Provocações
LILI
Ja tem duas semanas que estou na faculdade, o barulho das cadeiras arrastando pelo chão era o único som que preenchia a sala enquanto o professor se preparava para começar a aula. Eu estava exausta de tentar me concentrar enquanto minha mente se perdia em pensamentos desconexos. O nome "Gasparzinho" ainda ressoava em minha cabeça. Só de pensar nisso, sentia um frio na espinha, estava olhando para o quadro com o conteúdo de literatura contemporânea, quando a porta se abriu. Não precisava olhar para saber quem tinha entrado.
Ash.
Ele sempre chegava atrasado, mas ninguém se importava, e ele parecia achar que tinha o direito de fazer isso. Seu jeito despreocupado de entrar na sala, se jogar na cadeira ao lado da minha e lançar um sorriso irônico era algo que já esperava. Ele faz o mesmo curso que eu, por mais surpreendente que seja. Não é a cara dele cursar literatura.
– Ei, Lili – disse ele, virando a cabeça para me encarar.
Eu suspirei, tentando não demonstrar o quão irritante ele podia ser. Desde que ele se juntou à turma, não havia um dia que ele não tivesse algum comentário sarcástico para fazer. E, infelizmente, sempre acabava caindo na minha direção.
– O que foi? – respondi, mantendo meu tom neutro, já acostumada com as tiradas dele.
– Estava pensando... – ele começou, cruzando os braços sobre a mesa e se recostando na cadeira, como se tivesse algo muito importante para dizer. – O que você acha de todas essas ideias malucas sobre a literatura contemporânea? O pessoal aqui parece achar que toda obra precisa ter algum sentido profundo, mas... ah, sei lá. Talvez os livros sejam só para entreter mesmo.
Eu olhei para ele, tentando entender se ele estava falando sério ou apenas provocando, como sempre fazia. Às vezes, eu me perguntava se ele realmente pensava o que dizia ou se só gostava de ver as reações das pessoas.
– Pode ser, mas você não acha que, por trás de toda essa "maluquice", há algo mais? – eu disse, tentando pegar leve. – Tipo, o autor não está só jogando palavras aleatórias na página, né?
Ash deu uma risada abafada e me olhou com um sorriso de canto de boca.
– Ah, claro. Porque tudo tem um significado profundo, né? Não podemos só pegar um livro e pensar que ele foi escrito porque o autor estava entediado num domingo à tarde e precisava fazer algo com a cabeça. – Ele balançou a cabeça, como se estivesse tentando desdenhar da ideia, mas seu tom era claramente irônico.
Eu arqueei uma sobrancelha. Claro que ele estava brincando, mas não dava para negar que ele sabia como me deixar desconfortável com essas provocações. Era como se ele tivesse um prazer imenso em testar os meus limites.
– Isso não faz sentido, Ash – falei, tentando manter a calma. – Mas até aí, acho que é isso que faz a literatura interessante. Cada um interpreta de um jeito.
– Ah, claro. A velha história da "interpretação pessoal" – ele fez um gesto exagerado, como se estivesse imitando alguém. – Como se todo mundo tivesse que ver o mundo através da mesma lente. Eu prefiro pensar que é tudo só uma grande bagunça e a gente só tenta encontrar alguma lógica onde não há nenhuma.
Eu ri, mas não porque eu achava graça. Era mais uma defesa, porque sabia que ele estava tentando me provocar. Mas, por mais que tentasse me controlar, havia algo ali, algo nele, que me fazia pensar no passado. No Cole.
Não que eu fosse comparar os dois. Eles eram muito diferentes, não é? Ash tinha aquele sarcasmo sem limites, enquanto Cole... Bem, Cole sempre teve um jeito mais... suave. Ele sabia como me fazer sentir especial, sem as piadas de Ash. Ainda assim, às vezes, eu pegava a expressão de Ash de relance e me sentia como se estivesse vendo algo familiar. Mas logo descartava essa ideia. Era impossível. Não havia como ser ele.
– Então, você é aquele tipo de pessoa que acha que todos os livros são só... inúteis? – eu desafiei, mais para continuar a conversa do que por qualquer outra coisa.
Ele me olhou com uma expressão falsa de surpresa.
– Não, Lili, eu só acho que a vida é muito curta para ficarmos nos perdendo em interpretações infinitas. Às vezes, o livro é só um livro. O que importa é se ele te prende ou não, se te faz sentir alguma coisa. E se não fizer? Bem, aí é só uma perda de tempo.
Eu o encarei, sem saber se ele estava sendo completamente sério ou se só estava brincando com as minhas reações.
– Você é insuportável, não sei porque faz esse curso – murmurei, embora, no fundo, estivesse me divertindo. Ele sempre soube como tirar a minha paciência.
Ash deu um sorriso vitorioso, claramente achando graça.
– E você, Lili, é um livro complicado de ler. – Ele se levantou, jogando a mochila nas costas. – Até mais, gata.
Eu fiquei ali, observando-o sair, como sempre, com a mesma atitude descomplicada e sarcástica. Mas, de alguma forma, ele me deixava pensando demais. E, mesmo que eu tentasse, não conseguia deixar de me perguntar... por que ele parecia tão familiar, como se houvesse algo mais por trás daquele sorriso debochado.
Era um mistério que eu não sabia se queria resolver.
Peguei meu material e voltei para o meu quarto no alojamento, onde minha colega de quarto, Camila, já estava jogada na cama, lendo um livro.
– Finalmente! Achei que essa aula não ia acabar nunca – murmurei, largando minha mochila em uma cadeira.
Camila tirou os olhos do livro e me olhou com curiosidade.
– Você parece irritada. Ash, de novo?
– Ele consegue transformar qualquer coisa em uma piada – falei, exasperada. – Hoje ele praticamente disse que literatura não tem propósito.
Camila riu.
– Isso é a cara dele. Ele adora testar as pessoas, principalmente você.
– E por que eu? – perguntei, me jogando na cama. – Ele nem fala com mais ninguém, só comigo. É como se tivesse decidido que eu sou o alvo das provocações dele. Só tem duas semanas que estou aqui e já acho ele a pessoa mais irritante do planeta terra.
Camila deu de ombros.
– Talvez porque você é a única que responde. O resto das pessoas ignora.
Fiquei em silêncio por um momento, pensando. Talvez ela tivesse razão. Talvez ele só quisesse atenção, e eu estava dando exatamente o que ele queria.
– Camila, você sabe alguma coisa sobre ele? – perguntei, quebrando o silêncio. – Tipo, de onde ele veio, o que ele fazia antes de vir pra cá...
Ela me olhou surpresa.
– Você está mesmo interessada nele?
– Não! – respondi rápido demais, o que a fez rir. – É só que... ele é meio estranho, sabe? Parece que ele não se encaixa aqui, mas, ao mesmo tempo, age como se fosse o dono do lugar.
Camila pensou por um momento.
– Bom, ele não fala muito sobre o passado dele. Só sei que ele entrou na faculdade meio de repente, tipo no meio do semestre. E que ele não tem redes sociais. O que, convenhamos, já é estranho por si só.
Eu franzi a testa. Quem, em pleno século XXI, não tem redes sociais?
– Talvez ele só goste de ser misterioso – brincou Camila, vendo minha expressão. – Ou talvez ele esteja fugindo de algo.
Fiquei quieta, pensando no que ela disse. O mistério ao redor de Ash era intrigante, mas eu não sabia se queria mesmo me aprofundar nisso. Algo nele me puxava, mas ao mesmo tempo, me deixava inquieta.
– É melhor eu não pensar muito nisso – murmurei, tentando convencer a mim mesma. – Ele provavelmente só gosta de me irritar.
– Talvez – respondeu Camila, com um sorriso malicioso. – Ou talvez ele só goste de você.
Joguei uma almofada nela, mas, no fundo, suas palavras ficaram na minha mente. Não porque eu acreditava que ele gostava de mim, mas porque, por algum motivo, eu não conseguia parar de pensar nele.
E, mais do que isso, no porquê ele me parecia tão familiar, talvez eu já saiba a resposta, só não quero acreditar...
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