Prólogo

Medíocre, era assim que Zoe costumava definir sua vida. Em suas considerações não era inteligente, mas também não era burra, o que a tornava medíocre, não era feia, mas também não se considerava uma beldade, podia se dizer que ela tinha uma beleza... medíocre, mas poderia ser pior. Claro que a vida seria mais fácil com alguns milhões na conta, mas ela tinha tudo o que uma jovem órfã podia desejar, uma casa suburbana repleta de amor e felicidade, pais que acompanharam cada passo da sua vida e sempre a apoiaram e irmãos que a protegeriam de todas as adversidades da vida. Cada pequeno cômodo daquela casa tinha uma boa memória, desde os batentes da porta marcados com o tamanho dela e do irmão quando crianças e agora de Emma ou a parede atrás do sofá riscada de giz verde que sua mãe nunca fez questão de apagar. Ela sorriu amargurada enquanto encarava o seu quarto, seria doloroso despedir-se daquela casa.

Seus olhos agora estavam fixos no seu reflexo no espelho, as olheiras em seus olhos deixavam claro o seu cansaço, os últimos meses não vinham sendo fáceis para ela. Suspirou enquanto ajeitava seus cachos para caber na droga do boné que não continha seu cabelo volumoso, simplesmente detestava todo aquele uniforme. O conjunto era detestável e acabava com sua autoestima — que já não era das melhores em certos dias. A calça verde deixava seus tornozelos a mostra, a blusa cinza tinha uma pequena mancha de glacê que ela não tivera tempo de limpar e no peito uma rosquinha estilo Homer Simpsons bordada, mas o boné certamente era a parte que ela mais detestava, ele não era nada mais nada menos do que um grande farol verde com uma grande rosquinha meio mordida bordada no centro.

Bufou irritada enquanto juntava as coisas importantes espalhadas pelo quarto e jogava na mochila, estava atrasada e detestaria ter que ouvir o sermão do velho Harrison sobre responsabilidade e compromisso. Saiu do quarto apressada esbarrando em alguns móveis e murmurando impropérios quando torceu o pé. Parou um segundo na porta entreaberta do quarto de Emma — um verdadeiro quarto de princesa, pensou ela. Aquele cômodo era mergulhado em uma imensidão de tons de rosa e posters de princesas e príncipes por quem Emma, sua irmã mais nova, era apaixonada. A dona do quarto ressonava tranquilamente na cama aproveitando seu dia de folga graças ao feriado real. Zoe invejou o sono tranquilo da irmã já que ela tinha dormido apenas quatro horas naquela noite.

Saiu apressada em direção a sala quando mais uma vez seu celular vibrou tentando alertá-la das horas, mas assustou-se ao ver a mãe sentada no sofá. A palidez em seu rosto assustou Zoe, as profundas olheiras indicavam que a sua noite de sono também não fora boa e que ela estava cansada e talvez com alguma dor. Seu coração se retorceu dentro do seu peito com a visão de sua mãe tão fragilizada.

— Mãe? — Chamou em um tom suave.

— Bom dia querida, não vi que estava aí. — Disse tratando de disfarçar sua situação com um doce sorriso nos lábios assim que se deu conta da presença da filha.

Zoe sorriu de volta. Conhecia a mãe bem o suficiente para saber que ela estava assustada. Era doloroso vê-la lutando com tantas forças para não preocupar os filhos, mas ela sabia que a mãe estava em dor e que o tempo estava chegando ao fim. A jovem olhou para os remédios intactos sobre a mesinha de centro e apressou-se em buscar um copo de água na cozinha.

— Você não pode perder o horário dos remédios mãe. — Murmurou estendendo os comprimidos para a mais que sorriu fragilizada.

Ela suspirou pegando os comprimidos da mão da filha.

— Querida... são tão caros, talvez eu pudesse tomar menos. — Murmurou sem muita força. — Sei que você e seu irmão estão dando duro, pegando turnos seguidos e virando a noite, vejo que estão cansados!

Zoe aproximou-se da mãe e espalmou a mão no rosto dela, suspirando pesadamente quando sentiu a pele fria em contato com a palma de sua mão, mas dispersou as as lágrimas o suficiente para abrir um pequeno sorriso encorajador para a mais velha.

— Somos fortes mãe. Conseguimos aguentar até vencermos isso. — Disse de forma suave acariciando a bochecha dela.

O silêncio que instaurou-se no ambiente era desconfortável, cheio de palavras não ditas, mas que não precisavam ser verbalizadas para serem compreendidas — Talvez aquela luta não pudesse ser vencida, era essa a verdade que Zoe não queria assumir, mas que os olhos de sua mãe contavam de forma melancólica.

O celular vibrou em seu bolso novamente e ela bufou irritada.

— Mamãe eu preciso ir, estou atrasada. — Disse levantando-se, mas curvou-se ligeiramente para deixar um beijo nos cabelos ralos da mãe. — Tome seus remédios, por favor. Não posso trabalhar me preocupando com a senhora.

Dandara sorriu ao levar a mão na testa em um sinal de continência e logo em seguida engolindo os comprimidos com um gole de água e um sorriso doce.

Lembrar-se daquele dia era doloroso, e por mais que Zoe tentasse esquecê-lo, o sorriso de sua mãe sempre invadia suas memórias trazendo consigo a angústia de saber que ela nunca mais o veria fora de suas memórias. Aquela fora a última vez em que viu o sorriso da mãe. Às vezes, Zoe gostava de pensar na possibilidade de voltar no tempo, se tal dom fosse possível, ela certamente teria ignorado o despertador e o trabalho e teria aproveitado as horas com sua mãe, pois aquelas seriam as últimas. Aquilo sempre a atormentava, talvez se não estivesse tão preocupada com seu atraso pudesse ter notado a aparência frágil, a pele pálida ou a dificuldade dela em respirar, talvez se tivesse a levado para o hospital a mãe ainda estaria viva. Todos aqueles pensamentos a atormentavam com frequência, mas naquele dia em específico pareciam ainda piores. Todas aquelas possibilidades emaranhavam se em sua mente de forma dolorosa onde ela criava dezenas de cenários onde atitudes diferentes resultavam em finais diferentes, porque encarar a realidade era duro demais.

Sua mãe estava morta e nada que fizesse naquele dia mudaria esse fato.

Era sexta-feira, e exatamente a um ano atrás ela recebeu uma ligação do seu irmão de que sua mãe estava morta. Sempre achou que quando recebesse a notícia entraria em colapso e choraria copiosamente até desmaiar, mas não o fez. Quando desligou o telefone serviu uma última rosquinha com um sorriso trêmulo nos lábios, então trancou se no banheiro e ali permaneceu sentada no chão durante uma hora até que alguém deu por sua falta. O velho e sempre rabugento senhor Harrison estava pronto para lhe dar uma sermão, mas quando viu o seu estado catatonico, ele a abraçou e a levou para o hospital e ali permaneceu com ela durante as horas que se seguiram. Ele apertou a mão dela e até mesmo adiantou seu salário para que ela pudesse ajudar o irmão com os gastos do funeral. Desde então ela nutria um carinho pelo velho.

Agora a caminho do seu trabalho seus olhos lutavam contra as lágrimas. Ela pensou que após um ano lidando com toda aquela dor e culpa a fariam mais forte e resistente às lágrimas, mas estava enganada, ainda estava tão suscetível a elas quanto esteve no dia em que sua mãe partiu. A verdade é que Zoe nunca aprendeu a lidar com suas emoções, fora uma garota superprotegida por todos os lados e ninguém a preparou para possíveis perdas que por um acaso vieram a ocorrer em sucessão em sua vida.

Pela primeira vez em muitos meses, Zoe não estava atrasada. Não havia dormido na noite passada e arrumou-se com antecedência desesperada para fugir do clima triste que parecia rondar sua casa nos últimos dias e que certamente estaria pior naquele dia. Ela parou em frente a antiga sorveteria que costumava frequentar com os pais e mesmo que agora o lugar estivesse abandonado e com as janelas quebradas ele ainda lhe fazia lembrar das suas melhores memórias. Sentou-se na calçada vazia e ali permaneceu por longos segundos revivendo os seus dias favoritos na companhia dos pais.

Zoe não podia ser considerada uma pessoa reflexiva ou ponderada, sempre fora dada a excessos e rompantes sejam eles de alegria, angústia ou raiva. Seus pais sempre lhe ensinaram a compartilhar seus sentimentos e canalizá-los de forma saudável — não se considerava um modelo de autocontrole e saúde mental, mas sabia que também não era um caso perdido, mas naquele dia ela estava reflexiva. Seus olhos correram as ruas decoradas com bandeirolas estampadas com o brasão da família real, as faixas em tons de roxo e as bandeiras do país balançavam nos mastros dos estabelecimentos, tudo tão estranhamente parecido com o dia em que sua mãe os deixou.

Ela não procurava por nada em específico, apenas uma distração quando seus olhos pousaram no grande outdoor no topo do prédio. Uma garota com cabelos dourados feito o sol sorria um sorriso de dentes alinhados e lábios rosados, a coroa em sua cabeça parecia brilhar até mesmo naquele papel sujo de poeira e poluição, sua beleza etérea composta de traços angelicais roubou um suspiro que deixou os lábios de Zoe vagarosamente.

O mundo era infernalmente injusto. O valor das roupas que a princesa usava talvez seriam o suficiente para pagar as dívidas médicas que lhe tiraram sua casa. Ela se perguntava como alguém podia dormir em paz sob milhares de dólares quando uma boa parte do mundo lutava por pelo menos um mínimo de saúde. Alguém assim não parecia uma pessoa boa.

Talvez não estivesse sendo justa em julgar alguém que ela sequer conhecia, mas naquele momento o emaranhado confuso de sentimentos que habitavam em seu peito a deixavam inerte para sua consciência e de repente todos os problemas do mundo se tornaram pessoas como a princesa que parecia sorrir para ela daquele outdoor. Parecia tão mais fácil culpar alguém que parecia tão distante e que não tinha culpa dos seus problemas.

Aquela era a primeira vez em sua vida que Zoe sonhou em viver um conto de fadas onde a magia fosse real o suficiente para melhorar tudo. Viagens no tempo, pedidos encantados para a fada madrinha ou qualquer coisa que pudesse concertar aquilo que na realidade parecia irremediável, mas a realidade não tardou em puxá-la de volta para sua vida. Seu celular despertou avisando que era hora de movimentar-se e ir para o trabalho. Resignada, Zoe levantou-se e se pôs a caminhar em direção ao que parecia mais um dia medíocre em sua vida medíocre, inocente de todas as forças invisíveis que conspiravam ao seu redor.

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