Capítulo Trinta e Quatro

Arden Kallis sabia o que tinha a fazer e, portanto, entrou no andar em que trabalhava, na sede da revista, como quem dominava todo o mundo. Era das coisas que ela melhor sabia fazer e aproveitou todos os seus dotes, gostando de novo da atenção que recebia sempre que os seus saltos altos vermelhos pisavam o chão e furavam o silêncio do seu local de trabalho. Caminhou seguramente, lentamente, apreciando o facto de todos os pescoços se virarem na sua direção, todos os olhos a olharem como quem adora a um deus. Arden Kallis tinha subido mais um degrau na sua carreira e estava feliz, era óbvio para quem olhasse para ela. Talvez toda a gente também tivesse notado que ela, pela primeira vez, usava um sorriso na sua face.

Natalie certamente notou, pela forma como se engasgou na água que estava a beber quando Arden se aproximou dela. A jornalista olhou para ela com uma sobrancelha levantada e obrigou-se a não sorrir, esperando que a secretária se embrulhasse no seu discurso como fazia sempre que via a sua empregadora a demonstrar emoções. Olharam uma para a outra durante uns segundos, até Arden decidir terminar a pequena tortura e desejar um bom dia. Natalie entregou-lhe a chávena reutilizável cheia do café que Arden gostava e, ao bebê-lo mesmo em frente da secretária, fechou os olhos ao lembrar-se do café horrível que tinha bebido a caminho da casa dos seus pais.

- Obrigada, Natalie.

- Bom trabalho, Menina Kallis. – e Arden continuou a andar, na direção do seu escritório.

Destrancou a porta e entrou, tirando o sobretudo que cobria os seus ombros depois de pousar a chávena reutilizável na sua mesa. Sentou-se na sua cadeira almofadada e, depois de ligar o computador, rodopiou na mesma, preferindo olhar o horizonte da cidade enquanto esperava. Naquele dia tinha acordado bem-disposta, porque sabia exatamente o que lhe cabia escrever de seguida. A folha de papel azul-clara esperava por ela na gaveta que permanecia sempre trancada e ela sabia que aquele era o passo certo a tomar a seguir. Tinham passado três dias desde que Theo falara ao público e, graças a Holand, ela sabia que ele estava em casa, seguro das insistências dos jornalistas.

Todos os dias, enquanto fazia o pequeno-almoço, ela ligava a televisão – algo que nunca fizera na sua vida – e, depois de colocar o volume no máximo que conseguia sem disturbar os vizinhos, cozinhava enquanto ouvia as últimas novidades da vida de Theo. De vez em quando, pedia a Holand para verificar como ele estava, já que os pais de Theo tinham adorado o guarda-costas, e ele era a espécie de mensageiro entre Arden e o casal. John e Linda mostraram-se acessíveis, provavelmente devido ao facto de Holand ter desempenhado um papel bastante importante no dia em que Theo falara na espécie de conferência de imprensa. Arden suspeitava até que uma amizade se tinha desenvolvido entre os três.

Desde aí, Arden só tentara contactar o ex-cantor uma vez. Mandara-lhe uma mensagem depois de ter jantado, naquele fatídico dia, e nunca esperara resposta. Ele nunca lhe respondera, como ela calculara, mas qualquer coisa naquela pequena interação unilateral descansara o coração da jornalista. Os últimos três dias tinham sido passados em casa, alternando entre sucumbir às insistências dos seus pais para que ela lhes ligasse e às de Joslin. A senhora de pele mais escura tinha sido a única a ficar visivelmente desiludida com Arden pelo que fizera a Theo – talvez porque, ao contrário de com os seus pais, não existia tensão entre as duas – e não se cansara de a repreender em todas as chamadas nos últimos dias. Arden gostara do facto de não estar a ser poupada das consequências do que fizera, pelo menos por uma pessoa da sua vida.

Os pais de Theo pareciam estar cegos pelo agradecimento que sentiam por ela se preocupar com o seu filho, assim como pelo facto de já poderem viver a sua vida livremente, para conseguirem efetivamente criticar Arden pelo que tinha feito. Na sua vida profissional, já tinha recebido inúmeros elogios pela forma como ela divulgara a informação – embora ninguém soubesse quem eram as fontes que ela citara – e, principalmente, por ter visto algo que nenhuma outra pessoa em todo o mundo vira. Ninguém sabia que Arden tinha traído a confiança daquele que era, na teoria, o seu namorado; sobretudo ninguém sabia que o seu teorético namorado era o cantor em questão. Nem ninguém alguma vez iria saber.

O fim de semana permitira que Arden pudesse realmente pensar nas hipóteses que tinha. Cogitando sobre todos os aspetos que a mantinham na revista em que ela trabalhava, Arden chegou eventualmente à decisão de que, num futuro próximo, se iria demitir e provavelmente trabalhar num jornal. Ela tinha um jornal muito específico em mente – o maior jornal crítico e de oposição ao poder que existia no país – e, durante a semana, dera a si mesma a tarefa de criar o currículo mais impressionante que conseguisse. A sua vida e os seus feitos tinham que ser suficientes para conseguir um cargo de jornalista naquele que ela considerava ser o seu futuro. Arden estava cansada de trabalhar num ambiente como o da revista que Anthony Jenkins comandava e, principalmente, estava cansada de trabalhar sob uma Chefe de Edição como Emily Roberts.

Por isso, mandaria o currículo e, se fosse chamada para uma entrevista e eventualmente aceite, despedir-se-ia. Mesmo que começasse no fundo da pirâmide, Arden pelo menos sentiria que tinha como evoluir, em vez de ter que pisar as pessoas de quem gostava apenas para chegar a algum lado na sua carreira. Nunca mais queria passar por uma situação em que tivesse que escolher entre duas coisas que deviam ser igualmente importantes na sua vida e sua conversa com o seu pai ajudara-a imenso nisso. Ela nunca seria realmente feliz se tivesse que escolher entre duas coisas que lhe trouxessem felicidade. Enquanto não conseguissem coexistir na vida de Arden, a jornalista nunca estaria realizada.

Depois de horas deitada na cama – algo que ela não fazia desde os seus anos de adolescente -, Arden chegara à conclusão que, apesar de o seu artigo ter sido importante porque, afinal, ela desmascarou uma mentira e era isso que jornalistas faziam, estava demasiado próximo do limite do sensacionalismo para ela se sentir totalmente confortável com a sua conduta. Sabia que o ultimato de Emily tinha sido isso mesmo - sensacionalismo ou nada - e ela queria evitar algo do género ao máximo. O jornal para o qual ela estava a ponderar fazer isso tinha uma ética completamente diferente, uma com a qual ela se identificava. Arden, no espaço de uma semana, deixou de querer saber do facto de trabalhar na aparente melhor revista do país. Era-lhe incrível como os seus critérios mudaram apenas por ter decidido fazer alguma coisa em relação à parte de si sobre a qual nunca falava – a sua família.

Quando se afastou finalmente dos seus pensamentos, Arden reparou que o seu computador já tinha iniciado e focou-se na tarefa que tinha em mãos. Após retirar a pulseira do seu pulso, abriu a gaveta em questão e retirou a pequena folha azul-clara, fechando a gaveta logo de seguida. Colocou a dita folha bem no centro da sua mesa e, com os dois braços pousados no material da secretária, observou o rascunho que tinha escrito. Tinha escrito aquela ideia quando trabalhara na edição limitada da revista, dedicada a Theo. Na altura, ela ainda não sabia que Theo era Peter, mas sabia que aquele seria um artigo incrivelmente interessante. Talvez fosse exatamente o artigo certo para servir como resposta ao próprio artigo que ela tinha escrito sobre Theo.

Enviou um email a Emily a sugerir a ideia e, mesmo sem a autorização, começou a trabalhar nele. Ocupou o seu tempo ao ligar a psicólogos e psiquiatras, assim como a celebridades que toda a gente sabia que tinham passado por problemas semelhantes aos de Theo. Ser Arden Kallis abria-lhe imensas portas e ela estava finalmente preparada para voltar a usar os seus recursos para algo que lhe desse satisfação - e não a mais ninguém. Ao escrever aquele artigo, não se importou com ninguém a não ser com as possíveis pessoas que aquilo poderia ajudar. Sentia, dentro de si, a mesma sensação que a trespassara quando escrevera o artigo sobre Joslin. Aquele artigo ia mudar mentalidades e ela faria questão disso.

«Continua.»

O email com que Emily respondera a Arden fez a jornalista revirar os olhos e deixar-se rir. A Chefe de Edição já estava visivelmente esquecida do ato de ser jornalista, de tantos anos enfiada num escritório a editar o trabalho dos outros, assim como da sensação de justiça que estava associada à profissão. Ser jornalista era lutar por aqueles que não tinham voz e, se a tinham, que não sabiam como a usar. Arden sabia disso e, por o saber, é que ela estava a escrever incrivelmente rápido no seu computador, a aproveitar toda a inspiração que lhe surgia.

Para completar o primeiro rascunho do seu trabalho, tentou contactar a dita Fundação que os pais de Theo tinham criado após a sua suposta morte. A sua chamada foi atendida pelo vice-presidente da fundação, que reconheceu logo o nome da jornalista e se mostrou disponível para a ajudar no seu seguinte projeto. Arden Kallis estava mais que satisfeita pela forma como tudo estava a correr numa simples manhã e fez uma nota mental para si própria para confiar mais nos seus instintos. Naquela manhã, acordara de bom humor e utilizara isso em seu favor e, devido a isso, tudo lhe estava a correr bem. Ela esperava conseguir publicar o artigo na seguinte sexta feira, quando marcasse a primeira semana desde que Theo fora exposto, para marcar definitivamente o início de uma nova era.

Embora eles não estivessem a falar um com o outro, porque ambos precisavam claramente de espaço para lidar com as suas respetivas vidas, Arden sabia que, eventualmente, teria que tentar falar com ele. Sabia também que o facto de ele expor todos os problemas que guardara dentro de si mesmo quando estava no centro das atenções fora uma grande viragem na sua história e na história da forma como a sociedade via os problemas de saúde mental. Arden queria ajudar com isso, tal como achava que tinha conseguido achar Theo nos meses em que tiveram uma relação. Queria ajudar da única maneira que podia, a abrir espaço para as pessoas sem voz contarem as suas histórias, a contar a história mais importante de todas.

- Muito obrigada pelo seu tempo, Nathan. – agradeceu ao vice-presidente da fundação.

- De nada. Bom trabalho.

- Igualmente. – e, sem dizer mais nada, desligou a chamada.

Arden, por momentos, parou e olhou para tudo o que já tinha escrito. Viu as horas e, depois de ligar a Natalie e pedir-lhe um almoço, continuou a trabalhar. Quando todas as palavras do esboço de artigo lhe pareciam iguais, Arden abriu um novo documento e começou a tratar do currículo que mandaria ao jornal ao qual ela se queria candidatar. Colocou todos os sítios por onde tinha trabalho, todos os prémios ganhos, formações tiradas e cursos adicionais que tinha feito ao longo do tempo. Arden sabia que o seu currículo era impressionante o suficiente para pasmar qualquer pessoa que estivesse à procura de um novo jornalista para a sua equipa, principalmente depois de o seu nome ter sido associado a todos os movimentos de protesto que tinham ocorrido nos últimos quatro anos, mas ela queria deixar de ser uma máquina objetiva e imparcial. Queria mostrar que apenas ela merecia ser contratada para o posto de trabalho porque apenas ela tinha certas caraterísticas.

Sentiu uma adrenalina que já não sentia desde que fora contratada na revista da qual se iria despedir. A adrenalina causada pelo facto de ter de provar que era alguém merecedor de ser contratado – por ter que provar que era suficiente. Arden já se sentia demasiado segura de si própria, demasiado confiante e, enquanto escrevia o seu currículo, soube que tinha sentido saudades da adrenalina que o limbo lhe dava. Ela já se havia tornado demasiado experiente na arte do equilíbrio para poder sentir algum prazer naquilo que fazia naquela revista – estava definitivamente na hora de mudar. Iria finalmente começar uma nova etapa da sua vida, uma nova escada; teria finalmente caminho por onde subir, ao contrário de onde estava. Começaria de novo, sem um presidente como Anthony Jenkins que a preferia por ela ser atraente e sem uma Chefe de Edição como Emily Roberts que parecia odiá-la por ser tão boa.

- Posso? – perguntou Natalie, depois de bater à porta do escritório. Arden anunciou que sim, numa voz mais alta. – Aqui tem o seu almoço, Menina Kallis.

- Fecha a porta, Natalie, quero falar contigo. – a secretária mostrou-se preocupada por uns segundos, então Arden sentiu a necessidade de a descansar. – Não é nada de mal, não te preocupes.

Natalie assentiu, fechando então a porta com o seu pé, e levou um saco de papel até à secretária de Arden. A jornalista conseguiu sentir o aroma da sua sopa preferida, aquela que comia todos os dias no trabalho, e que Natalie conseguia sempre trazer-lhe a horas. Por momentos, ficou parada a olhar para a rapariga à sua frente e não soube se deveria dizer-lhe o que pretendia dizer. Olhava para Natalie e via imenso potencial, mas também lhe parecia que a rapariga não tinha muitas ambições para a sua vida. Talvez o pedido que Arden lhe ia fazer ajudasse a colocar as coisas em perspetiva, lhe desse mais hipóteses.

- O que se passa, Menina Kallis? – Natalie questionou, continuando preocupada embora Arden não pretendesse isso.

- Não quero que isto saia deste escritório, Natalie, mas eu estou a planear demitir-me. Quero trabalhar noutro jornal.

- Oh, uau, não estava à espera disso. – Arden permitiu-se rir, profissionalmente, e assentiu. – Posso perguntar porquê?

- O ambiente não é o adequado para mim. – respondeu apenas, inclinando-se na sua cadeira e contendo a vontade de rodopiar. – Mas tenho uma proposta para ti. – Natalie manteve-se perfeitamente atenta, dando espaço para que Arden continuasse a falar. – Como sabes, atualmente, é a empresa que te paga o ordenado, não sou eu. Quando eu eventualmente me demitir, indo trabalhar no jornal que pretendo ou não, provavelmente vai-te ser designado outro cargo. A minha sugestão é esta: vem comigo.

- Consigo?

- Não como minha secretária, porque não garanto que vá precisar. Espero começar num cargo mais baixo do que o que tenho agora... Mas como minha assistente pessoal, talvez. Aprendiz, se quiseres...se te interessares por Jornalismo. – Natalie assentiu freneticamente. – Eu vejo muito potencial em ti e gostava de pensar que, ao meu lado, conseguirias envolver-te o suficiente neste meio para, quando chegasse a tua vez de escreveres artigos, já terias portas abertas em todo o lado. O que achas?

Natalie não conteve um pequenino guincho, fazendo Arden voltar a rir, daquela vez mais livremente. Assentiu, com um sorriso enorme no seu rosto, e anunciou que, quando Arden apresentasse a demissão, ela também o faria. Arden ficou feliz por ter alguém tão leal ao seu lado e agradeceu-lhe, dispensando-a por então e desejando-lhe um ótimo trabalho para o restante do dia.

- Bom trabalho, Menina Kallis.

- Arden. – corrigiu a jornalista, fazendo Natalie chocar contra a porta que tinha aberto. Arden olhou-a atentamente, tentando não rir.


o início de uma amizade muito bonita <3

como estão a achar o crescimento da arden? e da demição?

a meu ver, era um pouco inevitável ela demitir-se. desde o início da história que vemos que ela se sente um pouco reprimida pela sua editora - e pelo dono da revista que, embora não tenha aparecido fisicamente...é um nojento, na minha cabeça - mas até Theo ela achava que aquela revista era a melhor forma de fazer o que queria fazer. quando lhe põem nas mãos um ultimato entre basicamente CRIAR uma história ou arriscar o esquecimento do seu nome como jornalista naquela revista...a arden percebeu.

sucumbiu uma vez ao ultimato, mas a bússola moral dela acabou por lhe indicar que, apesar de não se arrepender do que escreveu (e sim apenas de magoar theo!), não queria passar por outra situação daquelas. e é por isto que a minha arden é a minha melhor anti-heroína 

muito muito obrigada a quem tem lido! espero que estejam a gostar

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