Parte 2 - Capítulo 13 - A Preparação
Astrid estava preparando cada um dos animais do santuário, para a sua ausência. Ela falou com os gatinhos, os cachorrinhos, os passarinhos, cavalinhos, jumentinhos, vaquinhas, boizinhos e bezerrinhos. Também falou com as galinhas, os patinhos, os gansinhos e os ovos de cada um deles.
Conversou, brincou e abraçou cada um deles, seguida de perto por Mestre Manolo e Lampião. Seus guarda–costas pessoais.
Conversou e preparou os voluntários também. Estava à espera de sua irmã – ela acabou chegando ao santuário no final daquele mesmo dia. Astrid estava aliviada por finalmente ter a irmã debaixo do mesmo teto.
Pena que no dia seguinte, Astrid partiria para um jogo maluco. Ela e Lunna teriam muito pouco tempo juntas antes disso. Astrid precisava estar pronta para vencer aquele jogo, pois todos dependiam dela – inclusive sua irmã.
Astrid sorriu, lembrando–se de quando o carro de Afonso estacionou na frente da sede.
–Mana! – Lunna saltou do veículo e foi correndo na sua direção.
A primeira coisa que Astrid reparou foi na tipoia suja e mal enjambrada. Teria que resolver isso, antes de partir.
Recebeu a irmã soluçante. As duas se abraçaram.
O tamanho da emoção era proporcional ao tempo em que as duas não se viam cara a cara. Quatro anos inteiros, desde que Lunna se mudou para tentar a sorte, e Astrid tentou a sorte onde já se encontrava. Pensando nisso, Lunna chorou.
–Está tudo bem, querida! Agora você está segura. Está em casa! – enfatizou Astrid, acariciando o cabelo da irmã.
Olhou por sobre o ombro dela, e avistou Afonso às voltas com as bagagens. Uma outra garota surgiu ao lado dele, acompanhada de uma street dog animada.
– Quem são?
Por um momento, Lunna não compreendeu. Então, ela virou para trás. – Ah... Minha amiga Naya e minha amiga Pepita... Elas vieram comigo.
Astrid logo compreendeu o que a irmã queria dizer. Naya parecia constrangida por ser a "penetra na festa".
–Quem é quem? – Astrid perguntou à irmã, baixinho.
–Eu sou Naya – disse a garota, estendendo o cotovelo para um cumprimento pandêmico. Astrid retribuiu da mesma maneira.
–Então, você deve ser a Pepita! – disse Astrid, entusiasmada, abaixando–se para fazer um carinho na cadela ansiosa.
Afonso passou por elas e Astrid aproveitou para lhe falar: – Obrigada, Afonso! Do fundo do meu coração, obrigada por trazer Lunna!
–Não precisa agradecer – ele continuou andando, enquanto levava as bagagens de Lunna e Naya para a varanda. – Estão entregues, moças!
Ele se aproximou de Astrid. – Nos falamos.
Virou–se para Naya e disse o mesmo: – Nos falamos.
Depois que embarcou no carro e partiu, ouviu–se uma buzinadinha amistosa.
–O seu namorado é nota dez! – Comentou Lunna.
–Você também? – Astrid resmungou. Se não lhe bastasse Dona Edwiges... – Afonso não é meu namorado. É só um amigo.
– Pior que é verdade – confessou Lenir, com pesar, juntando–se a elas na varanda.
Astrid aproveitou para fazer as apresentações.
–Esta é minha grande amiga Lenir Assunção. Colaboradora do santuário. Lenir, esta é minha irmã Lunna e as amigas Naya e Pepita.
Trocaram cumprimentos alegres.
–Lenir vai orientar você sobre o Santuário, enquanto eu estiver fora.
–Fora? – Lunna se espantou. – Para onde você vai?
Foi Lenir quem respondeu, toda animada: – Sua irmã agora é uma celebridade! Ela vai participar do Escape Game da TV Mundi.
Lunna e Naya estavam sem palavras.
–Corrigindo: eu vou ganhar o Escape Game. – Astrid levantou o dedo indicador. – Pois é... Preciso que você me substitua, Lunna.
–E–eu? Eu não entendo nada do funcionamento desse lugar!
–Você aprende, maninha! A Lenir vai te ajudar em tudo. E aproveite que eu ainda estou aqui para tirar as suas dúvidas. – Tocando no ombro dela, começou a caminhar. – Vamos, vou mostrar o seu quarto e depois, te levo para fazer um tour pela fazenda.
–Ok – disse Lunna, ainda em choque, mas empolgada com o desafio. Como não tinha medo de trabalho, já estava se preparando mentalmente para absorver o máximo de explicações que sua irmã pudesse lhe dar.
–Venha também, Naya. Sempre tem um lugar para mais um.
–Fico feliz em saber. Obrigada! – Naya ainda lutava contra o constrangimento. Achou por bem acrescentar: – Consegui um emprego na loja do Afonso. Prometo não dar trabalho.
Ora, então o amigo finalmente encontrou a solução para a saída de Dani... Conseguiu uma nova babá para a mãe meio doidinha, lá no empório. Isso era bom.
–Então, sejam bem–vindas! – Astrid sorriu, calorosa.
–––
Astrid mostrou–lhes cada recanto da fazenda. Lunna e Naya ficaram deslumbradas. Nunca viram uma vida como aquela.
A vida delas era pular de cortiço em cortiço e andar de busão. Não escutavam o som dos pássaros, das folhas das árvores, do vento... Só barulho de motor e cheiro de escapamento.
Nenhuma das duas conhecia pessoas que paravam tudo o que estavam fazendo para ouvir atentamente o que a outra pessoa tinha a dizer.
Pessoas voluntárias numa causa tão nobre.
Quando Lunna se deu conta, estava ajudando a dar leite a um bezerrinho que perdeu a mãe e estava tão subnutrido, que não conseguia se levantar para comer sozinho.
Sentiu–se emocionada ao ver o laço que aqueles animais tinham com as pessoas. E ficou pensando em tudo o que Astrid falou sobre o quanto contribuímos para a indústria da morte ao comprar produtos que saem do desespero e do sofrimento animal: presuntos, salsichas, queijos.
Quantos animais sofriam para que esses produtos fossem postos em nossas mesas. Animais confinados em cubículos, com dores atrozes, tratados como coisas... Chorando em agonia... Lunna sabia disso, porque viu imagens de tamanho sofrimento.
A humanidade atingiu um estágio de avanço tecnológico que tais práticas não são justificáveis, considerando que é possível produzir tantos alimentos saborosos que substituem os "produtos da morte".
–Existem tantas receitas veganas e vegetarianas que as pessoas podem fazer em casa, sozinhas, gastando menos dinheiro. Basta procurar na internet – inflamou–se Lenir. – Basta substituir os ingredientes. Basta usar o cérebro que Deus nos deu. E se estamos nesse planeta com tanto potencial, é nossa responsabilidade cuidar o melhor que podemos dos outros seres vivos. Está na bíblia, mas as pessoas convenientemente selecionam os trechos da bíblia que mais lhe interessam. Deus disse para cuidarmos dos animais, porque fazem parte de Seu Reino.
Naya gostou de Lenir no ato. Era uma baixinha arretada e que nunca parava um minuto num só lugar, enquanto houvesse alguma coisa para fazer no Santuário. Eles se dedicavam aos animais em tempo integral. Mas eram recompensados com momentos como aquele, que agora todos estavam assistindo.
Astrid estava cantando para uma vaquinha doente, que lhe respondia com mugidos meigos, como se cantasse com ela. Lenir empurrou Naya e Lunna para o lado. – Dá licença. – e seguiu filmando a cena com o celular, para postar no Instagram.
De repente, Lenir teve uma ideia melhor. Ela tinha ficado com o contato do tal Nicholas, do programa de televisão. Pensou em enviar aquele vídeo para que ele acrescentasse ao portfólio de Astrid, na estreia. Isso iria melhorar a imagem dela entre os competidores e poderia lhe trazer torcedores.
Para manter o santuário, Lenir faria qualquer coisa que estivesse ao seu alcance para que Astrid vencesse o jogo.
Quando viu que estava sendo filmada, Astrid fez uma careta. Não gostava de publicidade e não fazia aquilo para se promover. Mas Lenir estava com aquela ideia maluca de torná–la uma espécie de política angariando votos, para o tal Escape Game.
Ela fez mais um carinho em Luzia e continuou sua peregrinação pela fazenda, para se despedir dos animais.
–––
Quer dizer que eu posiciono a mamadeira assim? – perguntou Lunna, horrorizada, vendo como Astrid estava fazendo.
–Você não, por enquanto. – explicou a irmã. – Está com o braço na tipoia. Mas, depois, é assim mesmo... Você vai ajudar com a limpeza das vasilhas de leite e reposição de leite para os bezerrinhos órfãos.
–Ok – Lunna disse, lentamente.
–Agora, quero que veja como lidamos com o feno... Depois, vou te passar os horários e as atividades da fazenda. Uma vez por semana, os alunos da escola local selecionados pela diretora, vêm para conhecer o santuário. Saldanha, o chefe dos capatazes vai com eles, para mostrar tudo e garantir que as crianças não se empolguem demais com os animais. Eles vêm para aprender a interagir do jeito certo e não para se machucarem ou machucarem os animais.
–Entendi. E o que eu faço quando eles vierem?
–Você garante que o salão esteja pronto para recebê–los para a palestra e o lanche. Ernestina, Lenir e Odete sabem o que fazer. Lenir vai se encarregar de supervisionar a sede.
–Entendi.
–Fica tranquila, Lunna, todos sabem o que fazer aqui.
–Mas estou me sentindo uma inútil.
–Como assim? Eu acabei de lhe passar suas tarefas. Você vai cuidar da loja virtual, e da entrega dos produtos pelos correios.
–Não é suficiente. Eu quero ajudar mais.
–Então, de repente você organiza a papelada do escritório.
As duas foram até lá. Quando Astrid abriu a porta, Lunna levou um susto. Aquilo estava uma bagunça só. Papéis por todo lado.
–Nossa!
–Pois é! Acontece que eu não tive tempo e eu...
–Relaxa, Astrid.
–Então, as contas precisam ser organizadas por prioridade. As mais recentes, as mais antigas, as que já foram pagas. Entrada e saída do caixa da loja também precisam ser passadas a limpo – Disse Astrid mostrando o livro razão. – Os arquivos devem ser organizados por data, por ano, e por pendências resolvidas.
–Isso, sim, vai dar trabalho – disse Lunna olhando ao redor. – Taí, gostei! Um desafio e tanto. Eu já trabalhei de temporária num escritório de contabilidade. Posso não ser lá muito boa com contas, mas sou ótima com organização. E eu os ajudava lá. Eles me ensinaram muita coisa sobre isso.
–Bom saber.
As duas se abraçaram. – Mal você chega e eu já tenho que partir.
–É por uma boa causa – disse Lunna, com a voz abafada pelo ombro da irmã.
Astrid revirou os olhos. – Todo mundo vem me dizendo isso, ultimamente.
Lunna se afastou para encará–la. – É por que é verdade.
–Você é a irmã descolada, que não se importa com câmeras e postagens. Eu sou a irmã que detesta aparecer.
–Verdade – Lunna meneou a cabeça. – Mas você é a guerreira da família. Se tem alguém que pode enfrentar as provas do jogo, esse alguém é você.
Astrid ficou olhando para ela, meio em dúvida, meio emocionada. Esperava fazer jus a confiança que estavam depositando nela, cegamente. Não fazia ideia do que consistiam as provas das etapas. E por dentro, estava apavorada.
–––
Astrid levou Lunna e Naya para conhecerem a dona do Santuário, Dona Adelaide, que permanecia a maior parte do tempo numa cama. Ela só saía quando a cuidadora chegava para ajudar com os exercícios e dar uma volta com ela ao redor. Então, depois do banho, a idosa era reconduzida para o quarto, ou ficava na sala até a hora de dormir, batendo papo com o pessoal. Todo mundo a adorava.
–Olá, querida Astrid! Como está? – a idosa recebeu a sua gerente com um sorriso carinhoso. Ambas sabiam que a relação era mais de mãe e filha do que proprietária e gerente.
–Eu vim lhe apresentar a minha irmã Lunna... –Astrid fez as apresentações. Subitamente tímida, Lunna deu um passo à frente e cumprimentou a senhora.
O sorriso da idosa se ampliou. – Finalmente estou conhecendo a irmã de quem tanto fala.
–Boa tarde, senhora! – Lunna se aproximou, avaliando criticamente o estado dela. Viu a cadeira de rodas a um canto, o andador não muito longe.
–Está só passeando ou veio se juntar à causa?
–Vim me juntar à causa, se me quiserem, pelo tempo que precisarem de mim.
–Fico contente – disse a idosa. – Trabalho aqui nunca falta.
Em especial hoje, considerando que Astrid estava prestes a viajar.
A idosa quis saber de cada detalhe desse tal jogo que todos estavam falando. Astrid assegurou que a fazenda não ficaria desassistida durante a sua ausência. Mas Adelaide estava mais empolgada com a possibilidade de sua jovem funcionária trazer um prêmio que iria beneficiar os animais por um longo, longo tempo.
Lunna deixou de prestar atenção à conversa, percebendo o quanto o pittbull Lampião era afeiçoado à velha senhora. Quando saíram do quarto, ela comentou isso e Astrid revelou que o cão, sempre que podia, deitava–se aos pés de Adelaide para velar pelo seu descanso.
Lunna sorriu.
–Eu posso ajudar a Dona Adelaide. Trabalhei por um tempo cuidando de idosos, em uma clínica. – Ela fez uma careta. – Quer dizer, eu ajudava os cuidadores atarefados a cuidarem dos idosos.
–Sua ajuda será bem vinda – considerou Astrid. – A cuidadora chega no final da tarde, faz o que tem que fazer e passa a noite com ela. Mas ao longo do dia, seria bom que ela fosse estimulada também a andar, assistir a rotina da fazenda, participar de algumas tarefas simples, ou jogos de tabuleiro...
–Deixa comigo – disse Lunna, sorridente.
Astrid a abraçou de novo. – Que bom ter você aqui comigo. – Elas caminharam abraçadas por um tempo. A mão de Astrid resvalou na tipoia de Lunna. – O médico disse quando precisa tirar essa coisa?
Lunna ponderou. – Acho que uns trinta dias.
–Você acha?
Lunna não pretendia dizer que foi atendida de favor... E ela não voltaria mais lá.
–Precisamos marcar uma consulta pra você – disse Astrid. – Temos um médico muito bom no Posto de Saúde. Eu vou ligar para ele, antes de partir.
Lunna quase chorou, mas segurou as pontas. Não queria que a irmã percebesse o quanto andava fragilizada por tudo o que passou na capital. Só agora percebia que a vida não tinha que ser um estresse constante. E que o trabalho não precisava ser ruim... Podia ser pesado, mas podia ser agradável quando mais que duas mãos pegavam juntas, dividindo o peso.
–––
Naya também sentia a mesma coisa... Mas estava preocupada com o que a mãe de Afonso iria pensar quando a conhecesse. Tá certo que ela não vinha com a placa "garota de programa" escrita na testa. Hoje em dia, as pessoas falavam muito de segundas chances na vida, e em ignorar estereótipos... Mas ainda havia pessoas preconceituosas. E ela não queria ser rejeitada, de novo.
–Está preocupada com alguma coisa? – Indagou Lenir, passando por ela.
Naya voltou à realidade. Estava ajudando a lavar e a guardar a louça do jantar. Retomou a tarefa automaticamente, retirando um dos pratos da pilha para enxugá–lo.
–Na verdade, estou – respondeu.
Lenir parou o que estava fazendo e veio para o seu lado, prestativa. Isso era outra coisa que espantava e sensibilizava Naya.
– O que foi? – Perguntou Lenir, interessada.
– Eu... Eu estou preocupada com a impressão que vou causa em Dona Edwiges.
A outra sorriu.
–Ah, não se preocupe com ela. É uma senhora com suas manias, mas que valoriza quem não tem medo do trabalho. E se o filho queridinho dela aprovou você para a função, já é meio caminho andado. Agora...
Naya ficou alerta. Lenir trocou o pé de um lado a outro. – Dona Edwiges tem uma fixação pela ideia de casar o filho com Astrid. Por isso, querida, se ela achar que você é uma ameaça ao seu projeto pessoal... Não sei qual vai ser a reação.
–Certo – disse Naya, lentamente. – Mas isso ela não precisa se preocupar. Ninguém precisa, aliás.
A não ser que ficassem sabendo do seu passado. E no momento, apenas Lunna e Afonso sabiam. Ela podia contar com o silêncio de Lunna, porque a conhecia. Queria contar com a discrição de Afonso também, e achava que podia. A intuição lhe dizia que ele não era do tipo fofoqueiro... Que faria comentários prejudiciais.
Se ele fizesse... Bem, como diziam por aí: em cidade pequena, o inferno é grande.
–––
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