Capítulo 5 - Aliados?

~ Wendler

     Hesito ao estender minha mão em direção à maçaneta, um filme sobre aquelas horas torturantes do meu "reaprendizado" passa e repassa na minha cabeça o que parecem ser dezenas ou centenas de vezes. Uma raiva silenciosa começa a me preencher, não é hora de ter medo, nem de temer a morte. Acabo por abaixar a mão, reflito por um tempo. Sim, não é hora de ter medo, no entanto, também não é hora de morrer estultamente.

     Pego as lentes e coloco-as nos meus olhos. Abro a porta, quase tenho vontade de socar o meu reflexo aparecendo no espelho, porém deixo o sentimento apenas internamente, não quero criar mais suspeitas do que ter tirado as lentes enquanto estava longe dos olhos do professor. Na volta para sala, vejo uma turma de alunos caminhando, todos parecem do mesmo jeito dos que estavam na minha sala. Minha sala está a poucos metros, a classe está do lado oposto, percebo com o canto do olho que apenas dois alunos não tinham as olheiras e os rostos tão assustados. Entro na sala, quem quer que eles sejam talvez possam me ajudar. Ajeito-me na cadeira, olhando para o quadro.

     — Wendler, está tudo bem? — quase percebo que a pergunta sai com certo escárnio.

     — Sem problemas.

     — Ótimo, já que recebi a informação que seus batimentos estavam altamente alterados. Sabe, é engraçado como as lentes de superiores têm algumas qualidades extras.

     — Não houve problema algum, professor.

     Engulo um seco, ele percebeu isso pelo colar ou pelas lentes? Não dá pra saber, em ambos os momentos eu estava alterado.

     Mais alguns instantes se passam, ultimamente percebi que minha cabeça parece estar mais nas nuvens do que na terra, acho que isso é por causa do Blue e do White. Um som estridente soa. Tem até um sinal?

     — Turma dispensada. Sigam à direita para chegarem ao refeitório.

     Sou o primeiro a sair da sala, ando como se estivesse correndo. No fim do corredor, tem uma parede, leio "Refeitório". Parece que a parede lê minhas informações pelas lentes, segundos depois ela se abre; vejo que o refeitório está lotado, reconheço de longe a turma que eu vi um tempo atrás. Aqueles dois que não eram como os outros estão juntos, talvez sejam irmãos, um garoto e uma garota que aparentam ter minha idade.

     Uma fila pequena está se servindo, imito-os, já que não seria nada normal alguém entrar em um refeitório e simplesmente ignorar tudo e todos e sentar-se exatamente com aqueles dois.

     Enquanto pego minha comida, observo os arredores, consigo ver pouquíssimos que tenham os traços daqueles irmãos, mas somente eles chamaram minha atenção. A comida, ao menos, não é tão desagradável: uma maçã, carne e arroz acompanhado por água. Encaminho-me até os supostos irmãos, eles me encaram meio sem jeito e acabo sorrindo. Olho para o banco e o garoto acena com a cabeça. Agradeço com um gesto.

     Um silêncio constrangedor se instaura, percebo que eles não pegaram nada para comer. Tirando isso, preciso pedir que tirem as lentes e ainda tentar confirmar de alguma maneira que estão do meu lado.

     — Também vieram da sala de reeducação? — tento instigá-los, faço o mesmo rosto de Calígula. A expressão convidativa que eles tinham no rosto morre, transparecendo serem arquitetados, seus corpos parecem um pouco rígidos. Ótimo.

     Sorrio e retiro minhas lentes, boto-as no bolso. Os dois parecem confusos com o que faço, estendo a bandeja para eles, ambos olham para ela.

     — Tirem as lentes, sou amigo. Essas lentes apenas enxergam o que vocês enxergarem, eu estou com pouco tempo. Eu só estava os testando, precisava saber se estavam comigo.

     Ambos fazem o que peço, no banheiro eu havia testado se havia algo que demonstrasse um microfone, falei sobre rebeliões, mas nada aconteceu. Percebo que estão quase salivando pela comida.

     — Podem se servir.

     Eles me encaram como se fossem um só, parece até que querem me abraçar de gratidão.

     — Muito obrigado — responde o garoto — Meu nome é Guilherme e essa é Joana. — Ela acena com a cabeça em cumprimento. — O que podemos fazer por você?

     — Bom, me chamo Wendler. Estou à procura de aliados para destruir esse lugar. 

     Eles param de devorar a comida, seus rostos estão pálidos e parecem ter ficado totalmente rígidos.

     — Eu agradeço pela gentileza da comida... — Guilherme começa um pouco hesitante. — Mas temo que eu tenha que recusar sua proposta.

     Joana continua estática, será que os julguei tão mal assim? Nesse caso, não posso permitir que me entreguem.

     — Não nos entenda mal — diz Joana, que até agora estava quieta. — Nós realmente desejamos ajudar... Mas não queremos ter que passar por aquilo de novo. Nós também fomos para aquela sala.

     Encaro-os e reflito por um tempo, eles também estão com medo. Ninguém gostaria da simples ideia de voltar para aquele lugar horrendo. Suspiro e um leve sorriso abre no meu rosto. Entendo-os perfeitamente.

     — Sem problemas. Agradeço mesmo assim. Coloquem logo as lentes, não podemos deixar que o tempo passe do limite... — percebo certa dúvida em suas expressões, parece que eles estão em um conflito interno. Eles mordem os beiços com um pouco de força. Continuo: — Façamos o seguinte: amanhã, nesse mesmo horário, vocês me trazem sua resposta. O que acham?

     Estou de volta ao quarto. Aqueles dois não reagiram mal à minha resposta, ainda tenho alguma esperança ao menos. Infelizmente, o quarto é pior lugar para se fazer qualquer coisa, sem poder falar, nem fazer nada; já que estou sendo monitorado o tempo inteiro.

     Recosto na cama e começo a tentar tirar o peso do dia. Mesmo sem estar correndo, gritando, sangrando, ou algo do gênero, acho que estresse está sendo bem permanente no meu dia a dia. Bom, ao menos, ainda me resta um lugar para descansar.

     Estou caindo, mas não sinto vontade de me mover, parece não ter fim. O vento é bem reconfortante e dá pra se acostumar com o "barulho" depois de um tempo. Desde que comecei a cair, meus olhos estão fechados, não sinto vontade de abri-los. Após um tempo que não sei dizer ao certo, decido acordar, por assim dizer. Observo um céu negro e vermelho, é bonito de se ver; porém, não há sol aqui, na verdade, tem um pequeno e brilhante ponto de luz um pouco acima de mim, não sei dizer ao certo o que é, mas parece humanoide. 

     Enquanto eu tento entender o objetivo desse lugar, procuro por alguma outra coisa interessante. Percebo que não há chão por aqui, apenas uma queda infinita que nunca me leva a nada. Tento nadar pra alcançar a figura humanoide, porém não tenho sucesso, começo a me teleportar aos poucos, até que eu consiga chegar ao que quer que seja aquele ponto brilhante.

     Ouço um som gutural não muito longe de mim, tenho a infeliz felicidade de encarar a fonte desse barulho. Algo semelhante a um dragão me persegue e acelero, mas não há lugar pra me esconder. Encaro mais uma vez o que me persegue, ele é enorme, seus dentes devem ser do meu tamanho, um arrepio percorre todo meu corpo. Mesmo sendo um sonho, tudo aqui parece ser real, desde a sensação do vento, até o medo que começa a me preencher.

     Instantes depois, noto que o dragão nunca se aproxima e que eu nunca chego aonde eu quero, começo a observar aquele dragão, uma ideia estranha cruza minha mente. Me aproximo da fera, dessa vez o teletransporte parece estar adiantando algo. Começo a aumentar minha aproximação mais e mais. Agora, mais perto, consigo ver claramente que o dragão tem as mesmas cores do céu, parece que minha presença o incomoda bastante, um bafo de fogo escapa pelos cantos da sua boca, um rugido de fogo ilumina os céus. Continuo a me aproximar para ver se aquilo me leva a algum lugar, porém, conforme me aproximo, o calor começa a me machucar, decido desviar para a direita. Engulo um seco. 

     Procuro pelo ponto de luz que havia no céu, ele não está mais lá. Então, o palpite estava certo, aquilo era uma representação do dragão cuspindo fogo, mas não vejo a presença humanoide. O dragão continua a me encarar, ele está apenas em alerta, seu corpo está encolhido, como se estivesse protegendo algo, seus olhos parecem me analisar a cada segundo, procurando qualquer movimento abrupto. Será que tenho que derrotar essa coisa?

     Posso tentar bater nisso, mas derrotar é uma palavra forte demais. Mesmo sendo um sonho, o dragão começa a mudar de posição, antes ele estava em posição fetal para nós humanos, agora, ele fica em posição de ataque, um dragão menor está embaixo dele, esse é azul, sendo algo totalmente ímpar ao ambiente que nos cerca, seus olhos não tem medo, apenas a... Observar; seus olhos não estão tão preocupados quanto os do dragão maior. O azul começa a voar em minha direção e o outro tenta o impedir, porém o azul apenas o ignora e continua a vir em minha direção. O maior o acompanha cautelosamente, sanguinário e protetor, fico atento; pronto pra escapar caso algo aconteça, estou tenso.

     O dragão mais dócil está extremamente próximo, ele abaixa a cabeça como se quisesse que eu o acariciasse, não vejo problemas quanto a isso, mas estou com receio quanto ao grandão, acho que ele não gosta muito da minha presença. Procuro por uma resposta em sua face, ele apenas acena. Toco gentilmente no pequeno dragão, mesmo dizendo pequeno, ele é maior que eu. Percebo que o grandão está bem mais calmo, tranquilo, começo a relaxar também.

     Vejo uma estranha mudança no céu a nossa volta, a coloração mudou para um preto esverdeado. Enxergo dezenas de dragões se aproximando, rapidamente, o grandão cobre o menor com suas asas e começa a rugir em desafio, que acaba por eliminar vários de uma vez. Estes são menores, mais ágeis aparentemente. Decido ajudar, mas o grandão apenas me encara, ele se vira para o menor, percebo, ao menos eu acho, que ele deseja que eu cuide dela, acabo acenando com a cabeça.

     O imenso dragão levanta voo, rugindo no meio do céu preto esverdeado, seus rugidos de fúria espantam alguns, outros tentam o desafiar, porém de nada adianta, seus rugidos de fogo incineram tudo que há na frente. A batalha continua feroz, o movimento do enorme dragão é mínimo, ele não tem a necessidade de usar as garras, o fogo já basta pra todos. Então, dragões que estavam fugindo, grande parte deles, muda seu foco pra mim.

     Mando o dragão menor fugir, entretanto, sua teimosia é maior. O grandão percebe o estranho movimento, seu olhar enfurecido almeja os que querem perturbar o menor, aproximo-me com grande velocidade, apareço atrás das asas do que estava na frente, os que percebem tentam me pegar com seus rugidos de fogo, porém sempre vou para o próximo dragão, fazendo com que se acertassem, o dragão me ajuda, porém suas chamas tem uma cor diferente, é um azul forte que ilumina tudo a sua volta e seu ardor é mais intenso.

     Continuo os confundindo e fazendo com que diminuam seus números. Enquanto luto, tento entender o motivo desse sonho. Até onde eu sei, não existem dragões nesse mundo, também não é possível que um dragão saia de dentro de mim, ou que eu tenho os poderes de um, só é permitido ter uma habilidade anormal.

     De repente, o ar se torna tenso. Todos os dragões que nos atacavam desaparecem, porém não consigo me acalmar, algo está errado, minhas pernas tremem, um calafrio parece enraizado em mim, uma forte luz dourada deixa de se esconder, revelando-se no ponto mais alto do céu. 

     A figura humanoide de antes está ali, ele ergue sua mão direita levianamente, mirando no dragão menor, um feixe de luz vai de encontro a ele, tento teletransportar pra salvá-lo, mas não adianta, estou muito longe. Entretanto, o dragão enorme coloca-se na frente do feixe, seu peito é aberto e sua cabeça foi levada. Seu corpo começa a cair, o dragão menor voa desesperado na sua direção.

     A figura humanoide está rindo. Não entendo o motivo, não os conheço, mas uma raiva enorme acaba por me contorcer, aperto tanto minhas mãos que elas começam a sangrar. Não sei como encaro essa figura brilhante, mas não deve ser bom, ele parece com medo. Teletransporto-me para atrás dele, ele apenas tem tempo de se virar na minha direção, já que meu braço o atravessa no peito e o encaro desfalecer lentamente; após esse surto, volto minha atenção para os dragões, chego rapidamente ao lado deles. O dragão menor parece estar chorando. Tudo o que eu faço é observar, não há nada que eu possa fazer, ele me encara depois de um tempo e abre a boca, ele fala algo sem pronunciar nada. "O laranja se foi".

     Acordo sem ar. Estou ensopado e sinto meu coração palpitar feito louco.

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