Narrador de Sombras ୧ ⎯





Minha ideia — de controlar a multidão —, não era completamente infundada, apenas um pouco. Na verdade, era um ataque em meio a fumaça, se tivesse sorte encontraria meu inimigo, caso contrário apenas o ar.

Corri na direção contrária da multidão, se o que falaram era verdade, devia ter um acampamento clandestino de balorianos por ali, nas beiradas da cidade, entre prédios. Se eu desse sorte, encontraria quem eu estava procurando.

Eram vielas escuras que se abriam na cidade como as raízes de uma árvore, para todos os lados desordenadamente. Algumas delas mais largas, outras apenas o suficiente para uma única pessoa atravessar. Repentinamente um lampejo dourado piscou na lateral da minha visão, com passos lentos e as vozes de rebelião cada vez mais distantes, andei na direção do único foco de luz.

Parecia uma clareira, no limite da cidade com a floresta repleta de neve, havia uma grande fogueira acesa no centro, consumindo os pequenos flocos de neve que caíam do céu. A observando completamente imóvel havia uma figura encapuzada.

Havia troncos dispostos ao redor do fogo, provavelmente ali era um lugar onde os refugiados se juntavam para pernoitar.

De repente uma música começou a tocar, meu corpo imediatamente tomou uma posição de ataque. Apenas para reparar que o som vinha do carrinho do contador de histórias, o mesmo que assistimos se apresentar na praça anteriormente. Ainda que não parecesse tiver nenhuma por trás — visto estar contra uma parede —, a tela se iluminou tomando a forma de um único boneco.

— Que grande surpresa, que honraria, pensar que um dia na presença da princesa estaria.

Segurei o punhal da lâmina que Rav me entregou com firmeza, passando o olhar entre o narrador de histórias e a figura parada ao centro do local.

— Como sabe quem sou? — questionei.

— Os ventos cantam as palavras que as pessoas mantêm escondidas. — dessa vez a frase veio sem rima e sem canto, o tom estável do narrador causou um calafrio na base da minha coluna. — Escuto os sons da multidão marchando em direção à casa do marquês.

As sombras se moveram ilustrando a situação no centro da cidade.

— Os soldados tentando conter de maneira falha rodeiam a multidão enquanto o filho instigador permanece escondido, esperando que a herança caia em sua mão.

Claro que Denali teria a mão numa situação daquela.

— Mas a princesa foge, se distancia e de repente se vê fazendo ao narrador, companhia.

As sombras tomaram duas formas, a de um homem como o parado na frente da fogueira e a minha, que até mesmo tinha a lâmina nas mãos, porém acima da cabeça o símbolo de um sol.

— Na peça de teatro na praça, usou algum tipo de magia de manipulação de som nos ouvintes — disse —, o filho do marquês é um parvo. Barlor tem sua culpa, porém não precisamos de dezenas de pessoas morrendo nessa noite.

As sombras de mexeram, o narrador de aproximou da boneca que me representava — Um pedido então, é o motivo da aparição.

Sempre que as formas se moviam, a fala era acompanhada da rima.

— O narrador pondera, pensa, e pergunta. O quanto a princesa está disposta a pagar por uma canção?

Pelo teatro de sombras a figura devia estar bem na minha frente, mas na realidade ainda permanecia imóvel, à distância, junto a fogueira.

— O que você quer? — questionei, neste momento o vento soprou estranhamente lento, como se carregasse com ele uma risada.

Do carrinho de teatro abriu-se um compartimento, como uma gaveta e em seguida veio a resposta.

— O que você tiver de mais precioso para oferecer agora.

Para o meu desespero, o dinheiro estava em posse de Polly, nem minhas armas tinha comigo. Poderia colocar a espada que Rav me deu, porém... Não me parecia que a resposta era tão simples assim. Para alguém que sabia quem eu era mesmo sem falar e tinha o vento cantando as ações de cada pessoa para si, certamente saberia o que tinha em minha posse ou não.

O que eu tinha de mais precioso para oferecer agora, não era sequer a minha vida.

Saquei a lâmina e estendi a mão acima da gaveta, o corte feito foi fundo deixando cair dentro do pequeno compartimento aquilo que os perversos tentaram roubar desde o momento em que nasci.

Meu sangue.

Se o narrador tiraria algum proveito daquilo, já não era meu problema. Tirei um pedaço da capa e amarrei para estancar o sangue da ferida.

A gaveta se fechou, e da casinha de teatro uma música começou a tocar, era calma e lembrava vagamente uma canção de ninar. Ao mesmo tempo, o vento voltou, dessa vez mais forte, levando a melodia para além das vielas. Na tela iluminada, as figuras voltaram a se moldar. A figura do narrador estava no topo duma colina com uma flauta e as notas musicais chegavam até os ouvidos das pessoas, às envolvendo e então lentamente elas pararam de se mover, assim como os guardas. As tochas se apagaram e quando tudo terminou, o silêncio.

De volta a cena da clareira, dessa vez com a figura do narrador mais próxima do que antes, praticamente colada a minha sombra.

— Foi um prazer fazer uma apresentação para você, alteza.

A tela se apagou por um momento, e quando acendeu a sombra do narrador estava atrás de mim. Virei-me rapidamente para encarar o escuro corredor por onde andei, e sem ver nada voltei para frente, onde dessa vez a figura na frente da fogueira também havia desaparecido.

Contudo, o carrinho do teatro ainda estava ali de tela apagada. O som de uma campainha ecoou me fazendo saltar, a gaveta voltará a se abrir, dessa vez com algo dentro.

Uma boneca, de cabelos pretos e cinzas, vestida de branco com os olhos de botões amarelos. Mais precisamente, eu.

Pela minha magia de revelar segredos, não havia nada além de pano e enchimento, porém o fato de ser uma representação minha era extremamente perturbadora. Porém, algo, no fundo da minha cabeça, me disse que se eu a deixasse para trás poderia ser pior.

Tomei a boneca na mão e coloquei no bolso em seguida, me virando e deixando a clareira para trás. Não são muitas coisas que me evocam medo, mas naquele momento eu me recusei a virar para trás. Corri pelas ruas estreitas com o maxilar travado e a lâmina em punho, preparada para qualquer ataque.

Havia uma batida insistente nos meus ouvidos, tudo que eu conseguia ouvir era meu próprio coração, impedi uma rebelião, mas a troco de quê?

Senti alguém se aproximar rapidamente, girei a lâmina no mesmo momento em que uma mão tocou meu ombro.

Os fios de cabelos prateados que voaram foram o suficiente para me tirar do estado de pânico em que me encontrava.

— Charon? — perguntei com o coração disparado no peito.

— Felizmente, não — o capuz caiu mais uma vez revelando Aibek. Havia um pequeno corte em sua bochecha e um desnível nos seus cabelos compridos.

Coloquei a mão livre no rosto sentindo os ombros tremerem, precisando respirar pela boca o ar frio da noite para me acalmar.

— Desculpe — pedi sentindo o tormento se dissipar aos poucos.

O aruano pareceu surpreso por um instante e se curvou solenemente em seguida — A culpa é minha por me aproximar descuidadamente. Por favor, não peça desculpas.

Ele voltou a ficar de pé e então passou a mão no rosto limpando o pequeno filete de sangue que escorria do corte, ajeitando em seguida o capuz que também fora cortado na lateral, ao menos alguns centímetros. Não o suficiente para que ele não pudesse manter a sua identidade escondida.

— Precisamos achar Denali, ele está em algum lugar esperando para que a cabeça do marquês Aspen caia em suas mãos — disse retomando meus sentidos. — Onde estão os outros?

— Seu guarda pessoal e a dama estão com a outra metade dos meus soldados — o homem ergueu a mão chamando provavelmente o restante deles que estavam escondidos —, somos seus para comandar alteza.

— Se o que o contador de histórias me mostrou foi real, os balorianos estão desacordados por hora. Os prenda enquanto estão inertes, não podemos deixar que o ex-herdeiro de Midwinter escape, dei uma chance, não vai acontecer uma segunda vez. Levem Rav até a mansão e peçam ao marquês o que precisarem.

— Entendido — os guardas se foram, o general de Aruna, por outro lado, ficou comigo.

Alguém como ele não estaria no centro da revolta, instigaria o tumulto e então iria esperar para ver o resultado. Nesse caso, como deu errado, o provável é que fugisse. Como o covarde de personalidade ruim que é.

Junto de Aibek corremos até uma das saídas da cidade da fronteira, como o mais velho já estava em Midwinter antes da minha chegada, tinha alguma ideia de por onde que o idiota fugiria. O fato dele ter sido um caçador antes de um guarda, com certeza afiou seus sentidos de todas as maneiras.

Aos xingamentos e resmungos ele estava pronto para subir num cavalo e partir, juntei as mãos e runas douradas circularam algumas das árvores que havia na beirada da estrada de terra. Os troncos explodiram num estrondo assustando a montaria que deu um relincho e afastou Denali o fazendo cair no chão.

— Eu deveria saber que você, morto, tem mais serventia — disse puxando a lâmina a colocando em seu pescoço.

— E você teria mais utilidade com essa boca chupando um p-

Nem uma palavra saiu da boca dele, a ponta da minha bota acertou a lateral do seu rosto. Me abaixei e cravei a espada na sua mão enquanto ele ainda tentava se recuperar do chute na boca, cuspindo pedaços de dente e saliva misturada com sangue na neve.

— Minha preferência pessoal é sempre não deixar que os outros sofram mais do que o necessário — sorri —, portando vou eliminar esse mal que você tem no meio das pernas e jogar no fogo. Nem os vermes merecem tamanho lixo.

Denali começou a se contorcer resmungando algo, um medroso até o fim. Foi então que percebi não ser de dor. As pontas de seus dedos começaram a cravar a neve e seu corpo a tremer.

Foi então que senti meu corpo sendo puxado para trás, antes de contemplar o que um dia foi o filho do marquês explodir no ar, de dentro para fora. A carne pareceu se desprender dos ossos e uma energia lúgubre com cheiro de cadáver nos acertou. O cenário era familiar, pois já tinha visto algo parecido quando encontramos o lobo necromante nos terrenos do palácio do sol.

Aibek me tinha atrás do escudo feito com magia da lua. A semelhança com Charon era tremenda para ele não ter nenhuma relação com a família real. Por um momento eu não sabia se focava minha atenção no que restou de Denali ou a recém-descoberta sanguínea do general.

— Sabia que os Magos do Vazio estavam envolvidos com alguns solares, e até aruanos. Mas não imaginei que fossem com a dita nobreza. — ele se levantou primeiro, me ajudando em seguida. Ele olhou para a ferida em minha mão, mas nada disse.

Claro, esse foi o motivo dele estar em Midwinter desde o começo, investigar os seguidores de Calligo e sua relação com os balorianos atravessando ambas fronteiras.

O homem andou até a espada ainda cravada no chão e a tirou, apenas para revelar a lâmina corroída. Pela segunda vez naquela noite senti o vento soprar lento, carregando uma risada.

Todo o caos instaurado na cidade não se resolveu até que o sol nascesse, nesse ponto eu já estava de volta a mansão Aspen para acompanhar as resoluções. O resto do corpo de Denali foi encontrado carbonizado pelos soldados do marquês, Aibek achou melhor fabricar uma cena para não gerar mais animosidade, e eu concordei. Mandaria uma mensagem para Valet reportando os acontecimentos em detalhes, mas deixando Midwinter no escuro.

Os cidadãos de Barlor presos na revolta seriam investigados, e o que viria depois dependeria dessa conclusão.

Infelizmente a minha partida foi adiada em alguns dias, considerando que o marquês tinha um funeral para fazer. Não tinha nenhuma obrigação de ficar, porém, julguei ser um bom movimento para fortalecer o apoio da fronteira em relação à Cyrus herdar o trono.

— Estaremos aguardando ansiosos pelo seu retorno, vossa alteza, garanto que virá uma Midwinter completamente diferente.

Enfim, chegará o dia de continuar minha viagem.

— Tenho certeza que sim marquês — respondi sem querer estender demais a conversa — ouvi dizer que seu sobrinho já está retornando.

— Sim, meu irmão também já está assumindo algumas funções. Creio que será melhor para mim e para minha esposa nos afastarmos de nossas posições por um tempo.

Sorri dessa vez com sinceridade — Se me for permitido fazer uma sugestão, o ducado de Veroni é ensolarado e com os dias quentes. Será bom para vocês esquentar um pouco as mãos no sul.

O mais velho se curvou também com um sorriso — Manterei isso em mente. Obrigado.

Rav me estendeu a mão e me ajudou a subir na carruagem, Midwinter ficaria para trás com todos os seus mistérios a serem concluídos. Suspirei alto e me deixei deitar no banco.

— Quanto tempo ainda temos até o Castelo Lunar?

— Alguns dias — Polly respondeu animada. E não por conta da minha presença.

Tombei a cabeça para o lado e a vi segurando a boneca fortemente entre os braços.

— Não acha que já passou da idade de brincar com esse tipo de coisa?

— Mas é tão fofa! É como você, sem o sarcasmo e de boca fechada — rebateu —, onde a achou?

Se eu parasse para escutar o vento, ainda poderia encontrar algumas das notas musicais perdidas nele.

— Me chame quando chegarmos na próxima cidade. — Fechei os olhos apenas para receber um resmungo.

— Ao menos agora, uma de vocês escuta o que estou falando.







N/A: Com demora sim! Abandonada nunca, estamos com dias mais tranquilos o que significa que tenho mais tempo para escrever.

Obrigada por ler até aqui!

Até mais, Xx!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top