Capítulo Trinta e Um

- Oh, graças a Deus. Estás mesmo aqui?

- Não vim para ficar, mãe. – ela viu os olhos da senhora à sua frente a entristecerem rápido e sentiu um aperto no coração. Estava cansada de fazer isso às pessoas.

- Entra. Estás demasiado magra e vais comer uma refeição decente.

E antes que Arden pudesse discutir, a sua mãe tinha agarrado a sua mão e puxado para dentro de casa. Sem saber bem o que dizer, por a sua mãe lhe parecer tão diferente, seguiu a mulher que lhe puxava o braço. Arden procurou a voz familiar do seu pai, mas não ouviu nada e estranhou automaticamente a ausência da televisão ligada e da voz grave e ainda com sotaque do seu pai a reclamar com as notícias que ouvia. A sua mãe continuava a puxá-la pela casa, até a levar à pequena cozinha, decorada com padrão xadrez vermelho e branco tal e qual como ela se lembrava. Quando entrou na pequena divisão, Arden foi confrontada com uma imagem que definitivamente não esperava. O seu pai, numa cadeira de rodas, com a pele mais pálida do que alguma vez ela a tinha visto.

Sotirios Kallis era um homem que, tal como Arden, conseguia controlar qualquer grupo de pessoas que o rodeasse. Mas, naquele momento, ele era quase uma miniatura do que tinha sido em toda a sua vida. Arden continuou a olhar, especada, para o homem com quem ela era tão involuntariamente parecida, e depois olhou para a sua mãe, que esperava uma reação da filha com olhos tristes. A mãe de Arden era uma senhora pequena, com feições frágeis e suaves, e olhos azuis claros comuns na Noruega, o seu país-natal. Por uns momentos, Arden olhou para os seus dois pais alternadamente, continuando a considerar que era a perfeita mistura das duas nacionalidades que a tinham criado. Sempre fora mais parecida com o seu pai, mas os seus olhos eram a exata cópia dos da sua mãe.

- O que é que aconteceu? – ela perguntou, baixinho. O seu pai parecia não conseguir mexer muito bem o seu pescoço, porque não olhou para ela.

- Foi atropelado há dois anos, Arden.

- Arden? – ouviu o seu pai perguntar e estremeceu. Embora o seu corpo estivesse fraco, a sua voz continuava exatamente igual. Potente.

- Olá, pai.

E, com um pequeno empurrão da sua mãe, Arden foi levada até à mesa onde o seu pai estava. Observou as feições do homem que a tinha criado e ensinado a ser como era e percebeu que, apesar de ele lhe ter parecido incrivelmente fraco ao início, estava igual. A sua pele estava mais pálida, sim, mas talvez fosse do facto de já não conseguir mexer-se tanto como costumava fazer. Sotirios Kallis era o homem mais ativo que ela conhecia. Habituado desde pequeno a fazê-lo, mesmo depois de ela nascer, ele ainda conseguia acordar às cinco da manhã, tratar do seu quintal nas traseiras da casa por umas horas e, às oito e meia sem falha, ter energia para ir trabalhar o resto do dia. Os avós de Arden tinham emigrado da Grécia depois de passarem todas as suas vidas a guardarem dinheiro para o fazer, com Sotirios a ajudar a acumularem dinheiro. Mesmo depois de emigrarem, algo que tinham feito no intuito de deixar de trabalhar no campo, o pai de Arden não tinha conseguido deixar essa vida para trás.

Arden nunca soubera exatamente a história de como os seus pais se conheceram, mas sabia que tinha sido durante os anos de faculdade dos dois. Os avós paternos de Arden tinham obrigado o seu pai a estudar e ele fizera-o, mas procurara a vila mais remota que conseguia assim que terminara os estudos. Anja, apesar de ser intrínseca e eternamente uma rapariga da cidade, tinha gostado da ideia de se mudar para uma vila completamente diferente daquilo a que estava habituada. Não que ela tivesse alguma vez opinião na matéria, porque o pai de Arden era o homem mais persuasivo e manipulador que ela conhecia, mesmo depois de tantos anos a trabalhar na sua área.

- O que é que estás aqui a fazer? – Arden olhou diretamente nos olhos do seu pai, de um castanho quase negro, e demorou uns tempos a responder.

- Achei que devíamos conversar.

- Sobre o quê? Tu foste embora. Não há nada a falar.

- Não fales assim com a tua filha, Sotorios! – Arden deixou os seus olhos arregalar quando ouviu o tom que a sua mãe usou.

Por muito que tudo estivesse fisicamente igual, qualquer coisa havia mudado na relação entre os seus dois pais e Arden queria saber com todas as suas forças o que tinha acontecido. A sua mãe, a mulher pequena e submissa que sempre fora, estava finalmente a repreender o homem com quem tinha escolhido passar a sua vida. Nunca, em todos os anos que vivera com eles até finalmente se despedirem, tinha Arden visto a sua mãe levantar a voz ao marido. Sotorios era um homem naturalmente imponente, controlador, que, mesmo que nunca maltratasse nenhuma delas, nunca as deixara ter a sua liberdade total.

- Arden, senta-te. Vou buscar-te um prato.

A jornalista olhou, ainda completamente estupefacta, para a sua mãe e sorriu-lhe, assentindo. Anja Kallis sorriu de volta, contente, deixando pai e filha a encararem-se. Ele olhou para ela atentamente, tentando notar no que estava diferente nas feições da sua filha e ela fez o mesmo, se bem que a sua pequena tarefa era muito mais simples que a do seu pai. Sentada, ela conseguia estar ao nível dos olhos dele e, embora fosse mais fácil para ela lhe dizer tudo o que tinha a dizer e que guardava há mais de cinco anos...ao encará-lo, as palavras falharam-lhe. Mordeu o lábio e desviou o olhar para a sua mãe, que parecia pular de armário às gavetas, ao retirar o prato e os talheres para dar a Arden.

- Aqui tens, querida. Come. Estás muito magra.

- Já me disseste isso, mãe. – Anja riu alto, não querendo saber do tom seco e profissional da sua filha. – Se o pai já não consegue trabalhar...como é que têm sobrevivido?

- Eu trabalho, agora.

- Tu? – Arden não sabia se conseguia aguentar mais informações chocantes naquele dia, mas nada lhe parecera tão estranho como a sua mãe finalmente trabalhar e ser ela a sustentá-los.

- A tua mãe é assistente pessoal do presidente da carpintaria. Lembras-te? – Arden assentiu.

Tudo aquilo parecia-lhe estranhamente familiar. Sempre calculou que, quando visse os seus pais de novo, eles a olhassem da mesma forma que a olharam antes de ela decidir ir embora. Mas as suas vidas pareciam ter mudado tanto que todos eles estavam diferentes e, ao mesmo tempo, iguais. A pequena cozinha típica de uma casa campestre parecia-lhe dar-lhe mais conforto do que ela esperava e Arden apanhou-se a gostar daquilo. Não estando na cidade, sem a tensão de todo o drama que a sua profissão lhe parecia dar e sem as imagens de Theo a puxar os seus cabelos à sua frente, Arden sentia-se como se tivesse entrado numa outra dimensão. Na sua antiga casa, o tempo sempre parecera não mover.

Arden calculou rapidamente que a culpa era sua de não saber as novidades. Quando a sua mãe ligara, ela ouvira dois minutos da sua voz fraca e assumira que tudo tinha permanecido igual. No entanto, com os seus pais à sua frente, um numa cadeira de rodas e outro com um certo novo ritmo no seu andar, Arden percebeu o erro que tinha feito ao não dar à sua mãe a hipótese de ser mãe. Ela dissera-lhe que estava orgulhosa e Arden não tinha sentido nada, exatamente como Theo acusara na noite em que discutiram. Ao olhar para o seu pai e para a sua expressão perfeitamente indiferente, voltou a pensar nas parecenças entre os dois.

- Como está a tua vida? A carreira?

- Não sei se é boa ideia falarmos disso. – respondeu ao seu pai, querendo, por enquanto, evitar qualquer tópico que fosse sensível demais. A sua mãe sentou-se finalmente entre os dois e ocupou-se a colocar comida em todos os pratos.

- Porque não? Não está a correr bem?

Pela primeira vez, Arden não estava orgulhosa pela forma como a sua carreira estava a correr. Claro, profissionalmente estava ótima – melhor que nunca – mas as consequências dos seus atos começavam a tornar-se pesados. A vida dela era mais fácil quando ela ignorava o facto de ter uma consciência. Olhando para os seus pais, para as primeiras pessoas que ela abandonou em troca da sua carreira – e da sua felicidade, inicialmente -, o seu coração ficava pesado. O casal era apenas mais uma lembrança daquilo que fizera ao Theo, mesmo que as consequências tivessem sido bastante piores daquela última vez.

E, ao olhar para a sua mãe, ela teve vontade de contar tudo aquilo que tinha feito. Sabia que os ia desiludir mais uma vez, no entanto, e por isso não o fez. Limitou-se a encolher os ombros e a garantir de que tudo estava bem, embora visse no olhos de ambos os seus pais que nenhum deles acreditava nela. No entanto, era uma segurança para ela saber que eles não tinham como ler os seus olhos – só Theo conseguia fazer isso. Eles não conseguiam olhar para ela e perceber exatamente aquilo que estava a sentir, não conseguiam perceber que ela estava a mentir. Pelo menos, era isso que ela achava e foi isso que disse a si própria para se forçar a não começar a chorar como uma criança.

- Hoje publiquei um artigo importante. – preferiu responder.

- Importante? – o seu pai questionou, crítico, como sempre, da profissão que ela tinha escolhido. Mas, daquela vez, a sua mãe fuzilou-o com o olhar, fazendo-o calar-se e continuar a comer.

- Lembram-se daquele cantor que eu gostava quando era mais nova? – começou por questionar. A sua mãe riu alto, assentindo. A energia que a sua mãe emanava tirou-lhe qualquer tensão que Arden pudesse sentir nas suas costas. – Ele morreu há cinco anos.

- Oh, sim. Eu lembro-me. Foi tão trágico. – a sua mãe interveio, comendo mais um pouco, depois de beber um gole da sua água. Arden assentiu, num gesto único.

- Descobri que ele falsificou a sua própria morte. O artigo que publiquei foi sobre isso, a...a desmascará-lo.

- Não pareces muito feliz, Arden. – o seu pai comentou mas, em vez de a sua voz soar crítica como anteriormente, soou suave. Preocupada.

- Talvez seja porque ele...ele era o meu namorado.

Anja Kallis deixou cair o seu garfo no prato, fazendo um barulho estridente que fez com que o pai de Arden a fuzilasse com o olhar. Arden baixou a cabeça, não querendo ver nenhum dos olhares desiludidos que eles inevitavelmente teriam nas suas faces. Comeu um pouco e aguentou o silêncio durante o espaço de cinco minutos, que lhe pareceram quase horas, porque nenhum dos seus pais fez o esforço de mudar de assunto ou de falar entre eles. Quase como se conhecessem a Arden que ela era com vinte e sete anos e não a Arden que os abandonou, como se ela nunca tivesse mudado, eles olharam-na como se conseguissem ver todas as emoções que passavam dentro dela.

- Arden...como assim o teu namorado?

E, sem que nenhum deles insistisse muito, Arden apanhou-se a fazer o que fazia melhor: a contar uma história. Mas, pela primeira vez desde que ela se reconhecia como pessoa, Arden Kallis estava a contar a sua história e não a de outras pessoas. Contou tudo, desde o primeiro artigo sobre Michael James – que os seus pais já tinham lido – até ao artigo que publicara naquele mesmo dia, sobre Theo. Desabafou como nunca tinha desabafado com ninguém, tudo enquanto comia a refeição caseira que a sua mãe tinha preparado – sempre a contar com a possibilidade de que alguém pudesse aparecer e precisar de comida, como tinha acabado por acontecer – e bebia água até sentir a sua bexiga cheia. Arden nunca falara tanto sem ser interrompida. Estava habituada a pessoas que aguentavam as suas respostas curtas e diretas ao ponto, apenas Theo tinha alguma vez feito com que ela sentisse que precisava de comunicar mais e melhor.

Demorou dez minutos a contar tudo o que tinha a contar e, surpreendentemente, quando terminou, sentia-se melhor. Sentia como se um peso tivesse saído dos seus ombros ao poder partilhar o que se passava na sua vida com alguém. Enquanto falava de Theo, ela sorria porque se lembrava de todos os momentos que tinham passado na sua casa, no seu sofá ou na sua cama, e enquanto falava da sua carreira e dos dramas que certos artigos tinham criado, Arden mostrara-se satisfeita. Mesmo naquele dia, em que vira Theo a desabafar em público, não conseguia arrepender-se completamente de ter publicado o artigo daquele dia.

- Como é que ele está? – a sua mãe perguntou, com olhos preocupados. Arden gostou do facto de o foco da sua preocupação ser Theo e não ela.

- Estável.

- Pobre rapaz. – a jornalista assentiu, sentindo-se ainda um monstro.

Depois, viu o seu pai a esticar o seu braço, decorado com pelos escuros caraterísticos da sua ascendência, e sentiu a sua mão ser envolvida na sua, muito maior e marcada pela idade. Arden, por momentos, escolheu não falar, não sabendo lidar com o primeiro ato de carinho proveniente do seu pai em anos. Mais que uma década, talvez. Sotorios Kallis olhou para a sua filha com outros olhos, pela primeira vez, e viu finalmente a forma como ela estava quebrada por dentro. E sentiu-se culpado.

- Peço desculpa por te ter feito achar que tinhas sempre que escolher entre alguém e a tua carreira, filha. – ele olhou para ele, confusa. – Tu podes ter as duas coisas ao mesmo. Não tens que sacrificar nada porque, enquanto tiveres que escolher entre duas coisas boas, vais ficar sempre sem uma delas e nunca vais ser realmente feliz. Aprendi isso da pior maneira.

- É verdade, mas tu mereceste sofrer. – e, completamente fora do comportamento que se esperava de uma senhora com quase cinquenta anos, Anja Kallis colocou a língua de fora para o marido.

Arden riu alto, abanando a cabeça.


muito muito obrigada a quem tem lido! 

eu cá acho que foi importante para a Arden ver os seus pais numa luz diferente - de adulto para adulto - e também acho que foi importante para o casal mais velho ter uma mudança de dinâmica entre eles. acredito que, num mundo em que o pai da arden não tivesse passado pelo atropelamento, cinco anos nunca seriam suficientes para esta mudança de mentalidade. talvez seja eu a ser cínica, mas do que conheço, uma situação como aquela que arden passou com os pais seria difícil de superar, tendo em conta a personalidade de todos os envolvidos.

o que é que acham disto?

quem está orgulhoso da nossa arden linda que finalmente está a contar a sua própria história? e a tentar mudá-la, também!!


espero que estejam a gostar!

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