Capítulo Dois

- Arden Kallis. O que é que posso fazer para ajudar?

- Jake. – cumprimentou Arden, sempre focada na foto aberta no ecrã do seu computador.

Michael Jones. Dezasseis anos. Morto por um polícia. Assassinado por um polícia.

- Deixa-me adivinhar, queres informações sobre o caso Jones? – Arden sorriu arrogantemente, embora soubesse que ele não a conseguia ver. – Não te consigo ajudar.

- Hm, de certeza? – questionou, rodando um pouco na sua cadeira. Não queria olhar mais para a fotografia que ocupava todo o ecrã. – Isso diz-me mais do que achas, Jake.

O facto de Jake não querer ajudá-la significava que era algo secreto. Porque é que haveria de ser secreto? Polícias matavam pessoas inocentes a toda a hora. Arden semicerrou os olhos, tentando pensar em todas as razões pelas quais Jake estava a negar-lhe a ajuda. Poderia ser para não ser descoberto, mas Jake nunca se preocupara com isso; ele preferia ajudar Arden a desmascarar, aos poucos, a corrupção presente nas autoridades a manter o seu trabalho. Ela sabia isso, por isso é que estava tão confusa. O seu cérebro estava cheia de opções, desde as mais inocentes até às mais improváveis, mas Arden sabia melhor que descartar qualquer uma.

- Jake. – Arden nunca pedia por favor, e Jake sabia disso. Já se conheciam há demasiados anos para ele saber o que o seu tom queria transmitir.

- O edifício está caótico desde ontem, Arden, não sei o que queres que te diga. Eu próprio sei pouco. – ele estava a mentir e ela sabia que ele sabia que era notável. – Pronto! A única coisa que eu te consigo dizer por telefone é que o agente está identificado e que ele estava relacionado com o rapaz. Acha-se que pode ter sido um crime passional e não racial.

- Queres dizer que...

- Não quero dizer nada. Não insistas mais.

- Está bem. Por agora.

Jake terminou a chamada sem sequer se despedir, tal como era habitual. Arden sentia o seu cérebro a rodar com a pouca informação que recebera e mandou email a Emily, dizendo que tinha novas pistas e que já estava pronta para procurar a mãe da vítima. Depois de receber a autorização devida – porque Arden tinha que pedir autorização -, a jornalista levantou-se, compôs o tecido do seu top preto de seda e voltou a colocar o sobretudo sobre os ombros. Voltou ao computador, desligou-o, e pegou na sua mala, colocando lá o gravador da revista juntamente com uma caneta e um caderno. Saiu do seu escritório e anunciou a Natalie de que ia seguir informações para uma notícia, recebendo um sorriso caloroso de volta.

- Não passes chamadas para o meu telemóvel, por favor. Quando eu voltar, leio qualquer mensagem que seja relevante. – Natalie assentiu, escrevendo o pedido num pequeno papel para não se esquecer.

- Bom trabalho, Menina Kallis.

- Obrigada, Natalie.

Assim que o restante do escritório notou que a grande Arden Kallis tinha saído do seu escritório particular, voltaram todos a virar-se para ela. Ela adorava sentir-se como uma celebridade, mas naquele momento a única coisa que queria fazer era correr atrás da informação. Não o fez, no entanto, porque Arden Kallis não corria, e caminhou segura e elegantemente a linha reta de volta ao elevador. Quando entrou no elevador, voltou a virar-se de frente para o escritório, sabendo que alguns olhos ainda estavam nela, e voltou a endireitar a postura e a levantar o queixo, até as portas voltarem e o elevador descer.

Ela sabia que era atraente. Nos seus vinte e sete anos de vida, não tinham sido poucas as pessoas a dizer-lho. Além disso, antes de se fixar seguramente como jornalista numa revista cultural e de informação, ela tinha passado pelo ramo da moda. Na primeira revista em que trabalhara, tinham-lhe pago mais para fazer algumas sessões fotográficas quando algumas das modelos estavam indisponíveis. A sua descendência grega, do lado paterno, dera-lhe feições proeminentes e fortes, como as suas maçãs do rosto definidas e os seus lábios vermelhos escuros. Por outro lado, a sua descendência noruega, do lado materno, dera-lhe os olhos azuis claros que contrastavam todas as suas outras feições. Cabelo preto, pele morena. Arden Kallis sabia que era atraente.

Além disso, sabia exatamente como utilizar aquilo com que nascera para ajudar as suas ambições. Talvez se não fosse tão atraente não teria conseguido arranjar tão facilmente bons trabalhos ao início - e definitivamente não seria a jornalista preferida do seu patrão. Esse conhecimento fora o suficiente para ela desenvolver uma frieza em redor de tudo o que se pudesse relacionar com o seu trabalho, sabendo que nunca nada era seguro na área em que trabalhava. No dia anterior tinha sido nomeada para o maior prémio jornalístico, mas no dia seguinte poderia publicar uma notícia má o suficiente para ser renegada por todos os que interessavam. Não aconteceria, claro, porque Arden nunca se deixaria fazer um erro desses, mas era possível. Era sempre possível.

Quando voltou a sair do elevador, ignorou a pessoa que estava ao balcão da entrada do edifício e desceu até ao parque de estacionamento subterrâneo, preferindo sempre descer esses últimos andares a pé do que ir até lá de elevador. Encontrou o seu carro preto facilmente, nunca se esquecendo onde estava, e mandou uma mensagem a Natalie a pedir-lhe que fosse buscar-lhe o almoço para quando ela voltasse ao escritório. A secretária respondeu ainda quando Arden estava a colocar o cinto, e a jornalista sorriu um pouco para a lembrança da boa ética de trabalho da sua secretária.

Emily tinha escrito, no email, a última morada conhecida da família da vítima e era para lá que Arden se dirigia. Pelo caminho, ela escolheu não ouvir rádio, mas sim ligar a todas as fontes que pudessem ajudar-lhe a arranjar mais informações sobre o caso. Ligou à rapariga que conhecia na equipa forense, à senhora idosa que trabalhava na empresa de limpezas de cenários daquele género, e ao seu amigo detetive. Jake trabalhava nos recursos humanos da polícia e era ótimo para conseguir informações burocráticas, mas era Mike que tinha as informações mais cruas, aquela que se ouviam nas salas de café e de almoço. As que Arden queria.

Pela altura em que o carro de Arden entrou no bairro onde tudo tinha acontecido, o mesmo bairro em que o rapaz supostamente vivera, Arden tinha informações suficientes para fazerem o seu cérebro girar, como acontecia sempre em casos do género. A Polícia nunca passava as informações corretas para os media, procuravam sempre ocultar algum detalhe em particular, mas de forma inteligente o suficiente para direcionar todos aqueles que quisessem saber a verdade num caminho completamente diferente do correto. Felizmente, todos os contactos que Arden possuía eram de confiança e, tal como Jake, sabiam que ela nunca escrevia uma notícia apenas por escrever. Se havia algo que insultava Arden Kallis, era ser chamada de sensacionalista.

Procura a verdade.

Com as palavras de Emily na sua mente, Arden passou pelo exato cruzamento em que tudo tinha acontecido. Conseguia ver rapazes que pareciam ter a idade da vítima sentados no passeio, a olharem para um ponto específico na estrada. Local esse que estava branqueado pela substância específica que a equipa forense utilizava para limpar o sangue. Arden observou atentamente o grupo de rapazes, assim como as raparigas que estavam atrás deles, agarradas umas às outras a chorar. Embora a jornalista tivesse continuado sem expressão, dentro de si o seu coração apertou. Crianças daquela idade não deveriam perder os seus amigos num ato tão violento como aquele; elas deveriam sentir-se seguras nas suas próprias casas e não sentiam. Não era justo.

Alternando entre olhar para o seu telemóvel, que continha as informações da mãe da vítima no ecrã, e para a estrada, eventualmente conseguiu chegar ao sítio certo. O pequeno jardim da frente estava cheio de flores, ora em ramos ora individuais e, na varanda de madeira que levava à porta da frente, estava uma senhora sentada na cadeira de baloiço. De longe, era visível que a senhora estava completamente presa no seu cérebro, e Arden imaginou que a sua expressão estivesse desligada e longínqua. Arden aproximou-se lentamente, não querendo sobressaltar a senhora, que continuava a baloiçar, instintivamente mexendo as pernas, embora estivesse a olhar em frente, sem ver nada.

Arden Kallis tossiu suavemente, querendo chamar a atenção. A senhora abanou a cabeça, quase como se Arden a tivesse abanado para a despertar.

- Oh, desculpa, querida. Não te vi aí. Estava a pensar. – e deu um sorriso triste.

Geralmente, Arden odiava que lhe chamassem por outra coisa que não fosse o seu nome, mas ao olhar para aquela senhora, não conseguiu dizer nada. Limitou-se a sorrir, uma mistura de um sorriso honesto com o seu sorriso profissional, e deu um passo em frente. Felizmente, existia um pequeno caminho feito de pedras desde a estrada até à varanda, ou os saltos vermelhos que ela usava estariam completamente arruinados pela lama. Tinha chovido naquela parte da cidade, de certeza.

- Bom dia. – Arden esticou a sua mão, dando dois passos em frente. – O meu nome é Arden Kallis. Sou jornalista.

- Jornalistas? Já? – a senhora murmurou para si própria, embora tenha sido perfeitamente audível. – Não vos esperava tão cedo.

- Então? – Arden questionou, querendo criar um ambiente mais confortável.

- É que nestes casos, normalmente, espera-se sempre que os pais digam alguma coisa, ou que os polícias deem uma conferência de imprensa. Nunca ouvi falar de uma jornalista a ir bater às portas a pedir informação.

- Eu sou um pouco diferente. – concordou Arden, assentindo. A sua expressão continuava apática, mas com um toque mais suave nas suas feições. – Infelizmente já tem experiência com estas situações, então?

- Oh, sim. – encolheu os ombros e, naquela altura, a senhora pareceu a Arden ser trinta anos mais velha do que era. Os seus olhos mostravam cansaço. – O meu marido e o meu filho mais velho.

Arden paralisou e processou a informação. À sua frente estava uma senhora, sentada numa cadeira de baloiço, com a cara perfeitamente indiferente, a dizer-lhe que toda a sua família direta tinha sido morta por polícias. De certa forma, Arden não estava espantada com as terríveis probabilidades que afetaram aquela família, mas com a maneira como a senhora se lhe apresentava. Quando soube que era uma jornalista, o seu instinto não foi mandá-la embora, como Arden esperava. Talvez a senhora estivesse demasiado cansada para falar, para resistir.

Arden apertou a sua mala na sua mão, querendo, mais que nunca, partilhar aquela história.

- Não tenhas pena de mim, querida. A vida é assim. – quando viu o olhar revoltado de Arden, a senhora sorriu-lhe. – Não devia, claro. Mas é assim. De qualquer forma, ainda não me apresentei...o meu nome é Joslin. Prazer em conhecer-te, Arden.

- Igualmente. – e Arden não mentiu. À sua frente estava uma pessoa completamente fascinante, como é que poderia não ser um prazer conhecê-la?

- Senta-te aqui. – bateu no espaço ao seu lado na cadeira de baloiço. – Do que queres falar?

A rapariga mais nova olhou para Joslin atentamente, querendo decifrá-la, mas não conseguiu. Joslin encarou-a com um olhar suave, mas vazio, e Arden não sabia bem como lidar com aquela situação. Não era a primeira vez que lidava com pais de vítimas de situações daquele género, mas nunca lhe tinha acontecido a pessoa estar naquele estado. Normalmente, mandavam jornalistas embora com gritos raivosos ou aproveitavam a oportunidade de serem ouvidos. Joslin não parecia querer nenhum dos dois, e isso confundia Arden. No entanto, obedeceu à senhora mais velha, presa na forma como ela se mostrava e posicionava no seu mundo e perante aquela situação.

- O meu Michael era um anjo. – começou, com um sorriso suave. – O meu marido e o meu filho mais velho, Jason, faleceram quando ele tinha apenas doze anos, num protesto em relação a já não me lembro o quê. – abanou a cabeça. – Naquele altura, fiquei revoltada. Claro que fiquei, tinha perdido duas pessoas. Mas não tinha voz, ninguém me ouvia. E, mesmo que me ouvissem, eu estava mais preocupada a cuidar do Michael e a tratar dos funerais. Só queria que eles os dois tivessem o seu descanso. Arden, queres gravar-me? Provavelmente queres. Liga o gravador.

- De certeza? – Joslin assentiu, sorrindo um pouco.

- Consigo ver que estás desconfortável e peço desculpa. Mas ainda não me mentalizei bem de que estou sozinha. Estou aqui sentada quase que à espera que o meu Michael venha das aulas. – Arden sentiu a sua respiração prender na garganta, e Joslin suspirou. – Se calhar é mais fácil se me fizeres perguntas, Arden.

A mais jovem assentiu, pensando no que perguntar.

- Primeiro, quero pedir desculpa por vir tão cedo.

- Não tens que pedir desculpa. Se eu fizesse o que tu fazes, talvez não teria esperado tanto. Consigo olhar para ti e perceber que vais ser justa, e isso chega-me. – Arden assentiu quase impercetivelmente, tocada pelo elogio. – Faz-me perguntas.

- Estava presente quando o seu filho... - preferiu para de falar, não querendo perturbar Joslin demasiado.

Joslin assentiu, no entanto, algo que chocou Arden.

- Estavam a ir para casa? – Joslin voltou a assentir. – Como é que...como é que tudo aconteceu?

- Não sei bem. Foi tudo tão rápido. – baixou a cabeça, pela primeira vez mostrando quão afetada estava com tudo. – Estávamos a andar lado a lado, no cruzamento e, de repente, passa um carro da polícia. Não é anormal passarem por aqui polícias, e nós sabemos melhor que nos metermos à frente deles. Deixámo-los fazerem as suas rondas e pronto. No entanto, o polícia que estava no banco do passageiro olhou muito atentamente para o meu Michael...o carro continuou o seu caminho, até virarem de repente. fFez um barulho enorme. Quando dei por mim, o agente que tinha olhado para nós estava a esticar o braço para fora do carro e a disparar.

- Lembra-se da cara dele? Qualquer coisa que ajude a identificá-lo?

- Oh, sim, querida. Conheço a sua cara melhor que as minhas próprias mãos. Tenho pesadelos com aquela expressão todas as noites.

- Mas o seu filho só...

- Arden. – Joslin interrompeu-a e colocou uma mão em cima do joelho da mais nova que estava mais perto. – Olha para mim. Tu sabes o que estou a tentar dizer. Há mais de dezasseis anos que, todas as noites, tenho pesadelos com a cara daquele polícia.

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