Manchas no Outono ୧ ⎯
Apollyne veio me visitar pela manhã como de costume, mas aleguei estar com dores para ganhar mais algum tempo sozinha. Quanto voltaram a me chamar foi apenas para dizer que trariam o meu almoço no quarto, o rei deveria estar urrando de ódio pela minha ausência e falta de comprometimento.
Sobre o problemático Príncipe Charon, soube que retornou da sua aventura em segurança. Disse aos guardas estar curioso sobre os jardins e como teve insônia, resolveu dar uma volta, depois de uma bronca da sua própria guarda retornou ao quarto de onde não saiu até de manhã. A qual passou com Aibek e Spade nos campos de treinamento.
Rav me trouxe o relatório sobre os acontecimentos da cidade pouco depois de ser forçada a levantar, os ratos causaram uma certa comoção nas vielas. A maioria fugiu, os menos afortunados foram capturados pelos soldados do sol e levados a investigação. Foram presos nos calabouços e pelo que ele ouviu, durante as buscas quando chegaram próximo ao bosque encontraram mais dois mercenários.
Os homens estavam amarrados juntos a uma árvore desacordados, e miseravelmente expostos.
Precisei prestar alguma atenção para não deixar escapar um riso, a luta foi deveras divertida. Fiz questão de arrumar uma bela pose para que os guardas os achassem. As noites nessa época do ano não são tão frias e tomar um pouco de luz lunar diretamente no corpo não faria nenhum mal.
— Parece que tudo foi resolvido — comentei ao fim de seu relatório —, imagino que ainda estão tentando achar os rastros dos que fugiram.
— Sim, Valet está supervisionando pessoalmente — confirmou —, uma última coisa antes de encerrar. Soleil parece estar dando certo trabalho nos estábulos, pediram para passar lá assim que possível, já que ele só escuta você.
Respirei fundo, o cavalo de raça lusitana esteve comigo desde sempre e às vezes dava trabalho para os cuidadores, quando isso acontecia geralmente pediam minha ajuda. A princípio achei que o problema estaria relacionado a quantidade de cavalos desconhecidos que chegaram, uma briga por dominância ou algo do tipo, entretanto quando cheguei no local algum tempo depois do pedido a situação era bem diferente.
Na baia ao lado de Soleil tinha um cavalo de pelagem caramelo e crina alguns tons mais claros. Parecia dócil, mas era alto como meu garanhão, nunca tinha o visto por ali então supus ser dos aruanos.
Apoiei as mãos na madeira olhando para os olhos escuros do meu cavalo, sua pelagem preta refletia o pouco de sol que entrava, marcando seus músculos treinados. O macho veio em minha direção buscando um afago — Que tipo de problemas está causando dessa vez?
— Vossa graça — o cuidador veio de encontro a mim com as mãos juntas na frente do corpo e ligeiramente preocupado —, precisamos tratar a égua do Príncipe Imperial, mas Soleil não nos deixa chegar perto. Faz um escândalo toda vez que nos aproximamos, ou que deixamos outros cavalos ao redor. Tivemos que isolar os dois.
— Fala sério — acariciei o focinho dele —, se engraçando com a égua do príncipe? Você não tem vergonha?
Soleil relinchou de leve me dando uma resposta, claro que não, então o animal cor de caramelo era a égua mais veloz de Aruna. Não condenava o macho, de perto era um animal magnífico. Pedi uma maçã da cesta que Rav carregava estendendo em sua direção, a égua parecia desconfiada, mas mesmo assim se aproximou devagar aceitando meu carinho, e também a fruta.
— Então você é Lura — disse alisando seu pescoço, sorri. Realmente era dócil —, bem-vinda a Solaris.
Do lado Soleil queria chamar alguma atenção, Rav estendeu a cesta para mim — Da última vez ele quase arrancou minha mão, não quero arriscar novamente.
— Não sei como ele ficou assim — estendi a ele uma fruta que foi prontamente devorada. — Escuta aqui seu cavalo mimado, pare de dar trabalho aos cuidadores, ou a Lura não conseguirá descansar direito, está ouvindo?
— Oh? Vejo que tivemos a mesma ideia Princesa Eclypse.
— Príncipe Charon — o cumprimentei —, provavelmente não.
Aibek o acompanhava e me fez um cumprimento cordial, Charon se aproximou de Lura e imediatamente ela o recebeu. Era possível ver que a égua realmente gostava de seu dono, para o desespero de Soleil.
— Coloque a sela nele, daremos uma volta antes que acabe causando um acidente — pedi e voltei a encarar o animal —, achei que era um adulto. Está se comportando como um potro adolescente.
— Se me permitir, gostaria de lhe acompanhar — Charon pediu — Lura não está acostumada a ficar presa, os estábulos em Aruna são um pouco diferentes.
Se o meu cavalo pudesse falar com certeza estaria implorando, esperava apenas que aquilo não o deixasse pior — Soleil parece encantado demais com Lura. Não sei se ele merece depois de todo o problema que causou ou, se é uma boa ideia.
O macho bufou forte fazendo até que alguns fios de cabelos meus voassem, isso fez aruano ao meu lado rir — Ele não parece concordar.
Olhei para Charon de cima a baixo, vestes ainda escuras como a noite, porém mais adequadas para um príncipe. Os detalhes eram mais ricos que os trajes de viagem, haviam camadas e estava cheio de fios de prata. Aparentemente estava sem feridas ou exaustão, virei a cabeça quando percebeu que eu o estava observando.
— Se você não cair do cavalo porque dormiu, pode fazer o que quiser.
Seus ombros de levantaram e Charon mexeu no lóbulo da orelha com certa vergonha — Desculpe sobre isso, mais uma vez, garanto que não vai acontecer.
— Rav, capitão Aibek podem nos escoltar? — solicitei mudando o assunto rapidamente — Penso em fazer o caminho no bosque, deixar que os animais gastem um pouco de energia.
Ambos prontamente aceitaram e logo os cavalos foram preparados, em pouco tempo fomos capazes de partir, mesmo que eu quisesse seguir na frente Soleil se recusava a afastar-se de Lura. Então fui obrigada a cavalgar ao lado do príncipe Charon, tão perto que nossas pernas se tocavam ocasionalmente de maneira involuntária.
— Espero que seja uma paixonite passageira — comentei alto —, afinal não vai ficar em Solaris para sempre.
— Posso levar o macho para Aruna.
— Apenas nos seus sonhos — e continuei —, Soleil não deixa outra pessoa montar nele. Cyr tentou uma vez e acabou com um braço quebrado, tive que o ajudar com suas tarefas por duas semanas inteiras, mesmo depois de se tratar com curandeiros.
— Fala de seu irmão com muito carinho — comentou virando o rosto em minha direção —, sempre sorri quando comenta do príncipe.
O observei pelo canto do olho — Não tem boas relações com os seus?
Pelo que eu me lembrava o Imperador Lua tinha quatro herdeiros, Charon era o mais velho deles.
— Tenho, mas não é a mesma coisa. São duas meninas depois de mim, Elara e Portia, as amo com todo meu coração, mas não são do tipo que me ajudaram a treinar, e Kalyke... Bom, ele acabou de fazer cinco anos — tinha um tom divertido enquanto falava de sua família —, o máximo que posso fazer é brincar com espadas de madeira.
Era engraçado pensar em alguém daquele tamanho e com tal habilidade de luta brincando com armas de brinquedo.
— Cyrus nunca teve muito interesse em lutas, sempre caiu para o lado mais diplomata. Gostava de estudar — não faria mal ser amigável, quem sabe assim o rei me deixaria um pouco em paz —, mas sempre tive Rav e Spade. Valet na época treinava os novatos e me deixava participar.
— Isso explica a suas habilidades.
Minhas mãos apertaram as rédeas, droga, droga, droga, depois de ontem é claro que ele teria me identificado. Claramente eu não poderia o silenciar da maneira tradicional então precisava pensar num acordo par-
— Sabe com o arco e flecha — concluiu —, eu me lembro de ficar impressionado antes de... Bem, apagar. O que me leva a adiantar o convite.
Quase suspirei aliviada, mas me preocupei com a segunda parte de sua fala.
— Convite para quê?
— Para a competição de inverno é claro — disse como se fosse óbvio —, eu vim até Solaris para convidar os melhores. Meu pai quer fazer algo memorável já que será o primeiro em muito tempo e, além disso, é uma oportunidade de estreitar laços.
— Cyrus irá convidar muitos nobres para o encontro, pode fazer convites lá. O herdeiro da casa Veroni faz torneios de caça todos os anos, os gêmeos D'Inverna são capitães da guarda. Tão habilidosos quanto Spade, tenho certeza que irá encontrar o que precisa.
— Quero que você vá, Princesa Eclypse. Majoritariamente se espera homens, mas não há nada que impeça sua participação. Inclusive eu acho que tem grandes chances de ganhar.
— Príncipe Charon, eu...
— Apenas Charon — reclamou parando Lura por um momento — Todo esse príncipe para lá príncipe para cá me dá nos nervos. Posso te chamar de Ely? Vi Cyrus te chamando assim.
— Eclypse já não é informal demais? — mesmo que eu dissesse que não, tenho certeza que ele iria ignorar por completo.
— Tome como um símbolo do início de uma amizade duradoura. Já ficamos próximos o bastante para isso, literalmente.
Não consegui conter um resmungo — Você sempre acaba sendo idiota assim? Essa sua boca grande deve te colocar em muitos problemas.
— Também me ajuda a sair de vários.
Virei a cabeça para o lado contrário, achei estar tendo um bom momento, mas tinha algo nele que me fazia perder a paciência num único instante. Como que um herdeiro podia ser tão, descuidado e sincero e de alguma forma inocente? Devia ter muitos, além dos balorianos, atrás de vossa alteza lunar.
O bosque estava tranquilo iluminado pelo sol fraco, soprava uma brisa morna e tinha insetos comuns fazendo suas sinfonias. A maioria das folhas estavam amareladas e mal se prendiam aos galhos, indicando que caminhamos em passos largos para o fim do outono. De repente, depois de passar por uma linha de árvores, os cavalos pararam, e um cheiro horrível nos alcançou.
Soleil relinchou e deu alguns passos nervosos até eu conseguir o controlar, levantei a mão até o rosto tentando diminuir o odor pungente de carniça, tinha algum animal morto por perto. Rav desceu do cavalo sacando a espada de sua cintura, o mesmo aconteceu com Aibek que se aproximou de nós a fim de prover uma proteção.
Guardas faziam rondas por ali todos os dias em quase todos os horários, era impossível nenhum deles terem reportado algo como isso.
— Vejo algo a frente princesa — Rav reportou — parece um animal.
De cima do cavalo vi uma mancha para onde ele apontou, escura deixando cinza o ambiente onde estava como um fungo se proliferando, apodrecendo tudo ao seu redor.
Eu mesma desci de Soleil caminhando para seu lado sobre as folhas secas, Rav tentou falar para eu voltar, mas o impedi de continuar. Um calor tomou as palmas de minhas mãos e runas mágicas surgiram envolta de cada uma delas, as letras que me permitiam usar feitiços brilhavam como se tivessem sido escritas com raios de sol.
Aproximei-me para identificar ser um lobo, estava jogado no chão com o abdômen aberto e vísceras espalhadas ao seu redor. Numa grande mancha escura que umedecia o chão.
— Parece até que teve algo o explodindo de dentro para fora — me abaixei olhando com um pouco mais de cuidado, passando a mão direita por cima de seu corpo. O dourado de minha magia reluziu trazendo com ele algumas respostas.
— O lobo já estava podre antes de encontrar seu fim aqui — me levantei olhando envolta —, vê como a vegetação começa a mudar a coloração? É magia, estava provavelmente cheio de caos.
Rav pareceu pensar — Faria sentido, pode ter andado até aqui e faleceu entre as rondas. O motivo de não ser reportado antes.
— Provavelmente, mas não explica o porquê de ter conseguido chegar tão perto do palácio.
— Como você pode dizer com tanta certeza o motivo da morte? — Charon se aproximou, não era um tom de voz inquisitivo, mas sim curioso e levemente impressionado.
— Magia de Sol — expliquei — Em tese o sol é aquele que permite que a vida se forme, quem ilumina, mostra o que se esconde nas sombras. Uma das habilidades é revelar detalhes que a maioria das pessoas não percebe, e também os esconder quando preciso.
— Parece ser algo único e extraordinário Ely, também funciona em pessoas?
— Depende da situação. Existiram inúmeros sequestros da família real e roubo de magia ao longo dos séculos. Portanto, agradeceria se mantivesse a informação em sigilo — respondi ignorando o modo pelo qual o príncipe aruano me chamou, afogando nos meus pensamentos lembranças do que também acontecera comigo.
— Rav, dispare o sinal para a guarda — pedi e de um movimento rápido uma bola de fogo surgiu, o feitiço se moldou num leão e avançou pelo céu acima das árvores em direção ao palácio.
— Vamos aguardar Spade chegar — disse —, podemos partir depois disso. Tudo bem para vocês?
— Como desejar princesa — Capitão Aibek concordou —, se me permite. Quando você diz estar cheio de caos, se refere a feitiços?
— Sim — olhei o capitão que acenou com a cabeça —, por falta de uma definição melhor chamamos de magia do caos. É o tipo de coisa com que os seguidores de Caligo mexem, imagino que tenha deles em Aruna também.
— Magos do Vazio? Sim, os ocultistas estão em toda parte — Charon que respondeu dessa vez —, deram trabalho nos anos de guerra, espalhavam a palavra de Caligo como se fosse uma deusa ou algo do tipo.
Tombei a cabeça para o lado, não estava errado, eles surgiram de repente discursando em público espalhando absurdos e incentivando as pessoas a procurarem forças na escuridão. Foi só quando a conferência dos cinco reinos declarou crime tais atos que eles começaram a se esconder. Mas nunca parando seus atos hediondos.
Em nosso mundo, magias se originam da natureza: sol, lua, fogo, água, variações dentro do que entende por natural. O caos, tipo de magia que os seguidores de Caligo pregam, surge do sofrimento. Galga nos sentimentos ruins a força, e vê no oculto a chave para a solução dos seus problemas. Aqueles que se dizem seguidores da escuridão com certeza não estão no que podemos dizer ser o lado bom.
Spade não demorou a chegar com alguns soldados ficando surpreso pelo lobo dilacerado no bosque que envolvia o palácio real.
— Verifique os escudos de proteção, e faça uma busca até os limites — ordenei enquanto montava em Soleil para retornar —, espero um relatório para dividir com Sire Valet e Cyrus. Com o evento de Boas-vindas do prin-
Charon limpou a garganta me forçando a revirar os olhos.
— Com as boas-vindas de Charon — enfatisei o nome com deboche —, programada para amanhã precisamos dar certa atenção a segurança.
— Já usando o primeiro nome? — Spade que estava de pé ao do meu cavalo brincou — Você é tão boa em fazer amigos, que orgulho.
— Calado — ralhei ignorando o rubor que surgiu em meu rosto —, vou esperar os resultados, e queimem o cadáver do lobo.
— Vocês ouviram a princesa Eclypse rapazes, ao trabalho.
Soleil começou a cavalgar me levando de volta para o palácio.
— Parece ter um certo controle sobre os guardas, isso não é comum.
— Tem muito sobre mim que não é comum Charon — apertei as rédeas do garanhão —, não nasci seguindo a forma de uma boa princesa e não pretendo cortar aquilo que me faz ser Eclypse. Se eu não me curvo ao mundo, ele que se curve a mim.
N/A: Obrigada por ler até aqui, e por dar uma chance a essa estória que eu tanto amo. Sei que as atualizações são lentas. Mas como é um projeto diferenciado preciso de mais atenção.
Próxima atualização 16 de Novembro.
Se gostou, coloque na biblioteca para não perder as próximas. Se souber alguém que se interesse, espalhe :) Me ajuda bastante.
Até mais, Xx!
Amo vocês mais que ontem menos que amanhã.
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