Capitulo 6

O som de batidas insistentes na porta me arrancou de um sono profundo. Por um momento, eu não sabia onde estava. Meu corpo estava pesado, como se tivesse passado por uma ressaca emocional, mas sem o benefício de uma bebedeira para justificar. A luz fraca da manhã atravessava a janela entreaberta, iluminando os cantos do quarto de forma suave, quase irritante.

A batida na porta continuou, agora acompanhada de uma voz abafada que reconheci imediatamente.

— Marcus! Sou eu, Rafael. Abre logo!

Suspirei, esfregando o rosto com as mãos. Minha cabeça ainda estava enevoada, e cada movimento parecia exigir um esforço desproporcional. O corpo de Guilherme ainda estava estendido ao meu lado, parcialmente coberto pelos lençóis. Por um instante, observei o ritmo suave de sua respiração, como se quisesse adiar o inevitável. Me perguntando como saímos do seu apartamento e viemos para o meu quarto de hotel.

Mais uma batida, mais forte dessa vez.

— Tô indo! — Respondi, minha voz saindo rouca e arrastada.

Levantei-me com dificuldade, sentindo o peso do cansaço nas pernas e o eco do calor da noite anterior ainda preso na pele. Peguei a primeira camiseta que encontrei jogada no chão, vestindo-a sem me preocupar se era minha ou de Guilherme. Enquanto caminhava até a porta, o piso frio do quarto contra meus pés parecia zombar da minha lentidão.

Quando abri a porta, Rafael estava parado ali, impecável como sempre. O contraste entre nós dois era quase cômico. Ele tinha o semblante sério, mas seus olhos varreram minha figura com um misto de curiosidade e julgamento.

— Você tá bem? — Ele perguntou, franzindo o cenho.

— Nunca estive melhor. — Respondi, secamente, me apoiando no batente da porta.

Rafael suspirou, passando a mão pelos cabelos em um gesto exasperado.

— Precisamos conversar. Tem novidade sobre o caso. E, sinceramente, você não parece em condições de processar nada agora.

— Eu tô ouvindo. Fala. — Cruzei os braços, tentando parecer mais atento do que realmente estava.

— Aqui no corredor? — Ele ergueu uma sobrancelha. — Se importa se eu entrar?

Hesitei, olhando de volta para dentro do quarto, onde Guilherme ainda dormia tranquilamente. Não era exatamente o cenário ideal para uma conversa séria sobre crianças desaparecidas e ONGs misteriosas.

— Dá um minuto. — Fechei a porta na cara dele antes que pudesse protestar.

Voltei para o quarto e toquei de leve o ombro de Guilherme, que resmungou algo inaudível antes de abrir os olhos lentamente.

— Tá tudo bem? — Ele perguntou, a voz ainda carregada de sono.

— Preciso resolver umas coisas. Pode ficar aqui o tempo que quiser. A porta tranca sozinha quando você sair.

Ele assentiu, um sorriso preguiçoso surgindo no rosto antes de se virar para o outro lado, puxando o lençol sobre os ombros. Eu respirei fundo, pegando a mochila no canto do quarto e verificando se havia algo importante que precisava levar.

Quando abri a porta de novo, Rafael estava exatamente onde o deixei, de braços cruzados, visivelmente impaciente.

— Pronto. Vamos.

— Quer me explicar o que tá acontecendo ou você vai continuar parecendo que foi atropelado por um caminhão? — Ele perguntou enquanto caminhávamos pelo corredor em direção ao elevador.

— Dormi pouco. Só isso.

Rafael me lançou um olhar rápido, como se soubesse exatamente o motivo, mas decidiu não comentar. Pelo menos, não agora.

— Bom, espero que esteja pronto pra ouvir o que descobri, porque isso vai te deixar com mais perguntas do que respostas.

E ele tinha razão.

Já na rua, depois de três copos de café e uma longa conversa que parecia não levar a lugar algum, eu finalmente decidi dizer o que estava preso na minha garganta desde o começo.

Rafael estava sentado à minha frente, em um daqueles bancos de praça que pareciam ter sido feitos para desafiar qualquer tentativa de conforto. Ele segurava o copo de café como se fosse uma âncora, o vapor subindo em espirais entre as nossas palavras.

— Eu sei que temos um grande caso aqui, Rafael — comecei, meu tom mais firme do que eu esperava. — Mas, em casa, também temos um.

Ele ergueu os olhos para mim, curioso, mas não surpreso. Não era novidade que eu estava me segurando desde o começo dessa viagem.

— Em São Paulo, não vamos resolver nada. — Continuei, gesticulando com o copo quase vazio na mão. — É um pouco visível que ambos os casos são parecidos. As mesmas ONGs. As crianças são da mesma cidade. Tudo parece conectado.

Rafael balançou a cabeça, mas ainda parecia cético.

— Algo diferente, então? Alguma ligação que ainda não vimos? Porque, Marcus, honestamente, estamos andando em círculos.

— Justamente isso. — Dei um gole no café, sentindo o gosto amargo tomar conta da minha boca. — A diferença não tá aqui. Tá lá, em São Belmiro. A Casa de São Sebastião não é só uma coincidência. É o elo. Gustavo, as crianças desaparecidas, as atividades da ONG... É tudo parte do mesmo quebra-cabeça.

Ele estreitou os olhos, me estudando com aquela intensidade que às vezes me irritava, mas que também o tornava bom no que fazia.

— Então você acha que devemos voltar?

— Acho que deveríamos nunca ter saído. — Respondi, olhando para o movimento da rua ao nosso redor, tentando organizar meus próprios pensamentos. — Ficar aqui só nos distrai. A verdade tá na nossa cara, mas estamos longe demais pra enxergar.

Rafael ficou em silêncio por um momento, girando o copo de café entre os dedos. Então, ele soltou um suspiro pesado e deu um gole longo, como se precisasse de toda a cafeína do mundo para encarar o que eu estava dizendo.

— Tudo bem, Marcus. — Ele finalmente disse, sua voz mais baixa, quase resignada. — Voltamos pra São Belmiro.

E com isso, um peso enorme pareceu sair dos meus ombros. Mas, ao mesmo tempo, uma nova pressão começou a se formar. Porque, pela primeira vez, eu sabia exatamente o que precisávamos fazer. O problema era: e se eu estivesse errado?

O dia se arrastou, como se o tempo estivesse em câmera lenta. Quando finalmente deixamos a cidade, o sol já começava a mergulhar no horizonte, tingindo o céu com tons alaranjados e roxos. O silêncio no carro de Rafael era tão espesso que parecia uma presença física, algo que eu quase podia tocar.

Ele mantinha as duas mãos firmes no volante, os olhos fixos na estrada. A música, que sempre preenchia os momentos de vazio entre nós, não passava de uma ideia distante. Não havia nem mesmo o ruído do rádio ligado. Apenas o ronco constante do motor, o som rítmico dos pneus no asfalto, e minha respiração que parecia alta demais no espaço confinado.

Eu olhava pela janela, observando a paisagem mudar, de prédios altos e luzes da cidade para campos abertos e árvores que se estendiam como sombras vivas. O silêncio me dava tempo demais para pensar.

Pensei em Guilherme, no jeito casual com que ele havia entrado na minha noite, trazendo um tipo de distração que eu não sabia que precisava. Pensei em Camila, com seus olhos pesados de dor, e na forma como ela segurava o colar na mão, como se fosse uma âncora para não desabar. Pensei nas crianças, Isabela e Matheus, gêmeos de oito anos que haviam desaparecido como se o mundo simplesmente os tivesse engolido.

Rafael parecia impenetrável, seu rosto uma máscara de concentração. Eu sabia que ele também estava perdido em pensamentos. Rafael não era o tipo de pessoa que aceitava falhas, e o caso estava começando a parecer uma pilha de peças desconexas que não formavam nada.

— Eu estava pensando... — Comecei, mas minha voz soou alta demais no silêncio, e ele apenas ergueu uma sobrancelha, sem tirar os olhos da estrada.

— Hm? — Ele respondeu, um som curto e sem compromisso.

Eu me encolhi no assento, arrependido de ter quebrado a quietude.

— Nada. Deixa pra lá.

Ele deu de ombros, e o silêncio voltou a reinar.

O peso da responsabilidade estava ali, entre nós, como um terceiro passageiro no carro. Por mais que não falássemos, ambos sabíamos que estávamos indo para São Belmiro com mais perguntas do que respostas. E com cada quilômetro que passava, a sensação de urgência aumentava, como se estivéssemos correndo contra algo que ainda não podíamos nomear.

Finalmente, Rafael suspirou, um som longo e cansado que preencheu o espaço vazio.

— Vamos resolver isso, Marcus. — Ele disse, sua voz baixa, mas firme.

— Espero que sim. — Respondi, mais para mim do que para ele, olhando para a escuridão crescente da estrada à nossa frente.

E assim continuamos, o silêncio entre nós dizendo tudo o que as palavras não conseguiam. Quando Rafael estacionou o carro em frente meu prédio e pude sentir o aroma e o vento frio de São Belmiro, meu corpo se acalmou.

— Nos vemos amanhã? — Questionou ele me olhando. Rafael era um homem bonito, não me intimidava, mas ele tinha uma presença marcante, seu cheiro de um âmbar amadeirado e café fresco era hipnotizante.

— Claro, amanhã cedo — respondi, desfazendo o cinto de segurança e me inclinando ligeiramente para pegar minha mochila no banco de trás.

Por um instante, hesitei antes de sair do carro. O olhar de Rafael era firme, mas carregava algo mais. Talvez fosse o cansaço do dia, ou talvez fosse a forma como o silêncio havia preenchido tantas lacunas que, naquele momento, palavras pareciam desnecessárias.

— Boa noite, Marcus. — Ele disse, com um sorriso leve, mas os olhos ainda mantinham aquela intensidade.

— Boa noite, Rafael. — Respondi, abrindo a porta e descendo.

O ar de São Belmiro me envolveu como um cobertor. Era diferente do caos de São Paulo. Mais calmo, mais contido, como se a cidade inteira tivesse decidido sussurrar em vez de gritar. Fechei a porta do carro e me virei para subir as escadas do prédio, sentindo o peso do dia lentamente se dissipar.

Antes de entrar, olhei por cima do ombro e vi Rafael ainda parado no carro, as mãos no volante, como se estivesse perdido em pensamentos. Por um momento, pensei em voltar, dizer algo, quebrar a linha tênue de profissionalismo que nos mantinha à distância. Mas logo ele acenou brevemente com a cabeça, uma despedida silenciosa, e deu partida no carro, desaparecendo na rua.

Subi as escadas, sentindo o aroma familiar de madeira antiga e flores secas que preenchia o hall do prédio. Meu apartamento estava exatamente como eu havia deixado: um caos organizado, com papéis espalhados pela mesa e um copo vazio de café ao lado do computador.

Deixei minha mochila no chão e me joguei no sofá, sentindo o peso do dia finalmente me alcançar. Meus pensamentos, no entanto, ainda estavam longe. Entre Rafael, o caso das crianças e até mesmo Guilherme, tudo parecia interligado de uma forma que eu ainda não conseguia compreender completamente.

Passei as mãos pelo rosto, tentando organizar as ideias, mas a única coisa que consegui fazer foi fechar os olhos e deixar a escuridão me levar, esperando que o dia seguinte trouxesse alguma clareza. Tudo se dissipou quando Sophia saiu do quarto de uma forma animada que eu não a via ter com muita frequência, ela veio em minha direção se jogando ao meu lado no sofá. Que saudade eu havia sentido da minha menina.

— Quem era aquele homem misterioso e gato que te trouxe de volta? — disse ela em uma animação eufórica.

Abri os olhos e sorri de canto, tentando processar a súbita mudança de energia no ambiente. Sophia sempre tinha esse efeito, transformando qualquer cenário em algo mais leve, mais vivo.

— Ah, então você estava espiando pela janela? — perguntei, me ajeitando no sofá.

— Claro que estava! Como se eu fosse perder a oportunidade de ver quem é o cavalheiro misterioso que te trouxe para casa. — Ela apoiou os cotovelos nas pernas, me encarando com os olhos brilhantes de curiosidade. — Então, quem é ele?

Soltei um suspiro, sem saber exatamente o que dizer.

— Ele é... complicado — respondi, com um sorriso cansado.

Sophia franziu o cenho, inclinando-se mais perto.

— Complicado bom ou complicado ruim?

— Complicado porque estamos trabalhando juntos, só isso. — Passei a mão pelos cabelos, tentando mudar o rumo da conversa, mas sabia que com Sophia isso era quase impossível.

— Trabalho, trabalho, trabalho... — Ela revirou os olhos, dramática. — Você sempre coloca uma barreira quando as coisas começam a ficar interessantes.

— Não tem nada interessante aí, Soph. — Insisti, embora soubesse que minha expressão provavelmente dizia o contrário.

— Ah, claro. E eu sou a rainha da Inglaterra. — Ela sorriu, cruzando os braços.

Dei uma risada baixa, sacudindo a cabeça.

— Ele é só um colega de trabalho, estávamos investigando o caso. Nada além disso.

— Mas ele é gato, né? — perguntou ela, com um olhar travesso.

— Eu não vou responder isso.

Sophia riu alto, jogando a cabeça para trás.

— Isso já é resposta suficiente.

Fiquei em silêncio por um momento, observando-a. Era bom tê-la ali, com sua energia contagiante e sua maneira de tornar tudo mais leve.

— E você? Como foi seu dia? — perguntei, tentando desviar o foco de mim.

Sophia abriu um sorriso largo.

— Foi ótimo, mas podemos falar disso depois. Agora quero saber mais sobre esse caso e, claro, sobre o "cavalheiro misterioso".

Eu sabia que não teria descanso até contar algo, então respirei fundo e decidi dar só o suficiente para saciar sua curiosidade — ou pelo menos tentar. Eu revirei os olhos, rindo de leve da insistência de Sophia. Ela sempre soube me arrancar informações, mesmo que fosse na base da teimosia.

— Certo, o nome dele é Rafael. — Comecei, me rendendo.

— Hum, Rafael. Nome de galã. — Sophia sorriu, apoiando o queixo nas mãos como se estivesse assistindo a um romance se desenrolar diante de seus olhos. — E?

— E... ele é uma pessoa interessante. Determinado, sério quando precisa ser, mas também sabe como aliviar a tensão quando o ambiente fica pesado.

Sophia arqueou uma sobrancelha, interessada.

— E bonito, né? Não esquece de falar isso.

— Sim, ele é bonito. — Admiti com um suspiro resignado, arrancando um sorriso vitorioso dela.

Ela bateu palmas, como se tivesse acabado de ganhar uma competição.

— Sabia! E você está com esse sorriso aí porque está gostando de trabalhar com ele.

Eu ri, desviando o olhar.

— Não é isso, Soph. O caso é... complicado, e ele ajuda a manter as coisas em perspectiva. É só isso.

— Claro, claro. — Sophia balançou a cabeça, claramente cética.

Aproveitei o momento de silêncio para mudar o rumo da conversa.

— E você, alguma novidade? — perguntei casualmente, esperando que ela fosse começar a falar de algo trivial.

O sorriso de Sophia murchou um pouco, e sua expressão ficou mais séria.

— Na verdade, sim. — Ela suspirou. — O velório do Gustavo Husky vai ser amanhã.

Meu corpo ficou tenso imediatamente ao ouvir o nome.

— Velório? — perguntei, minha voz saindo mais grave do que eu esperava.

Sophia assentiu, com uma expressão de pesar.

— Sim, ele... você sabia, né? Você está investigando o caso.

Fiz que sim com a cabeça, tentando processar a informação. Um velório, minha ida a São Paulo ocasionou u velório repentino sem ter nos avisado, agora tinhamos um caso a solucionar, um adolescente morto e seu velório, duas crianças desaparecidas que moravam nessa cidade... as coisas estavam ficando estranhas.

— Onde vai ser?

— Na igreja São Sebastião, no centro. Vai ser algo mais reservado, só para amigos próximos e familiares, mas ouvi que algumas pessoas da Casa de São Sebastião também vão aparecer.

Eu me inclinei para frente no sofá, sentindo meu coração acelerar. O nome da ONG imediatamente chamou minha atenção.

— Casa de São Sebastião? — perguntei, tentando manter a voz neutra.

Sophia me olhou curiosa, mas respondeu sem hesitar.

— Sim, parece que ele era bem envolvido com eles. Por quê?

Parei por um momento, o peso da conexão começando a se formar em minha mente. Gustavo, a ONG, as crianças desaparecidas... tudo parecia estar começando a se entrelaçar, mas eu ainda não conseguia ver o quadro completo.

— Nada. — Respondi, me esforçando para parecer despreocupado. — Só achei curioso.

Mas por dentro, eu sabia que o dia seguinte poderia trazer mais respostas do que eu estava preparado para ouvir.

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