Capitulo 4

Eu estava ainda deitado na cama, encarando o teto escuro do quarto. Não conseguia parar de pensar na morte daquele garoto. Talvez meus sentimentos fossem egoístas, afinal, eu pensava nele apenas como uma peça de um quebra-cabeça que precisava resolver o mais rápido possível. Mas, no fundo, a preocupação vinha de outro lugar. Pensava em Sophia. Ela era minha agora, minha responsabilidade. E se algo como o que aconteceu com aquele menino acontecesse a ela? Só de imaginar, meu peito apertava, e eu sabia que jamais me perdoaria.

Virei para o lado, o colchão rangendo levemente sob o movimento. A luz fraca do corredor entrava pelas frestas da porta, iluminando as formas indefinidas dos móveis. Sophia dormia no quarto ao lado, e esse era o único pensamento que me dava alguma paz.

Respirei fundo, mas o sono não vinha. Resolvi sair da cama. Ficar ali deitado, preso nos próprios pensamentos, só fazia tudo piorar. Caminhei até a cozinha, esfregando os olhos enquanto o cheiro de café do dia anterior ainda pairava no ar. Peguei a cafeteira e comecei a preparar mais uma xícara.

Enquanto a água fervia, meu celular vibrou na mesa. Uma mensagem. Peguei o aparelho e vi que era de Collins:

"Temos mais um caso, dois irmãos estão desaparecidas. Preciso que vá até São Paulo."

Por um momento, senti o corpo inteiro gelar. Duas crianças desaparecidas? Isso não era só mais um caso; era um pesadelo. O peso da responsabilidade me atingiu como um soco. Não era algo que eu pudesse ignorar ou postergar até o dia seguinte.

Dei um gole rápido no café, o gosto amargo arranhando minha garganta. Peguei o casaco jogado na cadeira e fui até o quarto de Sophia. Ela dormia profundamente, com o rosto sereno iluminado pela luz que vinha do corredor.

— Volto logo, pequena. — Sussurrei, ajustando o cobertor sobre ela antes de sair.

No caminho para a delegacia, as palavras de Collins ecoavam na minha cabeça. "Duas crianças..." Não podia acreditar, o que estava acontecendo em São Paulo esses dias e a tudo o que vinha acontecendo na cidade.

Quando desci as escadas do prédio, o ar da madrugada bateu no meu rosto como um tapa gelado. As ruas estavam desertas, com apenas o som distante de um cachorro latindo e o ocasional farfalhar das folhas sendo levadas pelo vento. Eu ainda segurava o copo de café meio cheio, que tinha levado comigo por reflexo.

E então o vi. Rafael estava encostado no carro, as mãos nos bolsos do casaco e a expressão séria, típica dele. Uma luz fraca do poste mais próximo iluminava parcialmente seu rosto, mas era o suficiente para perceber que ele parecia tão exausto quanto eu.

— Não sabia que você fazia serviço de motorista agora. — Falei, tentando quebrar o clima pesado.

— Achei que seria bom economizar tempo. — Ele deu de ombros, mas o tom era carregado de algo mais. Cansaço, talvez, ou uma preocupação que ele tentava disfarçar. — Além disso, achei que você poderia querer companhia.

Suspirei, inclinando a cabeça para trás por um instante antes de abrir a porta do passageiro. — Vamos logo com isso, então.

Rafael deu a volta no carro, entrando no lado do motorista, e logo estávamos na estrada. O silêncio se instalou entre nós, pesado e incômodo. Apenas o som do motor e o asfalto passando rápido sob os pneus preenchia o vazio.

Eu olhei pela janela, as luzes da cidade ficando cada vez mais distantes enquanto nos aproximávamos da rodovia. Minha mente girava, uma tempestade de pensamentos desorganizados. Duas crianças desaparecidas. Gustavo. Matias. Tudo parecia conectado de uma forma que ainda não fazia sentido, mas eu sabia que estava lidando com algo maior do que eu queria admitir.

— Você acha que isso tem a ver com o Gustavo? — perguntei, quebrando o silêncio.

Rafael não respondeu imediatamente. Ele manteve os olhos na estrada, os dedos apertando levemente o volante.

— Ainda é cedo pra dizer. — Ele finalmente falou, mas o tom era mais evasivo do que eu esperava. — Mas se for, estamos lidando com algo grande.

Eu queria pressioná-lo mais, mas sabia que não adiantaria. Rafael era do tipo que só compartilhava informações quando tinha certeza delas, e, nesse caso, ele provavelmente estava tão no escuro quanto eu.

— Collins disse alguma coisa sobre as crianças? — insisti.

— Só que desapareceram no fim da tarde. A mãe foi quem ligou pra polícia. Disse que elas estavam brincando no quintal e, quando voltou da cozinha, não estavam mais lá.

A imagem de duas crianças brincando felizes e, de repente, sumindo sem deixar rastros me atingiu como um soco no estômago. Era o tipo de coisa que te fazia perder o sono, que te fazia questionar como alguém podia fazer algo assim.

— Vamos chegar na delegacia de São Paulo em umas duas horas. — Rafael disse, tirando-me dos pensamentos. — Quando estivermos lá, talvez consigamos alguma pista.

Assenti, mas não disse nada. O café no meu copo já estava frio, mas continuei segurando como se fosse um escudo contra os pensamentos que não queria ter. Olhei novamente pela janela, as luzes da rodovia agora iluminando apenas um vazio interminável à nossa frente.

Eu não sabia o que nos esperava em São Paulo, mas sabia que, depois dessa noite, nada mais seria o mesmo.

Enquanto o carro ganhava velocidade pela estrada, Rafael quebrou o silêncio ao abrir o porta-luvas. A ação chamou minha atenção, mas eu não disse nada, só observei. Ele puxou um copo térmico e o colocou no console entre nós, sem sequer desviar os olhos da estrada.

— Trouxe isso pra você. Sei que não sai de casa sem café, mas duvido que o que você fez às pressas seja bom. — Ele comentou, com um meio sorriso de canto de boca, algo raro vindo dele.

Olhei para o copo térmico, depois para ele. O gesto me pegou desprevenido, mas eu não deixei transparecer.

— Tá tentando me comprar agora? — perguntei, arqueando uma sobrancelha enquanto pegava o copo e abria a tampa. O aroma forte de café fresco invadiu o carro, muito melhor do que o que eu tinha feito na cafeteira velha de casa.

— Só tentando evitar que você desmaie antes de resolver esse caso. — Ele rebateu, ainda com aquele tom ligeiramente debochado.

Dei um gole e quase suspirei. Estava quente, amargo na medida certa. Era evidente que ele tinha parado em algum lugar para pegar isso antes de vir me buscar, e, por mais que eu odiasse admitir, o gesto me deu um certo alívio.

— Bem melhor do que o que eu fiz. — Murmurei, mais para mim mesmo, enquanto segurava o copo com as duas mãos, sentindo o calor atravessar o metal.

— Claro que é. Achei que você já soubesse que eu sou bom em pensar nas coisas que você esquece. — Ele disse, o tom casual, mas carregado de algo próximo a cuidado.

Eu não respondi. Rafael tinha essa estranha habilidade de ser irritante e atencioso ao mesmo tempo, algo que me desarmava em momentos que eu não queria baixar a guarda. Continuei bebendo o café, observando as luzes piscando na rodovia enquanto o carro nos levava ao destino.

O silêncio voltou a tomar conta do carro, quebrado apenas pelo som do motor e das rodas deslizando no asfalto molhado. O café quente parecia ser a única coisa a manter meus nervos sob controle, enquanto minha mente já começava a formar cenários do que poderíamos encontrar em São Paulo. Gêmeos desaparecidos. A ideia de duas crianças em perigo fazia meu estômago revirar.

Rafael parecia concentrado na estrada, mas eu sabia que ele estava tão preocupado quanto eu. Seus dedos apertavam o volante com força, os nós brancos contrastando com a pele bronzeada. De tempos em tempos, ele lançava um olhar na minha direção, mas não dizia nada.

Quando entramos na rodovia principal que levava à cidade, as luzes de São Paulo começaram a surgir ao longe, iluminando o céu nublado. Era sempre um choque deixar a tranquilidade da nossa cidade e encarar a magnitude da capital. A metrópole tinha uma energia que parecia devorar as pessoas, engolir seus segredos.

— Onde vamos começar? — perguntei, fechando o copo térmico agora vazio e colocando-o no console.

Rafael tirou os olhos da estrada por um segundo, lançando-me um olhar rápido.

— Primeiro, na delegacia local. Temos que falar com os pais das crianças. Eles estão em choque, mas podem ter algo útil pra nos contar. Depois, vamos ao último lugar onde as meninas foram vistas.

Assenti, apertando o cinto de segurança. Já estava me preparando mentalmente para as próximas horas, sabendo que seria um longo dia.

— Marcus. — A voz de Rafael soou mais suave dessa vez, quase hesitante.

— O que foi? — perguntei, virando-me para encará-lo.

— Só queria dizer que... você é bom nisso. Em se importar, sabe? Por mais que você finja que é tudo sobre resolver o caso, eu sei que você realmente quer ajudar essas pessoas.

A sinceridade nas palavras dele me pegou de surpresa. Fiquei em silêncio por alguns segundos, olhando pela janela enquanto as luzes da cidade se aproximavam.

— Não é uma escolha, Rafael. — Respondi, finalmente. — Se eu não me importar, quem vai?

Ele não respondeu, mas o silêncio que se seguiu foi diferente.

~*~

A delegacia de São Paulo era como todas as outras: paredes cinzentas, iluminação fluorescente, e o cheiro inconfundível de café velho e papel úmido. Entramos juntos, Rafael e eu, e fomos direcionados para uma sala no fundo. Lá, o delegado já nos esperava, com uma expressão cansada e uma pilha de papéis espalhada sobre a mesa.

O homem, de cabelos grisalhos e olhar atento, apertou minha mão e fez sinal para que sentássemos. Ele tinha um semblante pesado, marcado por anos lidando com situações como essa.

— Bom, senhores, obrigado por virem. A situação é complicada, e quanto mais ajuda tivermos, melhor. — Ele pegou duas fotos de um envelope e as deslizou pela mesa na nossa direção. — Essas são as crianças desaparecidas: Isabela e Matheus Ramos, oito anos, gêmeos.

Peguei as fotos e as examinei. Duas crianças sorridentes, com cabelos castanhos ondulados e olhos expressivos. Eles pareciam inseparáveis, o tipo de ligação que só irmãos gêmeos têm.

— A família é da sua cidade, São Belmiro, certo? — perguntou Ávila, olhando diretamente para mim.

Assenti, ainda segurando as fotos.

— Sim. Conheço a mãe deles, Camila Ramos. Ela é professora na escola da cidade.

— Eles estavam aqui de férias. Chegaram na semana passada. Estavam hospedados em um hotel na região central. — O delegado fez uma pausa, folheando alguns papéis antes de continuar. — Os pais disseram que as crianças estavam brincando no pátio do hotel ontem à tarde, mas, quando foram chamá-los para subir, eles tinham desaparecido.

— Nenhuma testemunha? Câmeras de segurança? — Rafael perguntou, inclinando-se para frente.

Ávila balançou a cabeça, frustrado.

— As câmeras do hotel estavam desativadas para manutenção, e ninguém parece ter visto nada suspeito. Estamos investigando possíveis testemunhas na região, mas, até agora, nada concreto.

Olhei novamente para as fotos. A ideia de que aquelas crianças poderiam estar em perigo fazia meu peito apertar.

— E a família? — perguntei. — Onde eles estão agora?

— No hotel. Tentamos convencê-los a ficar aqui na delegacia, mas a mãe se recusou a sair de lá. Está desesperada. O pai está um pouco mais calmo, mas também está muito abalado. Eles disseram que não querem sair do local até que tenhamos alguma notícia.

Rafael cruzou os braços, pensativo.

— Acha que pode ter ligação com algo da nossa cidade? Alguma rixa, alguma ameaça?

O delegado hesitou por um momento antes de responder.

— É uma possibilidade que não podemos descartar. Mas, até agora, não temos nenhuma evidência que conecte os desaparecimentos a São Belmiro.

Eu me levantei, ajustando o casaco.

— Precisamos falar com os pais. Entender o comportamento das crianças antes de desaparecerem. Qualquer detalhe pode ajudar.

Ávila assentiu, recolhendo os papéis.

— Vou levá-los até lá. Mas aviso: a mãe está em estado de choque, então sejam pacientes.

Rafael e eu trocamos um olhar breve, já nos preparando mentalmente para o que estava por vir.

Chegamos ao hotel, o mesmo onde as crianças gêmeas, Isabela e Matheus, haviam sido sequestradas. A sensação de tensão era palpável desde que entramos, como se o peso da situação pairasse sobre todos ali, mesmo que ninguém soubesse ao certo o que estava acontecendo. Camila e seu marido estavam hospedados ali, aguardando notícias, e agora era a nossa vez de tentar entender o que aconteceu.

— Vou ficar aqui no hall, Marcus, tentando conversar com os recepcionistas sobre as câmeras de segurança. Ver se conseguimos mais informações. — Rafael me disse antes de se afastar, com aquele tom de concentração que sempre assumia quando estava focado em algum detalhe importante. Eu assenti, sabendo que a parte dele no caso era essencial para conectar as peças que ainda estavam faltando.

Enquanto ele seguia para a recepção, eu me dirigi ao elevador. O quarto de Camila e do marido ficava no andar superior. A porta estava entreaberta quando cheguei, e entrei com um leve toque na madeira, tentando evitar parecer invasivo. Camila estava de pé, olhando pela janela, com as mãos postas nas costas, mas assim que ouviu o som dos meus passos, virou-se. O sorriso forçado no rosto dela me fez perceber o quanto tudo aquilo estava a afetando.

— Marcus... — ela me cumprimentou com uma voz trêmula, tentando parecer acolhedora, mas a dor era visível. — Pode entrar, por favor.

O quarto estava arrumado, mas o silêncio ali dentro era desconfortante. O pai das crianças, um homem magro e cansado, estava sentado na cama, o olhar perdido. Camila me convidou a sentar, e, antes que eu pudesse perguntar algo, ela já começava a falar, como se precisasse desabafar.

— Eles sempre foram crianças tão tranquilas, Marcus... participavam de tudo na cidade. A Isabela adorava as atividades de arte na Casa de São Sebastião, e o Matheus... ele sempre estava com a cabeça nas atividades esportivas. Nunca imaginei que algo assim pudesse acontecer, especialmente em um lugar como este. — Camila falou, os olhos marejados, mas sem deixar de tentar manter a voz firme.

Eu a observava, ouvindo atentamente cada palavra. E enquanto ela falava sobre os filhos e as atividades deles, uma peça se encaixou em minha mente. A Casa de São Sebastião... aquele nome não era estranho pra mim. Algo me dizia que havia uma conexão e não poderia ser uma coincidência. Casa São Sebastião era uma ONG localizada na cidade de São Belmiro, lembro de ter ouvido Sophia falar sobre Gustavo ter ligações com ONGs.

Antes que eu pudesse processar completamente, ouvi passos atrás de mim. Era Rafael, que finalmente subira. Ele havia conversado com os recepcionistas, mas sem novidades concretas até o momento. Ele entrou com um ar calmo, embora pudesse perceber que ele também estava absorvendo tudo ao redor. Ele se sentou ao meu lado, fazendo um gesto para Camila e seu marido, oferecendo uma palavra de consolo.

— Estamos aqui para ajudar, Camila. Sei que está sendo difícil, mas vamos fazer tudo o que for possível para trazer seus filhos de volta. — Rafael disse com um tom de voz tranquilo, com a empatia de quem já lidou com situações parecidas, embora nunca fosse fácil.

Ficamos ali por alguns minutos, trocando palavras sobre o caso. Mas, por dentro, minha mente começava a se focar em uma ideia, tentando encaixar as peças: o trabalho de Gustavo na Casa de São Sebastião, o fato de as crianças frequentarem a ONG... tudo parecia interligado de uma forma que eu não conseguia ainda compreender completamente.

Quando a conversa se dissipou e o silêncio voltou a dominar o quarto, fui tomado por um pensamento inquietante. Algo estava conectado ali, eu sentia isso. Mas o quê? A relação entre Gustavo, as crianças e a ONG era um ponto chave que eu precisava explorar mais a fundo. Eu só não sabia ainda como essa conexão se manifestaria, mas algo me dizia que esse seria o próximo passo para encontrar respostas.

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