passado de Eduardo

"Olá, meu nome é Eduardo, sou um intersexo negro com mais características masculinas. Você não sabe o que é um intersexo? Não te culpo por não saber, somos a minoria da população. Intersexo é a pessoa que nasceu com os dois sexos, porém ela tem mais características de um deles, e o meu é o masculino.

Meu pai biológico é um homem muito conservador, e não aceitou eu ser uma pessoa sem sexo, eu vivia vendo a minha mãe sendo agredida na minha frente, pois para ele, a culpa de ter nascido assim é dela.

Teve um dia que o meu pai voltou para casa muito embriagado, minha mãe discutiu com ele por ter chego tarde em casa e daquela maneira. Eles brigaram daquela vez, só que diferente dos dias anteriores, meu pai enfiou uma faca no estômago da minha mãe, e perto do leito de morte dela, a mesma tinha me pedido para fugir.

Ela sempre soube que eu via as brigas deles às escondidas – quando o meu pai não me obrigava a ver – segui o conselho dela naquele mesmo segundo, eu ainda era criança, mas corri o mais longe de casa possível, até onde as minhas pernas aguentaram, antes das mesmas enfraquecerem e me fazerem cair de joelhos no chão.

Passei alguns dias morando na rua, sofri do frio e da fome, da falta de conforto que tinha em casa, até que uma mulher, da mesma cor que a minha, me levou até a sua humilde residência para poder morar com ela e com o seu marido.

Eles me matricularam pela primeira vez em uma escola, na minha cabeça ingênua de criança, imaginava que lá eu conheceria pessoas parecidas comigo, e que poderia fazer diversos amigos.

Na escola os mais velhos implicavam comigo, chamavam-me de aberração, estragavam minhas roupas e faziam-me vestir peças femininas, me agrediam, cuspiam no meu rosto, chamavam-me de nomes impróprios ou outros adjetivos chulos. Foram as diversas vezes que voltei para casa péssimo...

Por conta disso, sofri de depressão, fazia cortes no meu pulso. Por que eles faziam tudo aquilo comigo? Só por eu ser negro? Só por eu ser um intersexo? Isso não devia ser um motivo, quase morri de overdose, porém meus pais adotivos me encontraram convulsionando no meio da casa, me levaram ao hospital e fizeram tratamento comigo pelo SUS.

Meus pais adotivos não podiam fazer muita coisa em relação ao colégio, a gente tinha pouco dinheiro em casa, até mesmo para poder nos alimentar. Eles diziam que eu devia agradecer por poder estudar em uma escola, assim teria chance de ser alguém melhor e sair da periferia que vivia.

Aprendi com eles que devia saber me defender, e que devia estudar bastante para conseguir ter uma vida melhor do que aquela. Me interessei muito em ler, frequentava bastante as bibliotecas, com o tempo, os mais velhos me ameaçavam de me agredir caso não fizesse as tarefas deles, ou passasse a cola das provas.

Eu era um dos melhores alunos da classe, mas não era só os alunos que me atormentavam, os professores eram mais severos comigo quando iam corrigir uma prova minha, ou até mesmo quando cometia um pequeno erro.

Quando me tornei adolescente, fui logo a procura de um emprego de meio período, me tornei lixeiro de uma empresa, e com bastante dificuldade, consegui convencer eles a me contratarem.

Eu ajudava nas contas de casa, quando sobrava algum dinheiro comprava alguma coisa do meu interesse, nas poucas lojas que me deixavam entrar, e não me tratavam diferente por causa da minha cor.

Quando terminei o ensino médio, fiz concurso para entrar em uma faculdade pública, fiz faculdade de administração – por conta da empresa que trabalhava – tinha esperança de que com o meu bom desempenho, conseguiria ser promovido lá.

No fim da faculdade, consegui meu emprego na área da administração. Mesmo querendo cursar letras e ser um escritor, não podia fazer isso. Minha paixão por literatura é grande, entretanto, não podia deixar de fazer algo que me rendesse dinheiro para tentar cursar algo que amo.

Alguns anos depois, a empresa mudou de administração, meu novo chefe era preconceituoso e assim que me viu, me despediu do meu emprego.

A minha sorte era que eu já tinha um dinheiro guardado, felizmente meu antigo chefe me compreendia e entendia algumas das diversas coisas que eu passei.

Já fui chutado no meio do metro, não pude entrar em algumas lojas que eu queria, alguns me desrespeitavam só por ser quem sou, já outros, me contavam situações parecidas que já passaram na vida.

Eu guardava boa parte do meu salário em uma conta poupança, vivia somente com o necessário, uma casa em um bairro bom e seguro, perto do comércio e do transporte público.

Depois que fui despedido, comecei a frequentar uma psicóloga, ela me aconselhou a escrever todas as minhas frustrações em um caderno. E foi assim que decidi começar a escrever o meu livro.

Eu fazia a mesma rotina de sempre quando saia de casa, tomava meu café da manhã na cafeteria, saía para observar as pessoas e às vezes obter inspiração.

Uma vez, conheci um cego em uma praça, contei a ele que planejava criar o meu livro, fiquei muito triste por ele não poder ler obras maravilhosas de autores negros, desconfortável por um comentário que eu tinha feito a ele sem saber da sua condição desde nascença, e feliz pois compartilhamos algumas das nossas histórias de vida.

Também conheci um homem, ele era professor de literatura, apaixonado pela leitura, mas infelizmente ele não teve contato com a literatura negra. Viramos melhores amigos, e ele foi uma das pessoas que mais me apoiaram a fazer meu livro.

[...]

Para meus pais adotivos, obrigada que mesmo pela sua rigidez, vocês me mostraram que eu poderia ter um futuro melhor do que aquele na periferia.

Para o meu amigo cego, obrigado por compartilhar suas experiências de vida comigo, me desculpa por ter dito para você olhar para mim, e  vou publicar este livro em braile para você poder ler também.

Para o meu antigo chefe de trabalho, obrigada por ter me promovido, obrigada por aceitar todos os dias que cheguei atrasado, obrigada por ser meu amigo e me ajudar sempre quando precisei.

Para o meu amigo professor, obrigado por sempre estar comigo em todos os momentos, obrigado por me ajudar nas vezes que eu estava mais abalado, obrigado por sempre estar curioso e querer saber mais sobre a literatura.

Para minha mãe biológica, obrigada por sempre me proteger o máximo que pode, por todas as vezes que o seu marido tentava me agredir você apanhava por mim, obrigada por estar ao meu lado até o último momento que você estava viva.

Para os meus professores, alunos mais velhos, meu pai biológico, antigo chefe e todos os outros que tentaram me prejudicar de alguma forma, obrigado por me mostrar que o mundo não é perfeito, que eu deveria ser forte para poder lutar contra pessoas como vocês, espero que um dia mudem sua perspectiva de vida, mas obrigado por me fazerem querer lutar pelos meus direitos, e ter uma vida normal assim como vocês.

Para todos que me apoiaram, fizeram parte do meu livro, me aconselharam, apoiaram, participaram da minha vida, obrigada a vocês também, pois se não fosse por vocês, eu não seria quem eu sou hoje."

— Então é tudo isso que aconteceu com você? Que te incomodou? — Perguntou a psicóloga que não via seu paciente a alguns anos. — Fico feliz por você ter usado o meu conselho para publicar o seu livro, mas porque veio até aqui fora do meu consultório? Não quer marcar uma seção?

— A verdade é que eu já vivi tudo o que eu tinha para viver — disse o homem de quase quarenta anos — já publiquei meu livro, mudei o pensamento de muitas pessoas, fiquei famoso, tive uma família, viajei pelo mundo... Porém mesmo assim continuo sendo humilhado e destratado... Eu não ligo mais para isso, já se tornou comum, sempre alguma pessoa vai fazer mal a mim só por eu ser negro ou intersexo. Só queria dizer que esse é o meu último dia de vida, e eu queria te dar o meu livro antes de partir. — E assim saiu da cafeteria que sempre frequentou, deixando a psicóloga estática pois não sabia dizer se a sua depressão tinha voltado, ou ele estava somente doente.

Naquele mesmo dia, Francisco da Silva, anêmico por conta dos poucos alimentos que consumia, e depressivo pois ele devia fazer aquilo que mandaram, se não algo pior aconteceria com quem ele amava – aquele homem tinha todas as informações sobre si mesmo e seus amigos – Eduardo foi até um metrô e se jogou no meio dos trilhos, e assim ele pode finalmente viver em paz.

Eduardo Francisco da Silva – 38 anos
(1999 – 2037)
Sentiremos a sua falta!

Para quem não entendeu, o Eduardo foi encontrar a psicóloga que tinha aconselhado o mesmo a escrever todas as frustrações no seu livro, e depois ele teve que convencer ela que estava com alguma coisa diferente do normal.

Eduardo fez isso pois estava sendo ameaçado por um homem, e ele tinha todas as informações contra o Eduardo e todas as pessoas que ama. Sem chance de escolha, o Francisco da Silva fez o que aquele cara tinha o mandado, se suicidar.

>> Lembrando, suicídio não é a sua única escolha, se você está sofrendo por alguma coisa, ou não está se sentindo bem. Consulte algum médico especializado como um psicólogo!!! <<

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