CAPÍTULO 8

Penitenciária da Toca do lobo, outubro de 2018

          Elis Margô estava com ódio, eu não era só por ter apanhado, já que ela também bateu, e sim porque ia ficar completamente trancada por três dias. Naquela manhã estressante, Zuza teve de separar uma briga dela com a torturadora da delegada.

          Acontece que Lili estava arrumando seus cremes de cabelo quando ouviu o estrondo do metal. Quando olhou para trás, deu de cara com a Delegada Bárbara Velasques e seu charuto aceso. Lili nem ao menos teve tempo de pensar quando sentiu a nicotina quente em seu pescoço exposto. Bárbara a queimou com uma piúba e Elis Margô deu um grito, que se misturou com as coisas que Bárbara dizia.

          – Quero ver se a puta da sua mãe vai te defender agora!

          Mas, Bárbara não fazia a menor ideia do que acontecia com quem chamava a mãe de Elis Margô de puta. Ela só descobriu quando levou um murro na bochecha esquerda e quase caiu no chão, deixando que seu uísque ficasse à mostra.

          – Então, quer dizer que a delegada vem trabalhar bêbada? – A moça ironizou.

          – É impressionante o quanto você sabe falar quando lhe é conveniente. – Dessa vez, foi Bárbara quem a acertou, bem no meio da barriga.

          Só que Elis Margô não deixou por isso mesmo e a agarrou pelos cabelos. – Sua cadela! Sua cadela! Sua cadela! Por que não vai comer a carcereira e me deixa em paz?!

          E antes que qualquer uma das duas desse o próximo passo, Zuza invadiu a sala e levantou seu cassetete para Lili. – Mas o que diabos está acontecendo aqui? O que foi que você fez, sua vadia?! – Mas ela não conseguiu bater, não quando a cela já estava cheia de policiais.

          – O que está acontecendo aqui? Perguntou uma delas, sacando sua arma, certamente, com medo de Elis Margô.

          – Pergunta para a digníssima delegada! – Elis Margô apenas olhou para o bolso de Bárbara, onde estava aquele pequeno frasco de uísque, dando uma ameaça velada de que ia contar tudo se por acaso fosse mandada para a solitária.

          – Deixem que eu cuido dela. – Bárbara disse.

          – Mas temos que levá-la para a solitária. – Afirmou Zuza.

          – Basta tirá-la da biblioteca e do banho de sol, é o bastante. – A delegada disse e se levantou, deixando todo mundo sem entender e obrigando as pessoas a saírem de lá. Lili foi algemada na grade para conversar com a delegada, só por precaução.

          – Eu juro que te mataria agora mesmo se eu pudesse. – Rosnou a mais velha.

          – Mas você não pode, eu preciso ser entregue intacta para o estado mesmo me matar. Vai ter que me aguentar até o dia em que isso acontecer. E é por isso mesmo que você não pode me mandar para a solitária também, não quando a revista encontrar essa queimadura em mim quando todos sabem que Elis Margô de Valente odeia cigarros! Daí, verão que a delegada faz torturas desmedidas e é uma bêbada!

          Bárbara agarrou o pescoço de Lili, mas depois teve que soltar, sabendo que não ia se controlar e acabaria fazendo uma besteira. Naquele momento, Lili ficou com muito medo dela, o que era suficiente para Bárbara.

          – Não adianta bater boca com uma mulher que não tem mais nada a perder, não é mesmo? É chutar cachorro morto!

          Elis Margô teve que se calar dessa vez, porque estava algemada e não teria como se defender, e também porque tinha a impressão de que a delegada, assim como ela, também já havia perdido tudo.

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Bairro de Bibiana, maio de 2012

          Elis Margô de Valente tinha 12 anos quando descobriu, pela primeira vez, o que é ser mulher nesse mundo cão. Primeiro, porque ela tinha tido sua primeira menstruação no mês passado – fato que a deixou tão feliz, até o primeiro vazamento. Agora, ela mal conseguia dormir pensando que a dita cuja já chegaria novamente. A impressão que ela tinha era que seu fluxo estava descontando aqueles quase 12 anos e meio que ele ficou contido dentro de seu útero infantil, que já não era mais infantil.

          Segundo, ocorreu a Lili que a existência de um útero não infantil lhe trazia outras preocupações além de um pouco de sangue e dor. Aqueles pequenos seios, que já brotavam desde os seus 10 anos, estavam se desenvolvendo feito um foguete, o que deixou sua mãe muito empolgada na compra de uma coleção de sutiãs que mais pareciam tirinhas de pano. Se o útero de Lili não podia ser visto pelos homens, seus seios sim. Não obstante, ela parecia estar virando uma ameaça para as boas mulheres casadas do bairro de Bibiana, com suas saias grandes e línguas maiores ainda. E se ela ficasse como a mãe? Sendo que Lili nem sabia ainda como sua mãe conseguia dinheiro para pagar a mensalidade de sua escola, que estava na casa dos quatro dígitos.

          Enquanto isso, Mila estava lhe dando com as suas duas frustrações juvenis: era a única da sala que ainda não tinha menstruado, ainda que fosse uma das mais velhas, além de que o seu irmão havia esquecido da sua existência por causa de outras garotas mais interessantes que ela. Mas Mila também tinha que reconhecer que o trocou também. Podia até dizer que Lili era muito mais sua irmã do que ele.

          E tinha Christopher, que ainda parecia alheio à presença das garotas. Ele só tinha 12 anos e estava mais interessado em vencer mais uma competição de xadrez pra manter o seu título de melhor do município por mais alguns anos. Comentava-se na escola, também, que Dona Sara já não tinha mais poder sobre o corte de cabelo dele, que estava enorme e embaraçado. Não que aquela fosse a maior das preocupações de Sara, já que seu filho estava fazendo viagens sozinho no ônibus do clube de xadrez toda vez que precisava competir. Não a deixavam ir com ele. Haviam coisas que nem o seu dinheiro era capaz de comprar.

          Por azar ou por sorte, a adolescência trazia consigo as reflexões mais profundas sobre a existência humana, e aqueles jovens já percebiam que isso dizia muito mais sobre os adultos que sobre eles mesmos. O momento mais esperado daquele bairro de classe alta era o felizardo dia em que Christopher e Mila declarariam o seu amor um pelo outro e dariam o seu primeiro beijo. Não que Mila não desejasse, internamente, que isso acontecesse. Então, Lili vinha para lembrá-la que a característica principal do primeiro beijo é ser ruim, o que faria qualquer declaração de amor cair por terra.

          E, no meio disso, Nice trazia uma outra percepção de adulta: que Lili talvez gostasse de Christopher, mas era difícil saber de quem ele gostava, pois ele era doce com todos, diferente do demais garotos. Mas estava bom assim, já que, quanto antes Lili começasse a gostar de alguém, mais rápido viria o seu sofrimento. Com a idade dela, a mãe já tinha dado o seu primeiro beijo. Pelo que lembrava, ainda estava com 11 anos. Eunice de Valente sempre foi o sonho de todo garoto, porque eles achavam que havia algo de superioridade masculina em ficar com a filha do pastor.

          Daí, ela entrou na Dionisíaca, e o que pareciam ser só pequenos atos de rebeldia contra a rigidez de seus pais, se tornou algo muito grave, com proporções tão dantescas que levariam Eunice de Valente para as ruínas. Entre a pornografia e o seu espectador haviam vários tons de "mas", e ela devia ter percebido isso no momento em que entrou lá. É certo que ela passou por aquela porta com os próprios pés, sem ninguém para lhe obrigar, o problema é que ela nunca mais conseguiu sair, perdendo o poder sobre os próprios pés e todas as outras partes do seu corpo.

          Ela nunca havia tido um emprego antes, mas sabia que não dava para chamar aquilo de trabalho. Não havia contrato nem recibo. Os "patrões" não existiam para a lei, e os funcionários, muito menos. Aquilo era irônico de se pensar: se todo mundo sabe sobre a existência da grande fonte de entretenimento adulto, Dionisíaca, porque ninguém questionava sobre a existência do seu CNPJ?

          O local de trabalho era outro ponto questionável. A sede era muito mais para guardar equipamentos, peças de roupa, cenários, papéis e muitos computadores para a edição. As fotos e as filmagens eram feitas em qualquer lugar: em praias quase desertas, parques, matagais e, especialmente, na casa do diretor. Às vezes se alugava uma mansão, geralmente, para fazer as edições especiais da revista e os filmes. As casas eram isoladas e seus donos tinham um caráter duvidoso. Bom, ao menos Nice não corria o risco de ser presa por estar praticando nudez em público, como já quase aconteceu dezenas de vezes.

          Sendo que, sem sombra de dúvida, a parte mais ilegal do seu trabalho era Renan, o chefe – ou o cafetão, como preferir. Na verdade, Nice não sabia o nome do homem ao certo. Aquela prática era bem comum. Na frente das câmeras, o nome dela, por exemplo, variava muito. Naquela época, ele já estava com mais de 40 anos, segundo especulações de suas colegas. Nice, com 33, já havia sido dispensada por ele. Você está velha demais! Ele disse, e ela ficou tão aliviada que teve vontade de chorar. Seu sonho era o dia em que ia deixar de ser bonita para ter um pouco de paz. Ela ainda tinha que tirar fotos, mas era mais simples de lhe dar.

          Ele era o pior de todos. Pior que o cinegrafista, o iluminista e o sonoplasta. Ao menos eles não tentavam subornar as atrizes com "sexo casual". Poucas delas tinham culhões para dizer que não transariam sem camisinha, nem fariam um oral nele para ganhar o que queriam e que muito menos usariam drogas para ficarem mais desinibidas. Já não bastavam as doses catastróficas de viagras que os homens tomavam para manter suas ereções por horas. Antes dos quarenta, eles já haviam virado depressivos e suicidas. Mas não Renan. Renan não morria nunca.

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Penitenciária da Toca do Lobo, outubro de 2018

          Quando fazia seis meses que Elis Margô foi presa, a delegada foi, finalmente, lhe fazer uma visita. Não era uma revista, nem a vingança de uma bêbada. Lili apenas teve uma única mão algemada na grade, enquanto estava sentada em sua cama. A mão livre ela usava para desfazer as pequenas imperfeições do tecido. Ela passava a mão tantas vezes que a colcha ficava quente. Bárbara só conseguia olhar para aquilo e ficar com dor de cabeça. Aquele pouco tempo na Toca do Lobo estava deixando Lili mais louca. Sendo que era preciso considerar que ela só tinha 18 anos e meio: provavelmente, era a pessoa mais jovem a ser condenada em Faraó à pena de morte desde a segunda guerra.

          Bárbara sentou-se na única cadeira vazia disponível. No geral, ela tinha nojo de sentar nas cadeiras, e usava luvas nas revistas, mas a cela de Elis Margô era organizada e cheirosa. O mínimo de sujeira era capaz de fazê-la surtar. Ela já chegou a virar uma noite inteira em claro porque faltou cloro.

          – Uma pessoa da sua família ligou. – Principiou a delegada. – José de Valente, seu Avô. Você confirma essa informação?

          Elis Margô ficou muito surpresa, mas tentou não demonstrar. Era muito perigoso que a delegada soubesse que ela queria algo. Uma vez, ela leu num livro da Margareth Atwood que querer é o mesmo que ter uma fraqueza. Se Bárbara entendesse que Elis não deveria saber do recado, ela o faria só para torturá-la. E ninguém poderia fazer nada a respeito.

          – Ele é meu avô, sim.

          Bárbara juntou as mãos. – Bom, ele disse, basicamente, que queria dar um último presente a você, nada mais. Eu disse que você tinha direito a um telefonema, mas ele se recusou a conversar com você. Ele vai mandar entregar amanhã, mas não disse o que seria.

          Lili ergueu a cabeça. – Ele não mencionou o motivo? Ele está fazendo isso porque a pena já foi marcada? – Ela não deveria ter se deixado ficar tão vulnerável desse jeito, mas não pôde evitar.

          – Não, não tenho notícias quanto a execução. Ele não disse o motivo, mas eu acredito que seja por causa do que aconteceu há algumas horas. E esse é o motivo principal de eu estar aqui.

          Lili não conseguiu esconder sua emoção mais uma vez. Ela abriu a boca para dizer algo, mas fechou logo em seguida. Bárbara estava sendo tão educada com ela que era impossível não pensar que algo de muito grave estava acontecendo.

          Bárbara estava balançando o pé, nervosamente. – A polícia do estado de João de Barro me ligou. Eles foram chamados para uma ocorrência na sua casa.

          Lili tentou engolir em seco, mas não conseguiu.

          – Tem muita gente vigiando a sua casa, o que quer dizer que não demoraram muito para sentir falta da presença da sua mãe. Ela não tinha saído para trabalhar, nem para fazer compras, nem nada do tipo. Então, um vizinho espiou pelo muro, e viu uma corda amarrada ao teto. Quando a polícia chegou... Atestaram o suicídio. Não sei quantas horas fazem. Aparentemente, ela não aguentou a pressão.

          Lili estava engasgada. A pessoa que mais amou na vida estava morta. Mas essa não era a pior parte, e sim o fato de que algo dentro de Lili lhe dizia que não foi suicídio. A moça aprendeu a não ignorar mais o seu sexto sentido, além de que ela sabia que a mãe nunca iria abandoná-la. Ela prometeu, diversas vezes. E Lili não podia dividir suas aflições com Bárbara. Ela não podia deixar entender que havia algo mais, ainda mais quando não tinha provas. Se ela abrisse a boca para dizer que algo errado acontecia no bairro de Bibiana, Bárbara iria colocá-la contra a parede, e ela não teria respostas para as perguntas da mais velha. Lili não conseguia falar nada. Ela só ficou com os olhos esbugalhados, debatendo as mãos. Céus, nem direito de chorar tinha mais.

          – Antes que você pergunte, eu ainda não tenho informações sobre enterro nem nada do tipo. De qualquer forma, pela situação em que você se encontra, saiba que você não poderia ir, nem sob escolta.

          – Eu já sabia disso. – Ela falou, simplesmente. Não havia mais nada que pudesse dizer.

          – Vou deixar você sozinha. Venho trazer informações à noite, se souber de algo. Se o psiquiatra der permissão, talvez tenha um calmante. Ele vai vir conversar com você. – A delegada levantou-se, mas não saiu de imediato. Ela olhou bem nos olhos de Lili. – Quando o chefe de polícia chegou à porta de trás, havia um presente. Era um pequeno embrulho verde. Dentro tinha um vaso de porcelana ou coisa do tipo. O presente estava no chão, quebrado. Alguém o deixou cair sem querer, porque ainda estava na embalagem. Você sabe se alguém pode ter deixado aquilo lá?

          Lili não podia responder. Primeiro, porque não sabia ao certo quem foi, já que nunca viu a pessoa misteriosa antes. Segundo, porque poderia ficar bem encrencada se revelasse, depois de tantos anos, que sofria perseguição junto com sua mãe. Se a pessoa que deixava aqueles presentes tivesse de fato matado a sua mãe, Lili nunca saberia o como nem o porquê. Ela nem tinha como provar que sua mãe não era uma suicida, na verdade. No fundo, o que acontecia, é que muitas pessoas queriam a cabeça de Eunice de Valente numa bandeja há anos. Lili podia até fazer uma lista com o nome dos possíveis assassinos.

          Ela até tinha motivos para suspeitar de um pessoa muito específica, e não era o misterioso dos presentes.

          – Nós nunca recebíamos visitas. Nem José de Valente andava na minha casa.

          Bárbara parecia estar desconfiada, ou talvez fosse só paranoia de Lili. Acontece que Nice não era uma suicida comum, e sim a mãe da criminosa mais odiada do estado. Muita coisa podia estar envolvida nisso, mas o provável era que, no final das contas, a mulher tivesse apenas sucumbido à dor, o que já era um motivo bastante compreensível. A delegada fechou a porta de ferro e tomou o corredor em direção à saída do subterrâneo. Mas, antes de chegar ao final, ela ouviu um som que nunca achou possível.

          A psicopata estava chorando.

          Elis Margô, o que foi que você fez? 

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