Parte 1 - Capítulo 1 - O dono do jogo

Oscar Roberto Cruz de Almada atravessou o hall de entrada da TV Mundi, causando agitação. Todos os funcionários presentes sabiam que havia dois importantes motivos para a sua presença no edifício: a reunião mensal do conselho deliberativo, quando os acionistas e representantes regionais reuniam–se para tomar decisões sobre o rumo da empresa; o que levava ao segundo motivo de ele estar ali, hoje, tão cedo: a pandemia e as perdas da emissora.

O retorno das atividades presenciais internas na sede (seu funcionamento administrativo), e das atividades externas (movimentação em torno da exibição dos programas inéditos e a retomada das filmagens cujos cronogramas de produção estouraram), não foram suficientes para diminuir os prejuízos acumulados desde 2020.

A emissora perdeu anunciantes (alguns deles faliram; outros entraram no modo "contenção de gastos", não renovando os contratos de propaganda); perdeu funcionários (para a doença desencadeada pelo Corona vírus e para o corte de pessoal); perdeu audiência (para as reprises sem fim... mesmo que agora estejam se recuperando por conta dos episódios inéditos). Enfim, tudo isso impactou a empresa de uma maneira terrível.

Diante da gravidade da situação, Oscar sentia–se preso num dilema. O falecido pai lhe ensinou que, quando um de seus negócios começa a dar prejuízo, o melhor a fazer é se livrar dele, antes que arraste consigo todos os outros negócios. "O procedimento é o mesmo que o de um paciente com gangrena. O que se faz? O médico amputa o membro afetado, para salvar todo o resto".

Oscar não queria desistir da rede. Eis o dilema. Pelo menos não até esgotar todas as possibilidades de salvá–la. A TV Mundi era o seu xodó; além do quê, estava consciente de que o sucesso não vem sozinho. Milhares de pessoas dependiam dele. Se deixasse o barco afundar, quanta gente seria afetada direta ou indiretamente? Havia ainda que considerar a situação das famílias dos funcionários doentes, que o plano de saúde pago pela empresa estava se encarregando de cobrir. Essas pessoas ficariam desassistidas, se a rede de televisão fosse à falência?

Se ele pedisse falência...?

Oscar era um lutador; e o seu ringue haveria de ser, hoje, logo mais, naquela sala de reuniões. Precisava convencer os acionistas a enxergar possibilidades, onde julgavam não existir. Precisava contagiá–los com o seu entusiasmo. Não entregaria a toalha assim, tão fácil. A TV Mundo era pequena, voltada a um público específico, mas ainda sim, era um negócio sólido. Talvez por lidar com uma faixa tão específica, não sofresse concorrência na TV aberta. Ao menos, não com a sua abordagem. E isso era um ponto positivo a ser explorado.

Manter a rede no ar dependia de soluções assertivas por parte do seu staff. Oscar elegeu, entre as suas prioridades, ver a quantas andava a criação de um plano de contenção de despesas; bem como um plano de retorno seguro – com todas as medidas sanitárias atendidas – para os funcionários que estavam voltando ao trabalho presencial. Os Recursos Humanos deveriam realocar os funcionários que permaneceriam trabalhando em home–office, com critérios justos e iguais para todos, de maneira estratégica e produtiva.

A sua empresa não era um órgão público, onde os protegidos dos políticos ficavam à vontade, enquanto os funcionários com comorbidades iam trabalhar sem as menores condições de higiene e de contenção da COVID. Na sua empresa, funcionários sem doenças associadas, faziam um trabalho semipresencial. Os que tinham problemas, ou poderiam contaminar pessoas da família com problemas, também permaneciam trabalhando em casa. E trabalhar em casa, leia–se, não era não fazer nada, ou aproveitar o tempo para conseguir um segundo trampo, enquanto as coisas não se resolvem. Tratava–se realmente de tra–ba–lho!

Sim, porque a corrupção tornava quase impossível qualquer ação justa de contenção deste terrível vírus, bem como, impedia a construção da confiança entre patrões e empregados.

Oscar concordava com o famoso âncora de uma rede concorrente, quando este disse que, no que se refere à pandemia, o vírus trouxe à tona o que havia de melhor e o que havia também de pior, no Brasil. Oscar acrescentaria que foram muitas décadas varrendo a sujeira toda da deseducação para debaixo do tapete, e o vírus sacudiu tudo, levantando uma poeira danada.

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Atravessando o hall de entrada, a passos largos, ele cumprimentou discretamente a todos que passavam por ele, seguido de perto pelo primo e assessor, Nicholas de Almada Ruiz.

Nicholas estava ciente de que o parentesco não lhe trouxe nenhuma facilidade ou benefício. Pelo contrário, dificultou muito para ele conseguir um emprego, depois de cinco entrevistas de emprego dentro da TV Mundi. E quando conseguiu, aprendeu rapidamente que deveria antecipar as coisas, antes que Oscar pedisse. Que deveria ser silencioso e discreto. (Se ele nem o percebesse, melhor). Nick, como todos chamavam, vinha conseguindo se manter como o melhor ou o mais durável assistente da presidência, nos últimos três anos.

Embora satisfeito com sua conquista profissional, não era o que ele almejava para si num futuro próximo. Nick via naquele trabalho apenas a oportunidade de adquirir know hall para fazer o que realmente se preparou a vida toda: produzir em televisão. Mas isso só aconteceria quando ele dominasse o funcionamento de uma rede por dentro e por fora. Haveria posição mais privilegiada para isso, senão como assessor do presidente?

Contudo, Nick não contava que uma pandemia apocalíptica, coisa de filme e novela, faria com que seus planos fossem adiados indefinidamente. Bem, talvez fosse uma oportunidade para ver como os produtores se viram em situações extremas como aquela. Situações que exigem cortes de gastos, criatividade e flexibilidade, além de estratégias para lidar com pessoas vivendo momentos de estresse constante.

Oscar parou diante do elevador privativo. O curso da seta indicava que estava descendo... Alguém na recepção do térreo deve ter alertado à secretária executiva da cobertura, que por sua vez enviou o elevador antes que ele apertasse o botão.

– Minhas anotações? – Oscar indagou, enquanto esperavam.

– Aqui – respondeu Nick, passando–lhe o bloco de notas. – Você sabe que seria muito mais prático utilizar o aplicativo que instalei no seu celular, não sabe?

Oscar torceu os lábios. – Faria né? Detesto celulares...

Nick enviou–lhe um olhar dúbio. – Isso é um problema, nos dias atuais.

Os dois ficaram calados. De repente, Oscar comentou:

– Não dá! É chato! Pra tudo, você tem que clicar num link que leva a outro link e te faz perder tempo. Fora essa mania quase... Indecente! De resolver cada passo com um novo app. Então você quer comprar ingressos para a ópera? Instale um app. Você quer verificar o trânsito, ou chamar um uber? Baixe um app... E assim por diante.

–Bom... – Nick encolheu os ombros daquele jeito que o próprio Oscar fazia. Talvez fosse um cacoete de família. – Você sempre pode andar até a bilheteria para comprar os ingressos, ou berrar no meio da chuva para um táxi parar...

Sarcasmo. Isso, Oscar entendia. Sorriu para o primo.

–Eu não preciso fazer nada disso... Pago você para fazer. E é por isso que não preciso de uma porção de apps.

Isso encerrou a amistosa discussão.

Ele gostava de Nick. Era responsável e trazia resultados. Costumava ver nele uma juventude saudável. Não que ele próprio fosse um ancião, mas havia uma geração de distância entre os dois.

Oscar começou a estudar as anotações. Nesse ínterim, as portas do elevador abriram e os dois entraram, sem que ele interrompesse a leitura. Nick apertou o botão da cobertura e começou a estudar as próprias anotações.

O futuro da rede estava em jogo e, consequentemente, o seu próprio futuro. Ele tinha uma porção de coisas que gostaria de dizer. Mas, sendo apenas um assessor, teria que esperar o momento certo para ser ouvido.

–––

– Senhores, nós já passamos pelos assuntos financeiros, de cortes orçamentários, compensação de perdas nos patrocínios, e no remanejamento de pessoal – recapitulou Oscar, tomando um gole de sua água com gás. – Agora precisamos tratar de algo que nos traga audiência. Uma injeção de ânimo. Somente um produto de sucesso poderá tirar o nosso pé da lama, por assim dizer.

Alguns representantes começaram a chamar a atenção do presidente para sugestões e projetos de programas.

– Ora, por favor... – disse Oscar, cortando as tentativas. – Esses programas já foram rejeitados em tempos normais, quem dirá em tempos de pandemia.

– E não nos esqueçamos – manifestou–se o diretor de núcleo dos programas, André Panioli – de que o público de antes da pandemia queria certas coisas. O público da pandemia agora é outro.

– O que quer dizer? – Indagou o diretor executivo, José Villanova. – Se uma pessoa quer viajar, continuará desejando viajar; se ela quer se hospedar em bons hotéis, ela continuará querendo isso; e se quiser fazer um cruzeiro, irá fazer!

Oscar soltou um risinho sem humor.

– Aí é que você se engana... Uma pessoa que antes gostava de viajar, agora irá pensar duas vezes. Irá escolher pela segurança sanitária, em primeiro lugar. A não ser que seja um fanático ou lunático que confunde doença com militância política. E este, definitivamente, não me interessa engajar.

Alguns riram, mas outros ficaram calados. Oscar não estava nem aí, se achassem ou não em suas palavras, um alerta para Ciência em primeiro lugar; burrice e fanatismo, em último.

– Precisamos de um programa que seja seguro para os participantes...

–Só o Big Brother tem o poder de manter os participantes isolados e longe da COVID. – Villanova meneou a cabeça. – Temos um grande desafio: unir esse aspecto positivo do Big Brother aos nossos programas de viagens e turismo.

–O quê? – Panioli riu, incrédulo. – Trancando todo mundo num hotel de luxo na Suécia? Isso vai custar uma fortuna.

– Quem falou em Suécia? – Villanova rebateu tranquilo.

– Alguém tem uma ideia? – Indagou Oscar, interrompendo aquele momento de animosidade entre os dois diretores.

Todos ficaram em silêncio por algum tempo.

– Ou solução para o nosso problema? – Ele reformulou, querendo estimular as pessoas a falarem.

Nicholas suspirou pesadamente. Era agora ou nunca. Colocou a pasta de couro sobre a mesa, atraindo o olhar surpreso do primo.

– Eu tenho – anunciou.

– Você, Nick? – indagou Oscar, cético. – Por que não me falou antes?

– Por que não tinha certeza de que era uma boa ideia. Sejamos francos, não é o tipo de programa que o conselho iria considerar em sua grade. Não antes da pandemia. Mas, pelo visto, é exatamente o que está acontecendo agora. Por sorte, todos os questionamentos e comentários aqui me levaram a ver que pode dar certo. Pode ser a solução.

– Essa é uma grande declaração, garoto – disse Panioli, num tom dúbio; mais para "pago pra ver"...

– Vamos ouvir, então – decidiu Oscar. – Apresente a sua ideia.

Nicholas se levantou, porque pensava melhor enquanto se movia. Abriu a pasta e olhou para a primeira página, onde se lia: Custos/busca ativa.

Oscar franziu o cenho diante dos "códigos" do jovem primo.

– A minha ideia é diminuir os custos por meio de uma busca ativa de patrocinadores. Eles irão ter seus nomes a cada etapa da competição.

–Competição? – o diretor executivo fez voz à pergunta de Oscar. Os dois o encararam, assim como todos na mesa. Olhares não necessariamente amigáveis, portanto, Nicholas os evitou, engolindo em seco.

– Sim, eu pensei num reality show de competição.

Um murmúrio aturdido passou entre os demais diretores e acionistas. Um destes últimos se manifestou:

– Mas a TV Mundi é uma rede de viagens, turismo, eventos culturais, arte e história... Não de competições!

– Vamos ouvir até o fim – interveio Oscar, interessado.

– Bem – Nicholas limpou a garganta. – A competição envolve arte, cultura, turismo e viagens. Mas eu já chego ao funcionamento, propriamente. Antes, quero elencar as vantagens e os custos. Quero dizer, as vantagens residem nos custos, pois a maioria deles irá sair dos patrocinadores.

– Quer dizer que tudo se baseia em conseguirmos patrocinadores? – refletiu Oscar, em voz alta. – E se não conseguirmos?

– Aí é que está. Com o patrocínio, os custos deverão ser mínimos, porque só vai ao ar com essa parte resolvida.

– Uma rede de segurança. Sei... – murmurou Oscar. – Continue.

– A competição mistura caça ao tesouro e resolução de enigmas.

Oscar o interrompeu. – Ah, como o The Amazing Race...? Não é original. E com a pandemia, existem graus de dificuldade para sair por aí, caçando tesouros.

– Bem, com todo o respeito, esse foi ou é um problema dos produtores do The Amazing Race – disse Nicholas. – Nós não somos parte da equipe de Jerry Bruckheimer. Não temos uma superpotência produtora como a CBS, por trás de nós... Mas... nós somos criativos.

Ele virou a página do seu bloco de anotações. Oscar deu uma espiada, com ar divertido. Dava para ver que o primo vinha preparando aquilo há muito tempo.

– A ideia é que os concorrentes façam viagens pelo Brasil, na primeira etapa. Assim, não precisamos enfrentar medidas sanitárias em outros países. Mas, o carro–chefe do nosso "produto" nem seria a viagem em si, com os enigmas e as aventuras, mas os esportes radicais.

– E o que há de novidade em tudo isso? – indagou o diretor executivo.

Nicholas sorriu de orelha a orelha.

– Escape game.

– Que diabos é isso?

– Bom, José, se você não sabe o que é... – Oscar torceu os lábios, dissimulando um sorriso. – Então, é porque se trata mesmo de uma grande novidade.

José Villanova era o sujeito mais antenado nos produtos desenvolvidos para a televisão, em todo o país.

O outro fez uma expressão contrariada.

Nicholas sorriu para todos e continuou:

– Escape games são provas radicais, que fazem sucesso entre patrocinadores ricos, os quais bancam lugares para acontecer esses eventos, como as lutas que precederam a UFC. Escape games não são de conhecimento do grande público em geral.

"No nosso caso, seria a última etapa, e totalmente legal. Na verdade, nós podemos construir nossos próprios cenários de escapadas, com câmeras de acesso semelhante às do Big Brother. Convenhamos, senhores, que o conceito do escape game como reality show ainda não foi explorado. Pelo menos não no Brasil. Temos uma mina de ouro em potencial, pois exige o mínimo de esforço nosso. Em contrapartida pode gerar centenas de horas para serem editadas em vários episódios".

Ele mostrou duas plantas de escapes games que ele próprio desenvolveu. – E nem vamos pagar direitos autorais.

– O que acha disso, Lúcio? – perguntou o diretor executivo ao chefe do setor jurídico.

–Ah, bom... Não sei. – O cara pigarreou, afrouxando a gravata. – Preciso ter o projeto em mãos para opinar.

Oscar tamborilou os dedos no tampo da mesa.

– Então é isso, Nicholas. Desenvolva o projeto. Você tem uma semana para apresentá–lo. O conselho concorda em comparecer a uma reunião extraordinária, a fim de deliberar a respeito?

Todos concordaram. – Muito bem. Esse é o tempo que você tem – disse Oscar. Ele se levantou, dando por encerrada a reunião. Deixou para trás um Nicholas perplexo e extasiado a um só tempo. Não podia acreditar que tinha conseguido finalmente apresentar a sua ideia! Bem, ainda não... Foi apenas o rascunho, o pontapé inicial, sem uma fundamentação. Deu–se conta de que precisava de uma equipe. Correu atrás do primo, antes que ele alcançasse a recepção.

– Vou precisar de um secretário, um arquivista, um fotógrafo e um estagiário bem disposto a bater perna... – Nicholas foi enumerando nos dedos, enquanto corria para alcançar Oscar. Este parou diante do elevador aberto.

– Você não entendeu? Tem carta branca! Desde que me entregue um projeto decente, faça uso dos recursos humanos que precisar. Mas saiba escolher. É o seu primeiro grande passo... E você não sabe o quanto lamento...

–Lamenta? – Nicholas não entendeu. – Por quê?

–Porque sinto que estou perto de perder o melhor assistente que já tive.

Nicholas riu baixinho. – E vai ganhar o melhor produtor que nunca teve.

– Hum... – resmungou Oscar, apertando o botão para descer. – Vamos ver do que você é feito, Nicholas. Vamos ver do que é feito... Agora a bola do jogo está do seu lado do campo. Não perca este gol!

As portas se fecharam e Nicholas olhou ao redor. As pessoas saíam da sala, algumas o cumprimentaram cordialmente; outras se despediram de maneira mais efusiva, insuflando–lhe coragem.

Assim que ficou sozinho na recepção, Nicholas teve vontade de gritar de euforia. Mas conteve–se. Tinha muito trabalho pela frente. E uma semana passa rápido demais.

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