Visita Noturna ୧ ⎯

Quando meus olhos voltaram a se abrir a lua já estava reinando no céu, sua luz prateada atravessava as cortinas iluminando de leve o quarto. Não havia ninguém por perto, por já ser tarde da noite, respirei fundo abri os braços aproveitando o conforto da cama, virei ainda sonolenta e não determinada o suficiente para levantar.

Senti o corpo ficar pesado novamente, a mente navegando entre o mundo real e a inconsciência num estado nebuloso. Lento, suave, afundando cada vez mais nos caminhos dos sonhos, apenas para ser puxado repentinamente por uma batida na janela.

O susto fez o coração dar um salto, tirando qualquer resquício de sono. O corpo também levou um choque que me fez pegar a lâmina escondida na cabeceira da cama antes mesmo de conseguir focar os olhos.

Projetado contra a luz havia uma silhueta, desengonçada e curiosa, que batia no vidro incessantemente procurando uma resposta.

Levantei a mão livre para o rosto, em seguida ajeitando os fios de cabelos para trás. Guardei a lâmina e me sentei ponderando, havia algumas opções, entre ignorar Charon e fingir que estar dormindo. Novamente ele se mexeu na varanda provavelmente procurando uma brecha entre as cortinas.

Algo, no fundo da minha mente, avisou que talvez ele não fosse embora tão cedo.

Respirei devagar e me levantei, andando até a janela e puxando as cortinas de uma única vez, ainda sem dar passagem para adentrar no meu quarto.

— O que você quer?

— Falar com você — o aruano respondeu usando também de mímicas, como se eu não conseguisse escutar.

Charon estava com a vestimenta de disfarce, inútil, dele. Completamente coberto de panos escuros como sombras, mas com o topo da cabeça reluzente como um vaga-lume prateado. Por um segundo, parei para pensar como ele chegou até ali, havia alguns bons metros da minha varanda para o chão.

Batidas no vidro me fizeram sair do raciocínio, o rapaz apontou para a maçaneta.

— Dá pra te escutar mesmo do lado de fora sabia? — disse ao abrir a porta da varanda.

— Verdade? Bom, não faz diferença — respondeu levantando a mão para a cabeça e ajeitando os fios de cabelos na nuca —, está ocupada agora?

Parei, e olhei para Charon. A mente completamente vazia de pensamentos, ele não poderia estar falando a verdade.

O príncipe imperial tomou ciência da besteira dita e riu sozinho — Desculpe.

Apoiei a cabeça na madeira da porta, já esgotada — Por que está aqui?

— Vamos retornar à Aruna amanhã, pensei em dar uma volta por Solaris. Spade disse que você tem bons caminhos para sair do palácio.

— Ele também sabe, podia ter pedido para te guiar.

Um riso soou — Poderia ter ido sozinho, mas quero sua companhia Ely. Me dê esse presente de despedida.

Parecia uma vontade genuína, também escapara do Palácio do Sol mais vezes do que podia contar. Suspirei alto, dormir novamente não é uma opção.

— Espere um momento.

Fechei a porta e puxei as cortinas em seguida, teria de trocar as minhas vestes. Também com cores sóbrias fáceis de se esconder nas sombras se necessário, uma capa e também um par de botas. Abri uma gaveta onde guardava os frascos que me faziam virar Lipe, não teria uma mudança tão drástica hoje.

Ajeitei o cordão e abri novamente a porta do quarto dessa vez saindo para a varanda — Beba isso.

Joguei um dos frascos para Charon, rapidamente tomando o líquido amargo em seguida.

— O que é? — ele perguntou abrindo o frasco e fazendo uma careta após sentir o cheiro.

— Um disfarce melhor que o seu.

No reflexo do vidro vi que os fios de cabelos que eram claros, ficaram escuros e os olhos castanhos. Nesses momentos consigo ver melhor do que ninguém as semelhanças com minha falecida mãe.

— Isso é incrível! — exclamou se olhando no reflexo da janela. Também com os fios de cabelo escuros como carvão, e olhos esverdeados. — Você tem que me dar alguns desse para viagem.

— Acha que tenho sobrando? Não é tão fácil de conseguir — rebati —, já que veio até aqui devo imaginar que tem uma maneira de descer.

— Pulando é claro, tem alguma outra?

Me apoiei para ver a altura, cair dali só poderia significar morte.

— Não, de jeito nenhum.

Charon balançou a cabeça — Pode acreditar em mim?

— É pedir um pouco demais.

— Sempre cabeça dura.

O aruano se aproximou e num piscar de olhos me pegou no colo — Espera, Charon!

— Mantenha a voz baixa princesa, não quer que os guardas escutem não é? — disse baixo, pulando para o parapeito, e dando um passo além, diretamente no ar.

Esperei a queda, mas ela não veio. Abri os olhos que não percebi ter fechado e vi que já estávamos no chão. Minha varanda a vários metros de distância acima da cabeça.

— Tem medo de altura? — questionou.

— Não.

— Então, por que segurando em mim como se dependesse a sua vida?

Minha mão em punho havia pegado um punhado de tecido da sua camisa, soltei imediatamente não perdendo a chance de socar seu peito e ralhar pedindo para me soltar.

Joguei o capuz sobre a cabeça, também na esperança de esconder o rubor que floresceu no meu rosto.

— Vai ser o nosso segredo, não se preocupe.

— Cale a boca Charon.

O meu humor foi respondido apenas com uma risada.

Guiei o caminho em silêncio, passando pelo jardim e o gazebo de ferro. É claro que ele sabia como chegar na cidade, afinal eu disse quando encontramos os mercenários de Barlor. O que me faz pensar nos verdadeiros motivos para me chamar como companhia.

De qualquer forma era bom sair um pouco para as ruas, onde a vida real acontecia.

A maioria das árvores estavam despidas de suas folhas, os galhos secos prontos para receber a primeira neve. Solaris é inevitavelmente quente a maioria do ano, mas o inverno é particularmente frio.

— Disse que vai embora amanhã? — questionei — Parece repentino.

— Não tanto, já devia ter retornado. Porém, a viagem para o ducado Veroni parecia promissora, e não me arrependo. Sei porque das famílias nobres de Solaris você os mantém por perto, assim como a família Kartes.

— E o que seria? — parei e me virei.

— São aqueles de verdade — respondeu — você tem boas pessoas do seu lado. Parece o suficiente para governar Solaris.

Balancei a cabeça — Não sabe o que fala, algumas semanas na terra do sol não são o suficiente para entender como funciona a nação.

— Se importa de me iluminar então?

— Solares me chamam de maldição Charon, de quatorze famílias nobres poucas aceitam a minha posição. O resto me trata como se fosse uma praga, assim como meu pai — expliquei —, fugir; da realidade, do posto, das pessoas foi a maneira que achei para sobreviver. Uma sombra que faz o possível sendo ninguém.

Parei e olhei para o céu — Um bom regente não nasce da fuga.

— E Cyrus é a melhor opção?

— É a única possível, por que de repente está interessado nas relações do reino?

Ele deu alguns passos para frente — Porque Solaris irá ruir se continuar dessa maneira. Não me orgulho, mas ouvi as conversas que teve com o professor Samson na mansão Veroni.

Fiz uma careta.

— Juro que foi completamente sem querer, dessa vez ao menos.

— Dessa vez... — Puxei os cabelos de leve, levantando os olhos para seu rosto em seguida — O motivo de você vir para Solaris foi realmente só para fazer um convite?

— Uma boa relação entre os países são necessárias. Um dos modos de manter isso é pela socialização.

Tombei a cabeça — Nunca foi enviado um membro da família regente, as comissões são escolhidas entre as famílias nobres e enviadas. Também chegou sem avisar, se continuar com comentários velados pensarei que tem mais do que realmente quer falar.

— A visita é oficial, tem a minha palavra sobre isso — explicou —, mas tem razão. Não foi só pelo convite da competição de inverno, está mais envolvido com o que achou no ducado Veroni do que qualquer outra coisa.

Vinha voz ficou travada entre-dentes. Gárgulas, Charon veio para Solaris procurar rastro de Gárgulas.

— Também foi o motivo de eu ir para Barlor — explicou —, só que saí de lá antes de concluir as minhas investigações.

— Imagino que ter recusado o casamento não foi o motivo principal de cair nas graças deles — apontei.

— Definitivamente não. Desculpe por omitir isso de você. Pode não acreditar, mas realmente te vejo como uma amiga, e esconder informações não é o que faço com alguém que considero.

Amigos, fora aqueles que cresceram comigo é um conceito estranho. Existe alguém fora os que convivo quase diariamente que tem um título como esse?

— Se veio para Solaris com uma missão secreta devia ter mantido para si, não quero a responsabilidade de dividir esse segredo com você. — me virei e continuei andando.

— Desculpe, estamos juntos nessa a partir de agora — Charon respondeu animado e a conversa que tinha um tom sério se tornou mais descontraída. — Céus me sinto mais leve, mentiras não combinam comigo.

Me permiti rir — Já que está sendo tão honesto. Qual o motivo para me chamar para a cidade?

— Aproveitar minha última noite é claro — sorriu e estendeu a mão —, não gostaria de passar ela com ninguém além de você.

Encarei sua palma estendida, apesar de estar com a aparência completamente diferente, aos olhos das outras pessoas, para as íris douradas que via além do véu de enganação a imagem refletida era a do mesmo príncipe que entrou confiante no Palácio do Sol no primeiro dia.

Amigo não é? Talvez a presença do aruano de língua solta e despreocupado fosse fazer mais falta do que realmente gostaria de assumir. Hesitei um pouco em colocar a mão sobre a sua.

— Terá de fazer o mesmo por mim quando for para Aruna — expliquei, enfim aceitando seu convite.

Sua mão apertou a minha firmando os dedos. Charon olhou para cima — Uma jura sob a lua é uma promessa, se é o que deseja. Não há motivos para discordar.

— Nesse caso se prepare para ter a melhor noite da sua estadia em Solaris — O puxei na direção das ruas que davam acesso à cidade. — Sem títulos, sem preocupações, apenas dois jovens amigos aproveitando o melhor que a vida tem a oferecer.

Sua mão ainda estava presa a minha, seus passos seguindo para onde eu quisesse o levar — Essa noite vamos deixar os pesadelos para trás, podemos nos preocupar com uma morte horrenda e vísceras caindo do céu pela manhã.

— Quase soa poético quando fala dessa maneira — ele riu aproximando o corpo do meu, nossos braços estavam juntos esbarrando um no outro enquanto andando. — E é mais do que eu poderia pedir para hoje, achei que ia precisar de mais alguns argumentos para te tirar do pedestal das responsabilidades.

— Tem muito que você não sabe sobre mim — as luzes começaram a surgir a medida que nos aproximamos do centro. — Sei me divertir quando quero, e sobre o meu pedestal faria bem você fazer uso dele ocasionalmente.

— Estava sendo tão gentil que achei por um segundo que a poção mudou até mesmo sua personalidade. Fico grato que não parece ser o caso.

Poderia ter respondido, com uma fala afiada e uma clara provocação, mas essa noite apenas pelos momentos que passarmos juntos deixarei passar.

Por hora só desejo criar bons momentos. Com um amigo.









Obrigada por ler até aqui!

Próxima atualização 31 de Maio.

Até mais, Xx!

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