Capítulo 3


Sofia tentava contar até cem para baixar a rapidez de seus batimentos e acalmar sua mente, porém estava sendo um pouco difícil. Se ficasse pensando no assunto, talvez piorasse aquela sensação de sufocamento. Tinha certeza que sua pressão já havia se elevado, pois sentia o rosto quente e as mãos formigando.

Não deveria ter enviado aquelas mensagens a Guilherme. Deveria ter ficado quieta, como sempre, fingindo que a revelação não a havia incomodado. Mas não conseguira. Fora fraca. Fora boba. Fora estúpida a ponto de mostrar a ele que havia ficado muito mais do que incomodada.

Tu tem alguma noção do que fez?

É claro que não tinha. Seu vizinho/ex-colega/ex-melhor-amigo era simplesmente um asno. Como pudera não entender o que se passava com ela durante todo o tempo em que foram amigos? Como pudera tratá-la daquela maneira? E por que Maria Eduarda havia feito o que fez? Achava que eram amigas, mas havia errado nisso também. Talvez o problema fosse nunca ter dito nada a ela sobre seus sentimentos. No entanto, tinha a impressão que todos sabiam. Ou por que motivo sempre ficavam perguntando se ela e Guilherme estavam namorando?

Os dois passavam o tempo todo juntos. Além disso, era bastante óbvio que tinham bastante intimidade. Estavam sempre se abraçando, se tocando, trocando olhares cúmplices de quem não precisa de palavras para entender o que o outro está pensando.

Ah, Duda! Por que havia feito aquilo com ela? Por que nunca dissera que estava a fim de Guilherme? Por que o beijara naquela festa de formatura idiota e depois fora embora, como se não tivesse causado o maior estrago em suas vidas?

Lembrava-se do bendito dia como se houvesse sido no dia anterior. Estavam felizes da vida com o término do ensino fundamental. Agora seriam os grandes: vida nova, ano novo, colegas novos.

E então Duda anunciara que não ficaria em Porto Alegre no próximo ano. Seu pai estava novamente sendo transferido para outra unidade. Viviam se mudando e, por incrível que pareça, a garota não se importava. Gostava de ter amigos em várias partes do país, gostava de conhecer novas pessoas, diferente de Sofia. Era originalmente do interior do Espírito Santo, o que explicava sua ascendência alemã, os cabelos lisos e loiros, os olhos claros, a tez rosada e aquele sotaque gostoso com erres puxados.

Ficaram tristes, mas prometeram fazer uma bela despedida naquela festa de formatura. Embora normalmente não fossem a nenhuma festa, naquele dia tinham um motivo especial.

Em algum momento, depois de deixar os amigos sozinhos, Sofia foi ao banheiro, no fundo do salão. Usava um vestido tomara que caia preto que a incomodava muito. Tinha certo receio de que de fato caísse a qualquer momento, já que lhe faltavam seios para preenchê-lo, então toda hora fugia para se olhar no espelho.

Ao sair, deu um esbarrão em Leonardo, um de seus colegas. Ele se desculpou, sorrindo de um jeito estranho, e a examinou de cima a baixo. Sofia achou aquilo bastante constrangedor, mas fez o possível para ser simpática respondendo que não fora nada. Teria ido embora em seguida, fugindo o mais rápido possível, mas assim que pisou para sair, sentiu os dedos de Leo envolverem seu pulso de forma delicada e ele se inclinar para dizer algo em seu ouvido:

— Nunca te vi tão bonita, Sofi. Devia aparecer assim mais vezes.

Sentiu-se ainda mais envergonhada ao perceber que algum dos garotos da turma tivesse reparado em sua existência. Ela que fazia de tudo para não ser percebida.

Baixando os olhos, certa de que estava vermelha, agradeceu o elogio e saiu antes que ele quisesse mais do que dizer algumas palavras. Quando chegou de volta ao salão lotado, deu algumas voltas à procura de Guilherme e Maria Eduarda. Não estavam na pista de dança, não estavam no bar, nem em nenhuma das mesas dispostas embaixo das janelas que circundavam o local. Sentiu que tinha sido esquecida, até finalmente encontrá-los trocando beijos no canto embaixo da escada que levava aos camarotes.

E seu coração se partiu em um milhão de pedacinhos.

Guilherme precisava contar à ex-melhor-amiga o que havia acontecido naquela formatura e como havia chegado ao ponto de beijar Duda, embora não tivesse tanta certeza de que a garota compreenderia a situação. Nem ele mesmo compreendia. Porém sabia que seria muito difícil contar com detalhes sem parecer um bobo. Quer dizer, como diria a Sofia que a tinha visto com Leo perto dos banheiros, um sorrindo para o outro como se tivessem bastante intimidade, como se estivessem prestes a ter algum envolvimento? Se várias garotas tinham interesse naquele garoto, era por algum motivo. E ele sabia que o motivo provavelmente estava no fato de que Leonardo era magro, bonito e inteligente, enquanto ele era um gordinho sem graça nenhuma e que ainda andava com duas garotas.

Provavelmente pensavam que gostava de meninos. Era o que sempre pensavam. Era o que Sofia certamente pensava.

Com medo de que vissem seus olhos cheios de lágrimas, Guilherme fugiu para um canto escondido embaixo do vão das escadas e se refugiou no escuro antes que alguém notasse sua falta. Ele se sentia horrível, o maior dos rejeitados. Encheu a boca com as balinhas de menta guardadas nos bolsos da calça e cruzou os braços, encostando-se na parede, sem se preocupar que alguém o visse ali.

Segurou o choro, porque não ia deixar que o vissem mal daquele jeito. Ficou olhando de longe os adolescentes se movimentarem na pista de dança ao som da batida da música. Ele era um idiota. Um idiota que perdera a amiga para um idiota ainda maior. Nem percebeu quando Duda se aproximou.

— O que fazendo aí no escuro, maluco? – ela disse, sorrindo e se apoiando na base da escada. No entanto, assim que viu melhor sua expressão, seu sorriso morreu. – O que foi, Gui?

— Nada. bem – mentiu.

— Que nada, o quê!! com aquela cara de quem comeu e não gostou.

Guilherme a fitou de canto, pensando como ela o conhecia tão bem em tão pouco tempo.

— Nada, sério.

— Por que não me conta e a gente resolve se é nada ou não? – Duda sugeriu, então pisou até Guilherme e se encostou à parede, da mesma forma que ele.

Apoiada pelas costas, desceu até sentar-se no chão, puxando-o junto, sem ao menos se importar com o fato de que estava mostrando quase toda as longas e brancas pernas naquela posição. Ele gostava muito desse jeito espontâneo da garota.

— O que foi que te fizeram pra você ficar desse jeito? Você é sempre tão feliz.

Ele era sempre tão feliz, até perceber que nunca teria a garota dos seus sonhos como namorada. Se é que algum dia teria alguma namorada. No momento estava difícil de prever.

— Tu acha que eu sou tão feio assim que a Sofia prefira o Leo? – soltou, sem ao menos pensar antes de dizer. Ele dificilmente refletia muito sobre suas palavras, exceto quando falava com a vizinha. Tentava sempre parecer mais inteligente do que realmente era.

Duda levantou as sobrancelhas e sorriu daquele jeito debochado que só ela tinha.

— Você gosta da Sofi! – Não era uma pergunta, era uma constatação. – Eu sabia!

— E de que adianta se ela não gosta de mim da mesma forma? – questionou, mais para si mesmo do que para Duda. – É porque eu sou muito feio? E gordo?

A loira deu uma risada alta e ele ficou constrangido.

— Não seja bobo, Gui! O Leo não é melhor do que você só porque é magrelo. Ele nem tem esses seus olhos lindos. E nem essas covinhas – ela disse, cutucando sua bochecha.

Guilherme a encarou, o que era um pouco difícil naquela posição. Duda então ficou de joelhos ao seu lado e pôs a mão em seu ombro.

— Você não pode ficar se menosprezando assim só porque uma menina não te quis. Existem muitas outras por aí que vão gostar de você.

— Não conheci nenhuma que gostasse até hoje – gemeu, controlando as lágrimas que ameaçavam cair de seus olhos.

— Caramba, Gui! – Ela gargalhou outra vez. – Você realmente nunca beijou ninguém na boca? Quer dizer que a Sofi saiu na sua frente?

Mais uma vez Guilherme sentiu o rosto pegando fogo com a forma como a amiga dizia as coisas tão diretamente. Então ela também havia visto Sofia com Leonardo? Ele não estava enganado, no fim das contas.

O garoto quis dizer alguma coisa para se defender, como inventar que já tinha sim beijado uma garota qualquer, em algum lugar distante, mas seria irrelevante. Ela nem acreditaria.

— Vamos fazer o seguinte: como eu sou sua amiga e te acho maravilhoso, vou te provar que existem sim meninas que vão gostar de você.

Então ele sentiu o coração quase sair pela boca quando percebeu que Maria Eduarda se inclinava para mais perto até encostar os lábios nos seus.

Sofia estava um pouco mais calma e já havia pegado os materiais de química para estudar, ainda que fosse uma sexta-feira e que a prova fosse na segunda-feira. Nunca era cedo demais para treinar. Além disso, aquilo a acalmava de alguma forma. Precisava mudar o foco de seus pensamentos, ainda que achasse que seria inútil.

Até que um barulho na porta chamou sua atenção. Uma leve batida, quase imperceptível no meio dos ruídos constantes da rua naquela hora da tarde. Achou que deveria ser a moça que fazia a limpeza dos corredores que às vezes esbarrava ali, então baixou a cabeça e voltou sua atenção novamente para os cálculos estequiométricos a sua frente.

Então houve mais três batidas. Dessa vez mais fortes e altas. O cachorro até levantou a cabeça e olhou para o local. Havia alguém na porta. Seria um vizinho pedindo alguma coisa? Certamente era a dona Mercedes, do 502, pedindo outra vez que fosse até a farmácia ou à padaria porque estava muito velha e cansada e Sofia era mais novinha e forte. Maldita hora em que aceitou fazer isso pela primeira vez. Agora a vizinha não parava de abusar de sua boa vontade.

Levantou-se da mesa, largando o cobertor que sempre deixava sobre as pernas para esquentá-la melhor, e dirigiu-se lentamente à porta, com nenhuma pressa de atender a vizinha.

Não era dona Mercedes. Pelo olho mágico viu a figura de Guilherme do outro lado, no corredor, com os braços cruzados, parecendo tão nervoso quanto ela agora que sabia quem era. Respirou fundo e por um instante quase pensou em não atender, fingindo não ter ninguém em casa. Desistiu e abriu a porta com o coração aos tropeços.

— Como foi que tu subiu?

Ela não estava irritada, mas surpresa.

— Er... o porteiro me conhece. E ele viu meu uniforme, acho.

O garoto tinha tirado o casaco e estava apenas com o moletom da escola, mesmo com todo aquele frio. E o porteiro trabalhava por ali havia mais de cinco anos. E sabia da vida de todo mundo, por sinal.

— Tu te importa se eu entrar? – perguntou o garoto.

Sofia não respondeu, se limitando apenas a sair do caminho para que o vizinho entrasse em sua sala de estar. Ele passou, lentamente, de cabeça baixa, deixando um rastro de menta pelo caminho, e parou ao lado do sofá, onde parou para fazer carinho em Toby. Só depois é que Sofia fechou a porta e cruzou os braços, tendo antes engolido em seco para ver se fazia seu coração bater mais devagar.

— O que foi, Guilherme? – soltou, nervosa, mas sem querer transparecer, como se tivesse esquecido tudo o que lhe havia dito quinze minutos antes. Não passava de atuação.

Ele havia posto as mãos nos bolsos da calça depois que o cachorro decidira voltar para seu cantinho embaixo da janela. Guilherme ainda não a encarava. Parecia aflito.

— Não queria que tu me odiasse, Sofis – murmurou, daquele jeito tristonho que só ele conseguia fazer e que sempre a deixara morrendo de pena.

Sofia foi pega de surpresa com a frase.

— Por que eu te odiaria?

— Tu parece irritada comigo.

Ela piscou algumas vezes, refletindo. Então finalmente soltou a maçaneta e se afastou da porta, cruzando os braços na frente do corpo.

— Tu larga uma revelação daquelas assim do nada e não quer que eu fique irritada? – reclamou, a voz uma pouco mais alta do que gostaria. – Qual é o teu problema? Por que tu inventaria algo assim?

— Eu não inventei! – ele discordou, levantando o queixo para encará-la, os olhos azuis tão devastados.

A morena se afastou, indo até a janela do outro lado da sala. Ficou de costas para o garoto, para evitar que notasse seus olhos marejados de angústia. Não choraria na sua frente.

— Por que tu beijou a Duda então? – conseguiu perguntar, embora sentisse uma bola enorme trancando sua garganta. – Achei que tu gostava dela – acrescentou, com a voz baixa.

Sofia ouviu Guilherme suspirar alto e o viu pelo reflexo do vidro da janela que havia se sentado no braço do sofá. Ele mordia os lábios, como se com medo de dizer a verdade.

— T-tu tava c-com o Leo – gaguejou. – E f-foi ela que me beijou. Não pude impedir.

Ela sabia que Guilherme nunca havia beijado alguém até aquele dia. Havia um certo pacto silencioso de que não falariam sobre essas coisas um com o outro. Sofia, pelo menos, não queria saber. Mesmo assim ela sabia. Quando viu os dois amigos juntos, ao invés de chorar, de voltar para casa, de sofrer como uma adolescente normal faria, decidiu, como a pessoa mais racional do mundo, que o melhor que tinha a fazer era esquecê-lo. Não sabia muito bem quanto tempo levaria para tirá-lo de sua mente ou de seu coração, mas sabia que ver os dois amigos juntos faria com que nunca se sentisse bem, até que ela se afastaria para sempre.

Voltou à pista de dança, refletindo sobre o que fazer. Será que deveria ligar para o pai buscá-la? Foi quando, olhando para os lados, encontrou os olhos de um de seus colegas a encarando. Era Leo, o mesmo da porta do banheiro. O mesmo que dissera que ela estava bonita. Ele não era exatamente o cara por quem ela se apaixonaria, mas também não era como se fosse feio, chato ou grosseiro. E estava interessado nela. Era a oportunidade perfeita.

Nem pensou muito antes de agir. Dirigiu-se até o garoto e, sem dizer nada, o arrastou até um canto mais reservado. O garoto não precisou de nenhuma palavra para entender o que ela queria.

Guilherme escutou a gargalhada de Sofia retumbando em sua mente como os tambores de uma escola de samba no carnaval. Aquilo não tinha a menor graça. Aquela atitude não combinava em nada com a garota tranquila e quieta que ele conhecia. Sempre pareceu um pouco fria em algumas ocasiões, mas nunca fora sarcástica.

— É bem a cara da Duda te beijar do nada – ela disse, virando-se só alguns centímetros para ver sua reação. – E bem a tua cara deixar isso acontecer.

O que ela queria dizer com bem a tua cara? Ele não perguntou. Era melhor nem saber o que aquilo significava.

— Eu não fiquei com o Leo até te ver com ela, Guilherme – continuou, como se aquilo fosse muito óbvio.

Só que não era. Não até aquele momento.

Guilherme arqueou as sobrancelhas, assombrado, encarando o reflexo de Sofia no vidro da janela a sua frente. Ela parecia bastante incomodada. Era um misto de vergonha e raiva, o rosto e pescoço, sua única pele exposta, cheia de manchas vermelhas.

— Mas tu namorou com ele por um tempão depois daquilo – lembrou ele. – Durante as férias de verão toda.

Ele lembrava o quão difícil havia sido ter que vê-los de sorrisinhos bobos toda vez que os encontrava pelo bairro. Depois pela escola. Pior ainda foi ter que vê-los aos beijos, ainda naquela noite, embora ele mesmo tivesse passado um bom tempo com Duda. O problema era que, mesmo beijando a loira, ele ainda pensava na morena tanto quanto antes. Não era apenas em uma estranha troca de salivas que aqueles sentimentos mudariam.

E não mudaram. Maria Eduarda foi embora na outra semana. Eles mal se despediram. O clima estava estranho entre os três amigos. Mais estranho havia sido conseguir falar com Sofia depois. Ele simplesmente não conseguia chegar perto dela sem que Leo estivesse presente, como se soubesse que tinha sentimentos por ela. Foi assim que desistiu de tentar.

Guilherme nunca achou que o casal combinasse. Leonardo era muito bobo, muito infantil para Sofia, o palhacinho da turma. Ela merecia alguém melhor. Mas isso não importava. Até porque o namoro não durou muito além das férias de verão, como ele imaginou que aconteceria, quando todos descobriram que não estariam na mesma turma, cada um para um lado. E então já era tarde demais, ele e a vizinha já não eram mais amigos, mal se falaram naquelas férias, e mal se falaram nas semanas que se seguiram.

Sofia soltou mais uma risadinha, mas dessa vez parecia mais nervosa do que maquiavélica. Mirando no carpete peludo a seus pés, parecendo mais vermelha do que de costume, ela disse:

— Eu só fiquei com ele por tua causa, tonto.

O garoto não entendeu de imediato. Levou alguns segundos para juntar as partes num todo.

— Por minha causa? – perguntou, para ter certeza, levantando os olhos para a ex-colega.

Sofia deu alguns passos e se sentou bem no meio do sofá. Ela sorria de canto, sem fitá-lo, daquele jeito que fazia quando queria esconder algo que sabia que não conseguiria. Ela continuava absurdamente linda cada vez que fazia aquilo.

— Eu... er... – a garota tentou dizer. – Eu fiquei muito mal de te ver... sabe, com a Duda.

Guilherme piscou várias vezes, ainda sem entender. Por que diabos ela ficaria mal por vê-los juntos? Ela e Duda se davam bem. Por que ficaria incomodada pela amiga?

Como diria minha mãe, só dando com um gato morto na cabeça até ele miar. Será que vai demorar para que ele entenda? 


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