Os atos do Coringa ୧ ⎯


O desafio solicitado pelo príncipe imperial fora montado, Valet — o comandante da guarda —, posicionou alguns alvos nos campos de treinamento a fim de que pudéssemos atirar algumas flechas. Diversos soldados estavam ali para ver as habilidades do herdeiro de Aruna. Cyr saiu pouco depois de nossa conversa para começar os preparativos e enviar convites, logo o rei também se retirou alegando uma súbita indisposição.

— Sua montaria já está nos estábulos senhor, descansando devidamente e sendo tratado.

Rav se curvou numa reverência quando voltou com as novidades.

— Ótimo, obrigado. Lura não gosta de viagens intensas, acredito que exagerei nos últimos dias — comentou conversando com Rav como se o conhecesse há muito tempo —, merece um bom repouso.

Tomei o gancho da conversa para tentar ser simpática, enquanto o rapaz parecia mais interessado em escolher um bom arco — Cyrus me disse que sua comissão chega ao fim da tarde, são muitas horas de diferença já que chegou pela manhã. Seu cavalo deve ser veloz.

— Égua, Lura é uma fêmea. — corrigiu — E sim, a mais rápida da cidade imperial, mas se engana se pensa que cheguei hoje, coloquei meus pés em Solaris ainda na noite de ontem.

— Onde esteve hospedado? — fingi preocupação — Em nome de vossa majestade clamo por perdão à nossa negligência.

— Se eu não me apresentei, não foi culpa de vocês, certo? — Charon levantou as mãos até a cabeça mexendo nos fios claros em sua nuca — Estava curioso com alguns boatos apenas dei uma volta noturna.

Sua aura se tornou sombria — E a propósito gostaria que não comentasse isso com a escolta aruana, para a minha segurança e a de vocês.

— Seu segredo está a salvo conosco — o tranquilizei, 'até porque também é meu' — Rav é meu guarda pessoal garanto ser de confiança.

Pouco a pouco podia me ver sendo enrolada em tramas e mais tramas, como se lidar com meus próprios problemas diários já não fossem o suficiente.

— Lady Eclypse, Príncipe Charon — Valet se aproximou com uma reverência. O homem devia ser um ou dois anos mais novos que o rei apenas, e até onde ia minha memória fora um bom amigo de minha mãe, um dos motivos pelo qual aceitou me treinar durante os anos depois de sua morte. Mantinha um sorriso no rosto, os cabelos escuros no topo da cabeça reluziam quando banhados pelo sol, contudo as laterais com fios grisalhos denunciavam sua idade. Os mesmos fios corvinos foram herdados por Spade, seu filho mais velho e o segundo na cadeira de sucessão da guarda.

— Obrigada pelo trabalho Valet — agradeci.

— Na verdade, Spade que cuidou da maior parte, apenas supervisionei. Espero que os desafios estejam do seu agrado.

— Confio em você. Embora não saiba ainda exatamente que tipo de validação o príncipe espera.

Charon se colocou em posição como se fosse atirar, testando o arco — Sobre isso, Aruna terá a primeira competição de inverno em 50 anos.

Não tinha a menor ideia do que aquilo significava. As famílias nobres de Solaris tinham eventos parecidos, mas eram sociais feitas para entreter os jovens, e arrumar casamentos é claro. Damas vestiam seus melhores vestidos, rapazes davam seus melhores flertes e ao final no dia muitas alianças eram prometidas.

Valet, porém, parecia surpreso — Não escuto sobre isso desde que era menino. Pensei terem sido canceladas depois da guerra noturna.

— Temporariamente — Charon respondeu —, o Imperador Lua acredita que é uma boa oportunidade para retomar as tradições.

Guerra noturna... Tenho certeza que Cyrus já havia me dito sobre ela em algum ponto. Então clicou, Aruna foi palco de uma batalha sangrenta décadas atrás, Solaris ajudou enviando soldados e curandeiros com magias excepcionais. Aqueles que atacavam não faziam parte de qualquer país vizinho, mas sim moravam no céu.

— A última aparição de gárgula foi a mais de vinte anos. Temos motivos para acreditar que os escudos estão funcionando.

Gárgulas, os serem que governam o céu noturno. Condenados por uma magia arcaica, sedentos por sangue mágico, são os personagens principais nos contos de terror para assustar às crianças. Dizem que suas asas são feitas de sombras, olhos brilham vermelhos escarlate e suas são garras tão fortes que atravessam paredes. Tais criaturas sombrias invadem as casas a noite e ceifam a vida daqueles que escolhem.

'Quinze anos... Não. Estavam errados.'

— Princesa, está tudo bem? — a voz preocupada de Valet me resgatou de um lugar sombrio. Pisquei algumas vezes apenas para sentir o princípio de lágrimas acumuladas no canto de meus olhos.

Limpei a garganta — Sim, podemos começar? O sol ficará mais forte, não queremos que o príncipe se queime.

O aruano pareceu confuso — Como?

Peguei meu arco checando as cordas e a curvatura — Com todo o respeito, Príncipe Charon, você me lembra um boneco de neve. Tenho medo que derreta a qualquer instante.

Vi um brilho afiado passar em seus olhos, não disse mais nada e apenas me virei seguindo para onde estavam os primeiros alvos. Rav me seguiu segurando um riso.

— Está brava por conta da 'altura' milady?

— Não.

A quem queria enganar, Rav me conhecia tão bem quanto Cyrus. Os funcionários mais antigos nos chamavam de tríplice, os pais dos gêmeos eram conselheiros diretos da rainha. Sua mãe era uma exímia estrategista e morreu dois anos depois da minha. Foi nesse momento que nos juntamos e servimos de apoio um para os outros. Eles poderiam ter escolhido voltar com o pai para sua cidade natal, mas escolheram ficar no palácio comigo.

Apollyne começou a me acompanhar em aulas, assim como no dia a dia e Rav se dedicou na guarda real. Com os anos se tornaram minhas companhias e mais que isso família.

Meu amigo me entregou a aljava de flechas e eu a prendi as vestes analisando rapidamente onde estavam os alvos. Eram dez no total, diferentes tamanhos e distâncias, no centro havia um círculo do qual os disparos deveriam ser feitos.

— Altezas o desafio é simples, acertem todos os alvos no menor tempo. — Spade comentou, lançando-me um sorriso galante. Seus cabelos eram tão escuros que ganhavam um tom azulado quando refletidos, assim como Raka ele era alto — pouca diferença para mim, é claro — herdara os mesmos traços elegantes e gentis de Valet, mas os olhos verdes vieram da mãe, Queeny.

— Por favor — indiquei para que o aruano começasse.

— Não se preocupe princesa, não pegarei pesado. Ainda vai ser uma inspiração para seus subordinados quando acabar.

'O que eu deveria responder? Obrigada pela sua humildade?'

Spade passou por mim, falando em tons baixos apenas para eu ouvir batendo de leve com as costas da mão na base de minha coluna — Está fazendo caretas Ely.

Imediatamente soltei os ombros reparando na força com que segurava o arco, o rapaz riu e continuou seu caminho. Afastamo-nos do círculo de disparo e detrás de uma barreira protetora vimos as flechas serem lançadas com maestria, uma após a outra. Eram rápidas e precisas, cortavam o ar como uma lâmina afiada e faziam seu caminho até o centro de cada alvo com precisão.

Seria uma tola em não reconhecer suas habilidades.

Os soldados aplaudiram e ele agradeceu cordialmente, estendendo a mão — O palco agora é seu, raio de sol.

Se desse ouvido aos meus sentimentos verdadeiros, com certeza Solaris e Aruna perderiam dois herdeiros. À terra da Lua por conta do meu assassinato e a do sol por minha punição, com toda certeza eu iria parar na guilhotina.

Girei meu pescoço e ajeitei o arco, esperando o sinal. E assim que ele soou saquei a primeira flecha e disparei, ela praticamente se sobrepôs a do príncipe e assim foram consecutivamente, estava quase no fim do percurso quando escutei atrás de mim um bocejo alto e escandaloso. Senti meu rosto esquentar e a última flecha por pouco não erra o último alvo.

Raiva borbulhou em mim, virei e Charon tinha a mão sobre a boca. Marchei em sua direção com ofensas presas entre os dentes — Quem você pensa que...

Foi nesse momento que seu corpo pendeu para frente, antes mesmo que minha cabeça pudesse raciocinar soltei o arco e segurei seu corpo contra o meu. Seus olhos estavam fechados e sua respiração quente batia em meu pescoço.

— Príncipe Charon! — Valet se adiantou — Rápido, procurem algum invasor! Alguém presenciou um ataque?

— Valet, não acredito que tenha acontecido algo do tipo — o chamei, surpresa com as próprias palavras que deixariam meus lábios em seguida — Acho que ele dormiu.


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Os gritos se erguiam até o topo do escritório do rei, claro que mesmo com uma dúzia de testemunhas dizendo que o príncipe de Aruna simplesmente caiu Mithra insistiu em me culpar por toda a situação, isso quando a ideia fora do próprio Charon.

Novamente ele bateu de punho fechado na mesa enquanto eu, de cabeça baixa e dentes cerrados, encarava um ponto colorido no tapete. Nessas horas eu gostaria de ser 'Lipe' ter a liberdade para rebater, devolver todos os insultos e agressões, mas não. A jovem e inútil Eclypse apenas ouvia as palavras venenosas que deixava sua boca se dissipar.

— Se o Imperador Lua ficar sabendo disso, sabe o que pode acontecer? Estou farto das suas atitudes impensadas Eclypse. — suas vestes claras se agitaram enquanto o homem andava de um lado para o outro. — Se você tivesse...

Ele mesmo se interrompeu, não falando em voz alta algo que eu já sabia.

'...sido morta na noite do sequestro, minha vida teria sido muito mais simples'

Talvez eu fosse realmente uma maldição.

Batidas soaram na porta e em seguida Cyrus entrou acompanhado de dois ou três rapazes, assim como nosso convidado real tinham vestes escuras e luas bordadas com fios de prata. Devia ser a comissão que escoltou o príncipe até Solaris.

— Rei Sol — o que parecia ser o responsável pelo grupo de apresentou com uma reverência — Peço que perdoe qualquer inconveniente que nossa alteza tenha provocado, eu Aibek general do exército imperial e ficarei grato em receber qualquer punição.

— Levante a sua cabeça, general— respondeu o rei ainda de mau humor — Príncipe não causou nenhum mal.

— Príncipe herdeiro Cyrus me explicou os acontecimentos, por favor não leve como um ato de moléstia Princesa Eclypse — agora ele se dirigia diretamente a mim — Nosso príncipe tem uma condição rara que o faz...Dormir, de maneira repentina.

Pude ver em seus rostos que aquilo deveria ser uma questão recorrente e que talvez trouxesse muitos problemas para os soldados aruanos. Aibek assim como o restante, e até mesmo o príncipe, tinha os cabelos claros, mas eram longos e caiam elegantemente até sua cintura.

Os olhares na sala recaíram sobre mim, inclusive Cyr — Acredito que podemos encerrar esse assunto por aqui, penso que queira encontrar com o príncipe agora Sire Aibek. O levarei até os aposentos de vossa alteza, com sua licença majestade.

Fiz questão de olhar em seus olhos, os mesmos que me foram passados, ele nunca se desculparia pelos atos.

Meu irmão me seguiu de perto e com passos firmes os guiamos pelas entranhas douradas do palácio, até o quarto onde o herdeiro da lua estava em repouso. Rav abriu a porta e em seguida eles entraram, Cyrus me segurou do lado de fora com uma desculpa qualquer. Suas mãos tomaram meu rosto com delicadeza o virando como se estivesse a procura de algo.

— Ele não me bateria com tantos convidados por perto — respondi ao medo em sua feição.

Cyr encostou a cabeça contra a minha aliviado — Escutamos os gritos do lado de fora, achei que...

— Estou bem — dei um passo para trás puxando suas mãos —, não é como se não estivesse acostumada.

— Estou me encontrando com o professor Samson — era o pai de Polly e Rav — Estamos estudando o melhor momento para o sol se pôr, assim você poderá brilhar novamente.

Códigos para despistar possíveis espiões, Cyrus queria destronar o rei de uma maneira honrosa sem que resultasse em uma morte ou um golpe. Meu irmão beijou o topo da minha cabeça e em seguida entramos no quarto.

— Aibe, você não sabe como foi. Foi como bater de frente com uma parede de algodão e nuvens.

Charon estava sentado na cama e mantinha as mãos sobre o tórax imitando o formato de um busto feminino. Magia borbulhou em meu sangue e assim que nossos olhos se encontraram o rapaz paralisou.

'Vou matá-lo'








N/A: Olá! Obrigada por ler até aqui, realmente fiqui muito feliz com o apoio inicial!

É tão diferente do que eu geralmente faço, e tão novo que toda vez que eu olho para a estória fico toda boba das perna bamba.

Próxima atualização: 14 de Setembro.

(peço desculpa pelos espaços mas fazer os desenhos é uma tarefa um tanto quanto árdua)

Amo vocês mais que ontem e menos que amanhã.

Até a próxima, Xx!

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