CAPÍTULO 6
Penitenciária de Ustra, setembro de 2018
Uma vez, Christopher ouviu falar que os corvos são negros porque vivem de luto. Chris não gostava dessa ode à morte, logo, desde criança, não simpatizava com os corvos e nem com o Hallowen. Agora, parecia que seu subconsciente havia fixado essa ideia, e o rapaz tinha pesadelos com os bichos quase todas as noites. Da última vez, os olhos dele haviam sido arrancados por bicos famintos, dessa vez foi a língua. Chris temia que da próxima vez fosse o seu coração.
O rapaz acordou empapado de suor, especialmente no pescoço, na testa e nas axilas. Ele sucumbiu à vontade de gritar para não acordar todo mundo. Quando ficou mais calmo e sua respiração regulou, ele passou os dedos nos cabelos, desmanchando os cachos ásperos. Chris coçou as pálpebras até que elas ficassem vermelhas. Então, ele levantou cambaleante, tentando esconder a ereção matinal das câmeras.
A urina estava fétida, como a de um alcoólatra, e seu hálito nunca esteve tão ruim. Ele saiu do banheiro tonto, enjoado, sem nem se dar ao trabalho de lavar as mãos. Sua mãe teria um ataque do coração, pensou, e depois riu. Nem ele sabe porque riu, afinal de contas, nada era engraçado. Precisava escovar os dentes, o café já seria servido. Ou será que ainda era madrugada? Não tinha como saber. Dia e noite haviam se emaranhado e se tornado uma mera convenção.
Mas, que dia era hoje? Já estavam em meados de setembro, disso ele lembrava, no entanto, que dia, precisamente? Ele precisava saber, porque tinha que contar quanto tempo faltava para morrer. Ao menos ele teria um alvo, um objetivo. Precisava saber para onde ir, assim saberia quando chegasse. Chris gostava de coisas exatas, inclusive ia ser matemático quando crescesse. Só que agora ele não ia crescer mais, ao menos não ao ponto de se tornar um matemático, e o mundo não ia mais ganhar um enxadrista genial.
Se ele não tivesse 18 anos depois que o crime foi cometido, não teria pego pena de morte, mas talvez pegasse uma perpétua, o que seria muito pior. No final das contas, a parte pior não era morrer, e sim fazer isso aos 18 anos. Se ele morresse aos 80, morreria como um homem sábio, um matemático respeitado. E ia morrer clamando por piedade, afirmando para os quatro ventos que ele era inocente.
Porque ele era.
Mas Lili... Ela confessou tudo. Deus, por que fez aquilo? Onde estava com a cabeça? Será que estava mesmo ficando louca como diziam por aí? Por que, Lili? Nós amávamos ela e amávamos você.
Então, Christopher Lessa de Arantes, o estuprador de Camila, começou a chorar, pois caiu a ficha que, por dentro, ele e sua melhor amiga já estavam mortos.
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Bairro de Bibiana, fevereiro de 2008
– Chris, se agasalhe, cuidado para não tropeçar nos cadarços, não converse com estranhos e volte para casa antes de anoitecer.
– Mamãe, você já disse isso. Eu já tenho oito anos, sei cuidar de mim mesmo.
Sara acabou rindo. Primeiro, porque teve certeza naquele momento que Christopher não sabia cuidar de si mesmo, sendo assim, ainda podia mantê-lo debaixo das suas asas. Quem sabe cuidar de si mesmo não fala isso, apenas faz. Um adulto não precisa falar sobre o quanto ele é adulto, ele apenas é. Sara já sabia que era uma adulta há muito tempo porque não dizia, só vivia.
Depois, Sara riu por ter tido a dimensão do quanto ela era exagerada. Talvez, a mãe mais superprotetora de todas. Inclusive, Christopher era motivo de chacota por causa disso, sendo constantemente chamado de bebezão na escola. Mas Sara não podia evitar, não quando Christopher foi a criança mais desejada do universo. Seu sonho era ser mãe e aquele era seu único filho. O único depois de tantas tentativas e abortos. Insuficiência placentária, foi o que disseram. Sara já tinha idade de ser Avó daquele menino. Isso também agravava a situação: estava velha! Seu filho ficaria órfão cedo e essa ideia deixava seu coração apertado.
– Vai se encontrar com a Lili na casa da árvore? – Perguntou.
Chris assentiu com a cabeça. – Charlie e Mila ainda estão viajando. – Justificou-se
– Sabe se a mãe dela vai estar lá? – Sara queria saber se havia um adulto supervisionando. Ela mesma queria fazer isso, mas prometeu ao seu marido que deixaria seu filho brincar em paz. Contudo, não queria que essa pessoa fosse Eunice de Valente, não se pudesse evitar.
– A babá dela sempre está por perto, mamãe! – Chris falou, como se fosse óbvio. – Além disso, a mãe da Lili trabalha, esqueceu? – E riu. Eram poucas as mães que trabalhavam no bairro de Bibiana.
– Não, meu anjo, não esqueci. – E deu um beijo no topo da cabeça do filho. Christopher tinha cachinhos de anjo, o seu anjo. – Agora vá brincar. – Chris fez um biquinho, pedindo um selinho pra a mãe, que deu um bem estalado. Depois, o menino saiu correndo.
Christopher, na época, era pequeno demais para saber, entretanto mais tarde, quando fosse preso, Chris se pegaria pensando na relação que tinha com a mãe. Não era só superproteção, havia outra coisa. Sua mãe sempre agia como se alguém fosse roubá-lo dela.
– Chris, sobe aqui!
Chris subiu o mais rápido que pôde, balançando um saquinho com rosquinhas de mel. O menino alcançou a plataforma como se não fosse esforço, com aquela infindável energia que possuem os meninos de oito anos.
– Rosquinhas da Tia Sara. Me dá! – Lili pegou o saco das mãos dele e tirou uma, devolvendo em seguida. Ela lhe deu um sorriso de dentes separados e o puxou para a parte coberta.
Chris não sabia o porquê, mas estava achando Lili incrivelmente bonita naquela tarde, mesmo que ela fosse a Lili de sempre. Talvez fosse por causa daquela roupa vermelha. A mãe de Lili sempre a arrumava como se ela fosse uma boneca. Antes de Lili chegar, ele achava que Mila era a garota mais linda de todas, mas agora estava em dúvidas. Lili era uma outra categoria de linda. Na sua cabeça de menino de oito anos, achar duas garotas bonitas ao mesmo tempo era possível e não havia problema.
Mais tarde, as pessoas comentariam que essa era a grande questão que resumia o problema: num relacionamento não há lugar para três. Nunca na história existiram três amigos sem que um desses ficasse sobrando. Restava agora saber quem dos três que estava sobrando na história, e isso acabaria com a vida deles para sempre.
Lili começou a cantarolar uma música com aquela sua voz de bebê.
– Que música é essa?
– Se chama menininha.
– Eu nunca ouvi falar.
– É claro, você não é uma menininha. – Ela riu.
– E nem quero, vocês são chatas.
Lili olhou para ele com deboche. – Quando a Mila ficar sabendo disso, não vai mais querer casar com você!
– E quem disse que eu vou casar com ela?
– O bairro inteiro.
Chris cruzou os braços. – Você por acaso está com ciúmes?
Lili revirou os olhos. – Você nem é tão bonito assim, deixe de se achar.
Então, eles ouvem um barulho seguido de passos.
– Ai meu Deus, será que foi a sua babá? Ou foi algum bicho papão ou sei lá?
Lili se retesou. – Não, minha babá entrou para casa. – E desceu da casa da árvore. – Ah, não! Minha mãe vai surtar.
– O que aconteceu? – Christopher juntou-se a ela. – Por que tem uma bola no chão?
Um bola de vôlei da Barbie, novinha e lacrada, apareceu ao lado da árvore, sem explicação. Há alguns minutos, quando Christopher subiu, aquela bola não estava ali.
– Já faziam alguns meses que ele não vinha. Ou ela, sei lá. – Falou Lili e olhou para ele. – Alguém deixa presentes misteriosos na minha casa, tanto para mim, quanto para a mamãe.
Chris estava boquiaberto. – Tipo um admirador secreto, sendo que muito assustador. – Ele engoliu em seco. – Você fica com os presentes?
– Só os que não são de comer, mas às vezes minha mãe joga fora antes que eu veja. – Ela olhou para um lado e para o outro. – Vou levar a bola para casa, minha babá não vai desconfiar.
Chris se retesou. Agora, a mãe dele é quem ia surtar. Ele ficou parado enquanto observava Lili correr com a bola para dentro de casa.
– Elis Margô, o que foi que você fez?
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