CAPÍTULO 2
Bairro de Bibiana, março de 2005
Camila Leiria de Borba levantou-se cedo naquela manhã. Mamãe disse ontem que ela precisava ir ao oculista, pois só vivia tropeçando nas coisas. Mila contou para a mamãe que tinha muito medo que seus amiguinhos rissem dela na escola.
– Não tem que ter vergonha, Camilinha. Se eles forem seus amigos de verdade, não vão rir. – Disse a mamãe.
A pequena respirou fundo e jogou suas cobertas dos ursinhos carinhosos para o lado. Mila calçou as sandálias em seu miúdo pé de menina de seis anos e foi se arrastando até o banheiro.
Depois de fazer xixi, Mila subiu no banquinho adaptado para ela na frente da pia. Ela lavou o rosto, fez algumas caretas, deu tapinhas nas bochechas magras até finalmente soltar uma grande gargalhada de si mesma – o tipo da coisa que só criança faz. A menina desceu as escadas com seu baby-doll verde de babados balançando e foi andando pelos corredores do seu primeiro andar luxuoso até a cozinha.
Já na porta, Mila foi atraída pelo cheiro do pão de batata quentinho, croissant de presunto, ovos fritos só de um lado, salada de frutas vermelhas... A pequena correu para escalar sua grande cadeira cor-de-rosa, com uma almofada da sereia Ariel. A mãe tendia a comprar tudo para que ela se sentisse uma princesa. Ela já ia pegar um pão quando Monalisa chegou por trás e a encheu de beijinhos. Mila ria e se contorcia nos braços cheirosos da mamãe, a janelinha de seus dentes recém caídos aparecendo.
– Faz cócegas! – Mila deu um grito.
– Bom dia, meu cotoquinho de gente! – A mãe disse, observando a filha com seus olhos negros cheios de amor. – Por que acordou cedo hoje?
– Eu estou ansiosa. – Disse, sem revelar que também estava um pouco assustada.
– Não precisa disto. – Mamãe encorajou-a. – Não vai doer. – Ela encheu sua xícara de capuchino. – Seu pai vai nos deixar lá e logo estaremos em casa novamente.
– Charlie pode ir com a gente? – Mila perguntou, referindo-se a seu irmão mais velho de sete anos.
– Charlie tem que ir para a aula de piano, filha. – Monalisa falou, bebericando o seu capuchino. – Além disso, você sabe que seu irmão é incapaz de ficar quieto um único instante. Ele, provavelmente, colocaria a cínica abaixo.
Mila riu.
Os óculos de Mila finalmente ficaram prontos depois de cinco dias na ótica. Quando colocou as lentes de aro rosa-choque, tudo ficou mais nítido e vívido, porém ela perdeu totalmente a noção de profundidade.
O dia estava nublado e a mãe deixou que os dois irmãos fossem brincar lá fora, contanto que chegassem a tempo para o jantar. Charlie ajudou a irmã a colocar a jaqueta vermelha e em seguida abotoou o seu cardigã. Ele observou a irmã correndo com as marias-chiquinhas balançando, gritando eufórica enquanto se desviava dos anões de jardim. Sempre foi assim: Mila sentia as coisas de maneira muito intensa. Se chorava, chorava muito. Se ria, ria muito. Já Charlie era conhecido pelas travessuras e pela hiperatividade, dava para saber só de olhar para aquele dente quebrado que ele tinha na frente. Mas cada um tinha a sua própria fofura, havia até quem achasse que eram gêmeos, por causa da pouca diferença.
Os dois foram em direção à pracinha, que foi construída ao redor de um sicômoro centenário, cujos galhos se emaranhavam em um pé de jacarandá exuberante. Era inclusive comum que as pessoas parassem para tirar foto deles. O preço da taxa de condomínio fazia jus àquilo tudo.
– Charlie! Corre devagar para eu poder ganhar de você! – Mila falou ofegante, suas bochechas coradas.
Mas Charlie, cujos cabelos castanho-claro foram bagunçados pelo vento, mostrou a língua para a irmã em tom de brincadeira, sabendo que isso a irritaria. Já Mila, apesar de geralmente não resistir à doçura dos olhos violeta do irmão, fez um bico e o puxou pelo cardigã, fazendo com que os dois caíssem próximos à caixa de areia.
– Mila! Sua trapaceira!
E os dois começaram a rolar pelo chão, fingindo que sabiam lutar alguma coisa. Mila foi a primeira a se levantar e perceber a menina que estava olhando para eles de dentro da caixa de areia. A menina era um pouco menor que Mila e usava um casaco azul com capuz, calça jeans, botas e uma bonita tiara branca que adornava seus cabelos castanhos. Só que nada chamava mais atenção do que o seu par de olhos azuis, os mais lindos que Mila já viu. A menina enchia um balde de areia com o auxílio de uma pá. Ela levantou-se, limpou as mãozinhas na calça e foi na direção dos irmãos com o seu sorriso de dentes separados.
– Oi, tudo bem? – Ela tinha uma voz de bebê, apesar da formalidade precoce.
– Oi! – Charlie apressou-se em dizer. – Eu sou o Charlie, já tenho sete anos e consigo fazer 30 polichinelos, você quer ver?
Mila cruzou os braços. – Mentiroso! Você só sabe fazer 20!
– E esta é a minha irmã, Mila! – O menino apontou o indicador para a esquerda. – Ela só quer ganhar tudo.
A menina pôs as mãos para trás. – Eu sou a Lili, tenho cinco anos e sei cantar um monte de coisas.
– Você quer vir com a gente para a casa da árvore? – Mila convidou Lili.
Lili deu de ombros. – Eu não sei se minha mãe deixa.
– É só você pedir a ela. – Charlie disse.
– Mas é que ela está trabalhando.
Mila tomou a frente. – Sua mãe trabalha com o quê?
– Ela é atriz.
– Daquelas que aparecem na TV? – Mila levou às mãos às bochechas, boquiaberta.
– Sim. – Lili assentiu. – Ela agora está fazendo um filme.
– Quando crescer eu quero fazer um filme também! – Exclamou Mila.
– Então, você pode pedir para o seu pai. – Charlie retomou o assunto.
Lili mudou de expressão. – Mas eu não tenho pai. Somos só eu e minha mãe.
– Não tem pai?! – Os dois irmãos falaram ao mesmo tempo.
Lili afirmou com a cabeça. Ela não sabia o porquê do espanto, já que nunca precisou de um pai mesmo.
– Mas todo mundo tem um pai. – Mila disse.
– Minha mãe disse que ela pode ser o meu pai também. – Lili retrucou, simplesmente, deixando os irmãos sem resposta.
– Você é nova aqui? – Perguntou Charlie.
– Sim. Eu era de outro bairro, bem longe. Só que mandaram minha mãe vir para cá.
– Eu acho que te vi na escola. – Disse Mila, com o dedo no canto da boca.
– Estou lá há alguns dias, mas ainda não tenho amigos.
– Agora tem. – Charlie disse, sorrindo, no que Lili retribuiu.
– Christopher! – Mila deu um gritinho e saiu correndo ao encontro de um menino com uma latinha de Fanta uva na mão.
Charlie se aproximou de Lili. – Um dia ela ainda vai casar com ele, sabia?
Mila puxou Christopher para perto dos outros. O menino tinha uma pele muito branca, mais clara do que todos os que estavam ali. Os olhos eram de um verde claro que o deixava parecido com um daqueles artistas de dança nórdica. O cabelo muito preto tinha cachinhos definidos e charmosos. Quando Christopher sorria, mostrava seus dentes compridos e afilados, quase todos do mesmo tamanho. Assim como Mila, ele também estava em transição dentária.
Mila tratou de fazer as apresentações. – Christopher, essa é a Lili. Ela tem cinco anos e sabe cantar. Lili, este é o Chris, ele também tem cinco anos e passa o dia desmontando as coisas.
– Oi Christopher. – Lili cumprimento-o com um beijo na bochecha, no que Christopher sorriu.
– Oi Lili. – O menino finalmente falou. – A Mila disse que você é nova.
– Lili não pode brincar na casa da árvore. – Falou Mila. – Por que a gente não brinca de massinha?
– Porque isso é brincadeira para bebês! – Respondeu Charlie, cruzando os braços. – E eu já sou quase um homem!
Chris caiu na gargalhada depois dessa declaração e Mila revirou os olhos.
– A gente podia brincar de corrida de obstáculos. – Sugeriu Lili. – Eu adoro correr.
– Eu vou tropeçar. – Falou Mila, com os ombrinhos caídos. – Fiz meus óculos há pouco tempo.
– Vamos andar de bicicleta. – Arriscou Charlie. – Eu levo a Mila na garupa.
Em questão de minutos, haviam três bicicletas subindo a colina do bairro de Bibiana. Mila gritava alto enquanto Charlie aumentava a velocidade cada vez mais. Chris deu uma rabiada na curva e quase caiu, afoito demais para quem havia tirado as rodinhas recentemente. Lili seguia os amigos a uns três metros de distância. Ela não conseguia ir tão rápido e estava meio bamba, entretanto foi a única que não caiu nem uma vez sequer.
Em seguida, Lili trouxe de casa um pequeno quebra-cabeças e um jogo da memória, os quais Christopher e Mila destrincharam rapidamente, passando até mesmo na frente de Charlie, que era o mais velho. Charlie conseguiu fazer 22 polichinelos tendo como trilha sonora os deboches de Mila. Christopher e Lili competiam para ver quem fazia mais embaixadinhas, e assim eles foram se divertindo durante toda a tarde.
Então, quando já estava anoitecendo, desceu de um carro luxuoso a mulher mais bonita que o estado de João de Barro já viu. Nice usava um vestido justo e saltos enormes. Ela estava com 26 anos e mais parecia uma adolescente. Ninguém podia imaginar que ela já era mãe, que ia às reuniões do jardim de infância e que fazia cup cakes no fim de semana.
– Mamãe! – Lili saiu correndo ao encontro dela, com os bracinhos abertos e dando o seu melhor sorriso de dentes separados.
Nice ajoelhou-se para segurar sua pequena, sentiu seu cheiro de perfume infantil e jogou-a no ar. Enquanto o fazia, Lili gritava.
Nice respirou fundo, aliviada por finalmente poder ser ela mesma depois de mais um dia exaustivo. Fingir no set era muito desgastante e a melancolia que chegava sorrateira no caminho de volta era pior. Depois, sempre vinha o choro, involuntário, borrando sua maquiagem que a deixava tal como uma boneca inflável. Então, ela segurava sua bebezinha nos braços. Aquele momento era não só para recuperar a sua essência, como também para voltar a acreditar que era amada, afinal de contas. Ela tinha Lili, e isso lhe bastava. Nice não exigia coisas da vida, além de ter a sua filha, mas até isso o destino iria lhe tirar.
– Mamãe estava com saudades, meu amor! – Nice colocou a filha o chão novamente. – São seus amigos? – Ela disse, apontando para as três crianças que serviam de plateia.
Lili assentiu. – São o Chris, o Charlie e a Mila.
– Olá crianças! – Nice acenou, ao que os meninos retribuíram, completamente hipnotizados.
Lili puxou a mãe para perto dos amigos. – Olha como minha mamãe é bonita.
– É linda! – Disse Charlie, num tom cantante.
– Christopher! – Uma voz feminina chamou, parecendo preocupada.
Sara Lessa de Arantes foi ao encontro de seu único e precioso filho. Seu corpo magro desfilava e seus cabelos longos eram aparados pelo vento. Sara já estava com 45 anos e rugas nos cantos dos olhos, porém os anos à mais só lhe davam um porte mais elegante. A mulher era calma na maior parte do tempo e iria usar desse mesmo artifício para contornar aquela situação.
Foi um furdunço e se espalhou feito febre tifo a fofoca de que uma atriz pornô iria se mudar para o bairro de Bibiana e, ainda por cima, que tinha uma filha que estudaria na mesma escola particular reservada para a elite. Sara sabia que não podia descontar numa criança inocente a conduta duvidosa de sua mãe, e recriminava mentalmente cada pai leviano que impedia o filho de brincar com ela. Entretanto, não podia negar que ficava com um pé atrás com aquela mulher. Repetia para si mesma que a vida era dela e que cada um fazia o que quisesse, mas seu lado julgador ainda achava que conviver com esse tipo de pessoa faria mal para o Christopher
– Olá crianças! – Cumprimentou Sara, que depois virou-se na direção de Nice. – Boa tarde! Sou Sara de Arantes, mãe do Christopher.
– Sou Eunice de Valente, mãe da Elis Margô, mas pode me chamar de Nice.
– Sim, eu já sei quem é você. Ouvi muito falar. – Sara falou.
Nice entendeu o recado na hora e engoliu em seco. Ainda assim, tentou se explicar. – Eu ia convidar as crianças para comerem cup cakes lá em casa, no fim de semana.
A mulher mais velha deu um sorriso amarelo. – O Christopher não está podendo comer cup cakes, pois sua taxa de glicose está alta.
– Mas... – Christopher tentou argumentar, sem entender porque, de repente, não podia mais comer cup cakes.
Sara interrompeu o filho. – Espero que compreenda, querida, mas saiba que sua filha pode ir para a minha casa sempre que quiser! Temos muitos brinquedos legais. É que eu faço o tipo super protetora, sabe? Gosto de tê-lo perto de mim.
– Tudo bem! – Falou Nice, fingindo que era só aquilo mesmo. Ao menos, Sara foi a única até agora que não descontou na sua filha qualquer problema que ela pudesse causar. No fundo, podia dizer que estava grata à Sara. Nunca se perdoaria se sua filha não tivesse amigos por sua causa.
– Eu gosto de cup cakes, Tia. – Declarou Mila, com sua expressão sapeca.
– Eu também! – Charlie aproveitou a deixa.
Nice sorriu e decidiu ser mais cuidadosa dessa vez. – Vamos falar com a mãe de vocês antes.
– Mamãe, mamãe, tenho que te contar um segredo: - e a mãe se abaixou para ficar na altura dela. – os doces apareceram na porta mais uma vez. Aqueles doces misteriosos.
– Eunice de Valente arqueou uma sobrancelha. Desde que era criança, apareciam presentes misteriosamente em sua porta, de doces a brinquedos. Agora, os presentes também apareciam para a sua filha. Ela achou que, mudando de casa, aquilo fosse sumir, mas parecia uma perseguição. Ela deixava a filha ficar com os brinquedos, mas jamais a deixaria comer nada que fosse posto em sua porta por sei-lá-quem.
– E você sabe o que foi que eu fiz? – Elis Margô brincou, sabendo das advertências que sua mãe lhe dava e sabendo também quais eram as regras.
Nice a olhou preocupada, mal sabendo que nunca ia descobrir quem era que estava por detrás daquilo tudo.
– Elis Margô, o que foi que você fez?
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Maratona 2/3
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