Capítulo Vinte e Nove
Arden Kallis estava quase colada à televisão, à espera do momento em que um dos canais de notícias pudesse filmar Theo. Pela primeira vez desde que entrara no mercado de trabalho, ela tinha pedido o dia de folga, tudo por causa do artigo que ela própria escrevera. Theo não lhe atendia às chamadas nem respondia às suas mensagens, algo que ela percebia completamente, então a única solução que ela achara em que não violasse completamente a sua privacidade mas, ainda assim, descobrisse como ele estava foi ligar para os seus pais. A sua mãe atendeu e, ao início, foi a típica mãe protetora que Arden esperava que ela fosse mas, depois, quando ouviu a preocupação na voz de Arden, cedeu e prometeu cuidar de Theo. Prometeu que não deixaria que ele fizesse algo como fizera há cinco anos.
Fora a única coisa que ela conseguira prometer e, embora não acalmasse os nervos de Arden, ela tinha que aceitar o pouco que lhe era dado. Tinha tido sorte de Linda Levi não ter desligado a chamada na sua cara nem a ter insultado; afinal, ela sofreria também com o que o artigo de Arden desvendava. Linda e John Levi seriam considerados mentirosos – algo que Arden fez questão de refutar no seu artigo, pelo simples facto de ter gostado do casal – por terem mentido durante tantos anos. Por terem fingido o luto, o funeral e os aniversários, nas entrevistas... Arden não conseguia imaginar o tumulto que estava na casa dos Levi, não conseguia imaginar o que se passava com Theo.
Emily achara estranho Arden não se sentir tão bem sucedida como tinha acontecido com todos os seus outros trabalhos, mas a jornalista não oferecera qualquer justificação. Ligara à editora na noite anterior a avisar de que não iria trabalhar no dia seguinte e desligara a chamada, sem dizer mais nada. Era por isso que, às nove da manhã daquela sexta, ela podia estar sentada no seu sofá, enrolada numa manta, à espera que Theo aparecesse na televisão. Linda tinha-lhe dito que Theo estava a planear falar com o público, porque achava que era o melhor – Arden concordava, por muito que a sua opinião fosse irrelevante – então Arden tivera a televisão ligada durante todo o tempo. Mantivera o volume no máximo enquanto fazia o seu próprio pequeno-almoço e quando fora à casa de banho, únicas ocasiões em que saíra da sua sala de estar.
Quando o momento finalmente chegou em que o repórter do canal que ela tinha escolhido, por ser o seu preferido, anunciou que Theo Levi – Levi Saint, nas suas palavras – iria falar para todos eles, Arden mal conseguiu acreditar. O repórter explicou que a família tinha contratado um advogado e que era esse senhor que estava a falar primeiro, pedindo aos jornalistas que guardassem todas as suas perguntas para o final e que não interrompessem o discurso e raciocínio de Theo, pois tudo o que ele dissesse seria importante. Arden concordava e estava desejosa de ouvir Theo falar, de ver Theo pela primeira vez em dois dias.
A sua vida nunca lhe parecera tão vazia como depois de ele sair disparado do seu apartamento.
Arden reparou no momento exato em que a câmara desviou para a porta da frente dourada da casa de Theo a abrir lentamente. Linda apareceu primeiro, com os seus cabelos completamente brancos apanhados na sua nuca e com os seus braços claramente a ajudarem alguém a andar. No momento em que Arden notou nesse pequeno gesto, soube automaticamente de que não estava pronta para ver Theo pela primeira vez, não daquela forma. Soube que ele estaria num estado pior do que ela esperava, para precisar que a sua mãe o ajudasse a andar. Quando ele realmente apareceu na rua, à vista de toda a gente, e os gritos começaram, Arden percebeu que tinha razão.
Theo parecia completamente arrasado.
Com pele pálida, barba por fazer e cabelo molhado e despenteado, ele não poderia parecer pior. Os seus olhos, mesmo de longe, mostravam-se vazios e vermelhos – ele tinha chorado há pouco tempo. Arden odiou-se naquele momento, mais do que alguma vez fizera, não só por ser a causa de tudo aquilo, mas porque o conhecia o suficiente para conseguir magoar-se a si própria ao saber todos os seus pequenos tiques. Ela sabia lê-lo na perfeição e, naquele momento, essa era a maior fonte da dor que estava a sentir. O seu coração parecia-lhe apertado, ao ver Theo naquele estado. Nunca quisera que ele ficasse assim mas sabia que inconscientemente ela tinha ponderado todas as hipótese e sabia que, com a ansiedade e paranoia constante que ele sentia, era inevitável ele sucumbir à pressão.
Arden inspirou bruscamente, forçando-se a ficar atenta nele e naquilo que ele estava a planear dizer. Viu-o a inspirar fundo e a expirar logo de seguida, trocando o apoio dos braços da sua mãe pelo do pequeno pódio que tinha sido lá colocado de propósito para aquela situação. Theo agarrou a madeira do objeto até os nós das suas mãos ficarem completamente brancos, mas ela conseguiu ver que, mais que aterrorizado, ele estava fraco. Ele parecia estar a canalizar todas as forças naquela situação e Arden tinha medo do que lhe iria acontecer quando ele terminasse de falar. Não sabia se queria ver, se estava pronta para o ver naquele estado, mas também sabia que nunca conseguiria desviar o olhar.
- Não sei bem como começar isto. – Theo admitiu, tossindo para tornar a sua voz mais forte. – Acredito que todos tenham muitas questões, principalmente porque estão a olhar para mim e eu já deveria estar morto há cinco anos... Admito que nunca esperava estar nesta situação, mas espero que, depois de toda a minha explicação, sintam um pouco de...de compaixão. Espero que me deem uma oportunidade de me explicar, de contar a minha própria história, em vez de tê-la contada por pessoas que pouco sabem.
Arden sentiu a ofensa que Theo lhe lançou e suspirou, sabendo que ele iria descarregar a sua raiva nela. Com toda a razão para o fazer, aliás. Com olhos e coração pesados, Arden agarrou-se a uma das almofadas do seu sofá e continuou especada a olhar para o ecrã da sua televisão. Theo parecia triste, mas decidido. Ela sabia que aquele momento tinha sido o escolhido para contar toda a sua verdade e estava orgulhosa dele, porque ele precisava de tirar aquele peso de cima de si próprio. Sem avisar qualquer um dos Levi, Arden tinha pedido a Holand para ir para junto dos jornalistas, para proteger Theo caso fosse preciso. A certeza de que o seu guarda-costas estaria lá era o suficiente para ela não temer nada. Holand protegeria Theo, custe o que custasse.
- Há dez anos, dei-me a conhecer ao mundo como aquele que vocês conhecem como Levi Saint. O nome foi escolhido pelo meu ex-agente e por uma equipa profissional, que sabia exatamente que nome escolher para atrair mais pessoas. Resultou, claramente. – Theo não conseguiu rir como faria normalmente. Arden mordeu o lábio. – A minha carreira disparou quase imediatamente...vocês, o mundo, gostaram das minhas canções e da forma como eu fazia a minha arte. Deram-me o sonho que eu tinha desde que era uma criança pequenina...deram aos meus pais uma vida que eles nunca sonharam ter. Mas, no espaço de três anos, vocês arruinaram o sonho que me deram. Não me lembro da altura em que as coisas começaram a mudar, mas lembro-me perfeitamente do dia em que acordei, sozinho no meu quarto, e percebi que a minha vida já não era algo que eu gostava de viver.
Theo engoliu em seco, inclinando-se mais na direção do microfone.
- Vocês...e agora falo para vocês, que me estão a filmar e a gravar, porque mesmo depois de todos estes anos consigo reconhecer as vossas caras. Vocês estavam em todo o lado. Sempre que eu saía de casa, era seguido por fotógrafos e paparazzi que queriam saber de tudo o que se passava na minha vida e, quando eu não facilitava essa tarefa, limitavam-se a inventar coisas sobre mim. Tornaram o Levi Saint que tinha sido criado numa espécie de monstro que nem eu nem ele éramos, mas as vossas palavras foram o suficiente para eu deixar de gostar daquilo que fazia. Não estou a culpar apenas os rumores, porque isso seria simplificar demasiado uma situação que era a perfeita definição de complexa... - Theo respirou fundo e agarrou-se com mais força ao pódio. – Passado dois ou três anos de Levi Saint ter sido criado, comecei a ter ataques de ansiedade. Porquê? Nunca soube bem a resposta, mas tenho a certeza absoluta de que estava interligado com o facto de eu ter medo de sair de casa. Isto, quando estava em casa, porque meses passavam sem que eu sequer visse os meus pais pessoalmente.
Arden agarrou a almofada com ainda mais força, até sentir os braços tensos demais e obrigar-se a largá-la, sem nunca deixar de olhar para a televisão.
- A adrenalina que os concertos me davam transformou-se muito rapidamente em pânico. Para conseguir atuar, tinha que tomar calmantes ao ponto de já não me reconhecer. Isto prolongou-se durante meses, anos, até eu decidir finalmente que a minha vida não valia a pena. O sonho que eu perseguira e que vocês me deram tornara-se um pesadelo...a carreira que tinha tudo para ser glamorosa era um monstro de sete cabeças, para mim, e eu já não conseguia lidar com tudo aquilo. Lembro-me muito claramente do dia em que eu decidi que, eventualmente, ia morrer. Não sabia quando, nem como, nem onde, mas sabia que iria acontecer, porque era a única solução que me parecia lógica. Mas, excetuando os ataques de pânico diários que me debilitavam ao ponto de eu quase não conseguir andar – Theo não largou o pódio, num medo visível de cair, mas toda a gente percebeu o que aquela tentativa de gesto quis dizer. Ele quis mostrar que, naquele dia, naquele momento, lhe estava a acontecer o mesmo. – eu era perfeitamente saudável. A única opção era eu retirar a minha própria vida. E, quando acordei no dia do meu vigésimo quinto aniversário, eu soube que aquele seria o dia. Acordei particularmente deprimido e com um ódio imenso a mim próprio, à minha vida e ao Levi Saint. Portanto, engoli toda a caixa de comprimidos que me tinham sido receitados para a ansiedade.
O operador de câmara fez um ótimo trabalho ao filmar, Arden conseguiu notar, e o microfone deveria ser bom porque ela conseguiu quase ouvir o som das respirações a paralisarem. Toda a gente estava presa no discurso menos que eloquente de Theo, repleto de respirações pesadas e de pausas para ele recuperar o fôlego. Ele estava exausto e toda a gente conseguia percebê-lo, por isso é que todos se mantiveram calados. Se ele tivesse aparecido perfeitamente saudável e contente, tinha sido julgado mas, mostrando as suas fragilidades, a exata razão pela qual se tinha tentado matar...ninguém o conseguia julgar. Nem mesmo os jornalistas mais cruéis e desprezíveis – como aqueles em que Arden se inseria, na sua opinião.
- Por isso, quando um artigo vos diz que eu fingi a minha morte, não se enganem. Eu tentei matar-me...só não resultou. Acordei de madrugada, numa cama de um hospital, e vi a minha família a chorar. Depois de perceber que eles tinham ficado arrasados com os meus atos, eu arrependera-me, mas também sabia dentro de mim que eu iria voltar a tentar. A necessidade de acabar com Levi Saint e com tudo aquilo que ele significava era grande demais. Vocês têm que entender quando eu digo que eu já não aguentava mais estar no centro das atenções...que já não aguentava cantar, que não o fiz durante estes cinco anos porque, sempre que o fazia, tinha vontade de chorar. Os concertos que eu dava deixaram de ser o reflexo do meu sonho mas passaram a ser um pesadelo. Sobreviver à minha tentativa de suicídio e voltar a ser o cantor que vocês conheciam era impensável. Eu ia tentar de novo. Por isso, quando eu sugeri fingir que a minha morte tinha sido bem sucedida, para voltar a viver como Theo e não como Levi Saint, foi para poupar aos meus pais a dor de ver o seu filho morrer. Poupar à minha irmã a perda de um irmão. Poupar-me a mim de me ver a falecer de novo, aos poucos, sempre que me olhava ao espelho. Nunca quis magoar, enganar, dissimular ou trair ninguém. Só quis...só quis sobreviver.
Theo queria chorar, era óbvio, mas também era óbvio que ele continuava a ter alguma força dentro de si e que estava a usá-la. A sua pele estava cada vez mais pálida e os seus olhos pareciam muito mais cansados que no início do seu discurso. A sua voz estava rouca, fraca, mas ele não tinha água perto de si. Arden quis estar perto dele, mas sabia que só faria pior. O tempo em que ela era uma fonte de segurança para Theo tinha acabado e a culpa tinha sido dela própria.
- Pensando para trás, não sei bem o que eu esperava que acontecesse. Eu ponderei tudo e mais alguma coisa na altura, acreditem, mas na realidade nunca me vi a viver muitos mais anos. Tudo o que eu conhecia eram ataques de pânico e pensamentos suicidas e, por isso, quando imaginei fingir a minha morte, imaginei alguns anos de descanso, perto da minha família, até morrer. Claramente não aconteceu, e ainda bem que não, de certa forma. Hoje tenho trinta anos e, apesar de todos os problemas que me assombraram na altura me assombrarem ainda, eu percebo que isso só aconteceu porque eu nunca lidei bem com a morte de Levi Saint.
Arden concordou, mas não lhe cabia concordar, por isso manteve-se calada, mesmo que não tivesse ninguém perto dela para ouvir.
- Destes cinco anos, três foram passados fechado em casa. Vendi praticamente tudo menos esta casa e os meus carros. Não que precisasse, mas queria que os meus pais tivesse sempre uma conta bancária segura para o resto das suas vidas. Com algum dinheiro que tinha de parte, criámos a Fundação Saint, que todos sabem que ajuda pessoas com problemas mentais. Queria ajudar as pessoas que, como eu, estavam presas em si próprias. Depois de três anos, fartei-me de estar fechado em casa e comprei uma peruca, sobrancelhas e bigodes postiços e lentes de contacto falsas. Tornei-me numa nova pessoa, Peter Landon, que era completamente invisível para o mundo. Soube bem, até deixar de resultar. E agora, aqui estou eu, a falar com vocês. Já sabem tudo o que merecem saber...sabem a minha história, a minha perspetiva. Espero que, com tudo isto em mente, consigam olhar para mim e ver mais que o Levi Saint. Porque ele já não existe. Eu não voltarei a dar concertos, a criar música, a dar entrevistas. Tentei matar-me para tentar matar Levi Saint, fingi a morte para o matar também, mas nunca realmente saiu de dentro de mim. Pois é isso que estou a fazer agora. Calculo que tenham algumas perguntas, por isso vou deixar que as f-faç...
Theo não conseguiu terminar a frase, porque a força dos seus braços falhou-lhe ao mesmo tempo que ele vomitou no chão e caiu para o lado.
Arden estava, de novo, a chorar.
o meu theo </3
este seu discurso atingi-me diretamente no coração, mas também acho que é algo que ele precisava de dizer e que lhe fez bem. aos poucos, ele chega ao seu objetivo!
obrigada a quem tem lido e espero que estejam a gostar <3 faltam apenas 11 capítulos até ao final eheh
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