa vez Esmeralda não tirou sua mão. Encarou os olhos da outra e sentiu confiança. Dizem que os olhos são a porta para a alma e o encontro delas agora dizia a Esme que Sofia não estava mentindo nem um pouco. Esmeralda suspirou.
— Eu pego roupa de verão ou de inverno?
Sofia sorriu abertamente. Seus olhos antes marejados instantaneamente normalizaram. Ela soltou uma risada leve por conta da pergunta da menina e afrouxou o aperto na mão dela.
— Pra onde vamos você não precisa se preocupar com isso. Você tem roupas lá. A única coisa que você precisa é avisar a sua família que não vai estar em casa por algum tempo.
— Quanto tempo?
— No mínimo alguns meses.
Esmeralda sentiu o peito pesar um pouco. Pensou nos seus pais, no seu irmão mais novo...
— Eu preciso de um tempo para me despedir, então.
— Meia noite eu volto.
***
Esmeralda arrumou todo o seu quarto com carinho, pensando em tudo o que tocava. Não sabia quando veria aquele ambiente novamente. Quando finalmente terminou, foi passar algum tempo com a sua família. Ficou com eles até que caíssem no sono. Não teve coragem de contar que aquilo era, na verdade, uma despedida por tempo determinado. Afinal esse tempo poderia significar anos, décadas talvez. Ela não fazia a menor ideia.
Quando a lua já estava alta no céu, Esmeralda voltou ao seu quarto e escreveu um bilhete. Escreveu que não se preocupassem, ela estaria bem e a salvo, e se precisasse contataria eles. Escreveu que, de qualquer forma, voltaria logo para a casa. Prendeu o bilhete a porta de seu quarto e caminhou até a janela.
Contemplou a natureza por algum tempo. Do lado de fora de seu quarto uma árvore frondosa servia de ar condicionado natural nos dias de verão. Estava pronta, agora só faltava Sofia chegar. Quando ela chegou, debruçou-se sobre o parapeito da janela ao lado da garota.
— A natureza nos dá muito poder. Nós canalizamos energia dela. Nesse plano, o que se sente é muito pouco, mas você vai ver do que eu estou falando quando chegarmos em casa.
"Em casa"? Esmeralda estava deixando a sua casa para ir a da outra. Lhe incomodava um pouco que a outra falasse como se ela também estivesse indo para a casa. Por isso, olhou para a moça de esguelha. A energia da natureza ela sempre sentira. Tinha a impressão de que, se sentisse mais, transbordaria. Algumas coisas não são feitas para um corpo físico suportar.
Sofia e Esmeralda deram-se as mãos.
— Estou pronta.
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