CAPÍTULO 15
Penitenciária de Ustra, junho de 2019
Christopher estava deitado em sua nova cama em posição fetal. Depois do ocorrido do dia anterior, tiveram que colocá-lo numa sala isolada. Parecia uma solitária, só que com mais assepsia. Ele nunca tinha ido para a solitária, mas estava sentindo o peso daquele nome. Naquele fatídico dia, sua ficha caiu de vez: ele estava completamente sozinho.
Seus pais foram visitá-lo juntos nos primeiros meses, mas depois que Christopher ficou sabendo que sua mãe teve que passar por revistas vexatórias para vê-lo, pediu, pelo amor de Deus, que ela não fosse mais lá. Eles iriam se falar por carta ou por telefonema, e ele pediria notícias através do pai. Sara protestou, mas teve que ceder, tendo em vista que a situação estava ficando insustentável. Sendo assim, só Otávio, o pai, ia visitá-lo mensalmente. Isso gerou um certo alívio nas costas de Chris, até porque não aguentava mais ver a mãe naquele estado, tão magra que parecia que ia sumir.
E, para completar, ficou sabendo que a casa deles foi destruída há alguns meses e seus pais tiveram que sair quase fugidos. Ter a prova concreta do tamanho da dor que estava causando para as pessoas que amava era a parte mais difícil de lhe dar. Um pouco depois, foi Nice quem morreu, tendo sua casa destruída logo em seguida. Ele nem ao menos sabe se Lili tem todas essas informações, afinal, não havia restado ninguém para lhe visitar. Em meio ao seu desespero, nem conseguia imaginar o quanto a situação estava muito mais difícil para ela. Mas, talvez, a morte de Nice tenha sido um acontecimento abençoado. Ao menos, ela não teria que entregar a filha para as garras da morte, como Sara e Otávio teriam que fazer. Ainda faltavam seis meses para a execução e sua mãe já estava se dopando de remédios controlados.
O fato da execução ter sido marcada para o mês de dezembro acrescentou uma dor compreensível em Christopher: se o deixassem vivo por mais 15 dias, ele completaria 20 anos – o que ainda era muito cedo. E Lili faria a mesma idade algumas horas depois. Ele nem lembra como era o tempo antes deles dois sempre comemorarem os aniversários juntos. Era preciso muita coragem para se morrer aos 20 anos, como disse Evaristo Galoá, um dos matemáticos favoritos de Chris.
O garoto tentou levantar, mas não conseguiu ficar completamente sentado, então ficou de lado até, finalmente, ficar de pé. Andar também não era fácil, por causa da fricção, mas ele precisava ir ao banheiro trocar o curativo. Já estava sangrando de novo.
- Ai!
- Se aquiete, Christopher! Quem manda você sair correndo no asfalto?
- Charlie disse que eu era bicha! – Chris se irritou.
- Charlie não paga as suas contas! – Disse Sara, limpando os três arranhões de filho e embebedando tudo de rifocina.
Christopher já estava com 10 anos. Quase 11. E, não importavam os esforços de Sara: seu filho estava entrando naquela fase dos garotos briguentos. Na necessidade de defender sua honra dos garotos que o achavam superprotegido, ele corria atrás e chutava ou mordia, parecia um cãozinho. Dessa vez ele até conseguiu empurrar Charlie, mas acabou caindo também. Essa situação já estava gerando atritos entre ela e Monalisa. Às vezes, estão tão cansada de bater na porta da outra, ou vice-versa, que desejava até que fosse só Nice levando Lili para brincar.
Mas aquela não seria a última vez que Charlie bateria nele.
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Rodrigo, agosto de 2019
- Então... Sobre o que vocês têm conversado? – Perguntou a delegada. Ela andava lado a lado com Rodrigo, com as mãos para trás, na famosa posição alfa que aquelas mulheres ali tanto gostavam. Até Lili costumava usar aquela posição quando o assunto ficava espinhoso.
- Basicamente, estou interessado na cena do crime e na relação que ela tinha com a vítima. – Rodrigo respondeu. Eles estavam indo em direção à Toca. Hoje, a mulher resolveu acompanhá-lo.
- Você também acha que ela matou a garota? – Barbara estava sondando-o, como era o seu trabalho. Mas, ela procurava ser sempre muito cortês com ele, para evitar problemas desnecessários.
- Sim, acho que sim. – Ele respondeu, simplesmente. Não achava seguro revelar mais nada, especialmente, suas suspeitas quanto à insanidade da garota. – A Lili não nega esse fato desde o primeiro dia.
- Lili?! – Bárbara ergueu uma sobrancelha.
- Ela disse que era assim que todos a chamavam. – Respondeu Rodrigo.
Bárbara parou, abaixou a cabeça e depois a ergueu de novo, olhando para Rodrigo. – Olhe, sei que você está acostumado a lidar com esse tipo de situação. Não é a primeira nem a última vez que você vai entrevistar um criminoso, mas tome cuidado: a capacidade de manipulação dos psicopatas é muito grande. Pela forma que você fala, sinto que já se apegou demais, especialmente, depois da notícia que me deu hoje. – Ela respirou fundo. – Sabe, não devia estar fazendo isso por ela.
Rodrigo sabia que a novidade que vinha trazendo não seria vista com bons olhos. – Não é que eu esteja fazendo por ela. É apenas algo que achei justo, considerando as circunstâncias. Ela não pôde sair nem mesmo na morte da mãe. – Justificou-se.
A delegada fez uma leve negação com a cabeça, como se nada fosse capaz de fazê-la mudar de ideia. – As regras continuam as mesmas. – Ela anunciou, após deixá-lo na porta da Toca, e depois saiu sem se despedir.
Rodrigo respirou fundo e adentrou no subterrâneo úmido. Hoje, ele estava um pouco mais despojado. O cabelo estava até molhado, indicando que ele saiu de casa com pressa. Ao menos o cheiro do seu Paco Rabane ainda estava lá. Ao passar por Tuana, ele a cumprimentou e ouviu as mesmas piadinhas de sempre, levando tudo na esportiva.
- Deixei um batom para você na revista. Em breve devem entregar. – Ele falou.
Tuana deu um grito. – Está ouvindo, Lili? Eu ganhei um batom! Ele gosta mais de mim que de você!
Rodrigo riu, mas parou quando viu que Lili nada respondeu.
- Viiish! – Exclamou Tuana, erguendo suas mãos para o alto em sinal de rendição e voltando para a sua cama.
Rodrigo caminhou na direção da cela seguinte. Lili estava trançando o cabelo. A cara não era de chateada, como ele e Tuana pensaram. Ela só não estava se importando. Ainda assim, ele resolveu garantir que não haveria problemas entre as duas.
- Lili, tenho um presente para você também, e acho que vai adorar.
- Obrigada. – Ela disse, apenas.
Ele aproximou a cadeira da cela dela e sentou-se, fazendo o mesmo movimento de sempre: cruzando as pernas e abrindo a pasta. – Você vai poder passar um fim de semana fora.
Lili ergueu os olhos para ele num súbito e aproximou-se das grades da cela. – O quê?
Rodrigo sorriu. - Você vai para a praia. A Juíza Ana Graça autorizou que você pudesse sair pela última vez. Vai ser de uma sexta de manhã até um domingo à tarde, só não sei em qual mês.
Lili estava atordoada e extremamente confusa. – Como assim? Como isso aconteceu?
- Gente branca só vive de sombra e água fresca! – Reclamou Tuana.
- Não tira a minha concentração, garota! – Disse Lili, tirando as palavras da boca de Rodrigo.
Rodrigo juntou as duas mãos na frente do corpo. – Muito bem. Essa saída foi autorizada pela Juíza do seu caso, que é a mesma que autoriza tudo sobre você, inclusive a minha estadia. A pressão popular diminuiu um pouco, mas significativamente, desde a morte da sua mãe. Somado a isso, temos a questão de que você e Christopher serão os primeiros condenados à morte em décadas. No geral, foram bons argumentos para dar a vocês uma colher de chá. Claro que vocês vão ter uma série de restrições ao chegar lá, mas ainda assim...
- Vocês? – Lili arqueou uma sobrancelha.
- Ele vai também. – Disse Rodrigo. – Você está feliz com isso?
- E... Eu não sei. – Lili engoliu em seco. Ela estava feliz em poder sair e ver Christopher pela última vez, mas tinha vários receios: de que ele a odiasse, de não suportar ver o mundo sem sua mãe, de ser atacada... E, no fundo, no fundo, achava que não merecia aquilo. Tinha certeza, aliás. Dessa vez, ela olhou profundamente para os olhos dele. – Não sei como agradecer por um presente desses.
- Agradeça respondendo as minhas perguntas. Faz uma semana que não durmo por sua causa.
E os dois riram. Rodrigo nunca viu Lili rindo antes, não em sua presença. Naquele momento, ela nem pareceu louca, só... Uma menina de 19 anos. Parecia mais que estava se divertindo com um grupo de amigos.
- Nós vamos voltar para aquele assunto, não é? – Ela se encostou na grade.
Rodrigo recuperou sua postura formal, segurou caneta e papel, além do gravador, e começou o interrogatório. – Eu preciso ser direto para que tudo fique claro em minha mente, ok?
Ela fez que sim.
- Me diga, exatamente, há quanto tempo estava sendo molestada.
Ela respirou fundo. – Desde os 12.
- Isso ocorria com frequência?
- Podia passar até meses sem que acontecesse nada.
Ele fez uma anotação despretensiosa em seu caderno. – E ninguém sabia? Nem sua, mãe, nem Christopher, nem Camila?
Ela fez que não com a cabeça.
- Não existe a possibilidade de nenhum deles desconfiar de nada? Especialmente Camila?
- Olha, eu preciso, realmente, saber o porquê dessa insistência. – Ela transferiu o peso de uma perna para outra.
Rodrigo largou a caneta e tentou explicá-la a sua louca linha de raciocínio. – Veja, a defesa que você e o Christopher fazem pode ser resumida em um só ponto. Vocês foram vítimas de um complô: você matou Camila sem intenção e ele não a estuprou. Um outro homem fez isso e colocou a culpa nele. Você concorda com o que eu estou dizendo até agora?
Ela fez que sim com a cabeça, lentamente e de maneira desconfiada.
Ele continuou, sabendo que aquilo podia levá-lo para um lugar perigoso. – O que eu entendo é o seguinte: você pode, realmente, estar arrependida do que fez, mas Christopher não pode ser inocente, não quando vocês não têm nenhuma prova disso. Muito pelo contrário, tudo aponta para ele. Para que ele seja inocente, alguém tem que ter armado uma emboscada para ele. Uma emboscada muito bem feita e arquitetada que já devia ter sido pensada com antecedência. Quem armou essa emboscada foi o "suposto estuprador verdadeiro". – Ele fez aspas com as mãos. – E, para que ele fizesse isso, ele tinha que ter um motivo. Ele podia ter colocado a culpa em qualquer outro, mas colocou em Christopher. Ele tinha que odiar esse garoto e/ou a família dele. Não há nenhuma outra explicação. A questão é: o que ele podia ter contra Christopher se eles nem ao menos se conheciam? Como você mesma disse, seu amigo nunca soube dos abusos. Então, o que tem a dizer?
Ela aumentou o tom de voz. – Tenho a dizer que não sei. Realmente não sei. Se soubesse, Christopher não estaria onde está. O que sei é o que vi com os meus próprios olhos: quando cheguei na choupana, Mila estava sendo abusada pelo Renan da Dionisíaca, o mesmo que abusava de mim. Christopher não estava lá e nem poderia. Não sei porque ele foi escolhido para levar a culpa. Não sei. – Ela, finalmente, respirou depois de despejar tudo.
Rodrigo baixou a cabeça num sinal de derrota. – Sabe que não há nada que ninguém possa fazer com essa sua versão sem justificativa, sem pé nem cabeça, não sabe?
Ela deu de ombros, como se não se importasse, mas ela se importava.
- Deixemos essa parte em stand by. Agora, eu quero falar de Camila para ver se entendo algo. – Ele não estava desistindo, só estava seguindo o seu roteiro. – Ela também não sabia que você sofria abusos, então, nunca podia ter visto aquele homem na vida, porém ele resolveu abusar justo dela. Ele poderia tê-la encontrado no meio do mato e a atacado? Perfeitamente que sim. Isso acontece todos os dias. Mas, ela era sua melhor amiga, então não pode ter sido algo aleatório. Por que você acha que ele escolheu justo ela, justo naquela choupana?
- Quer saber mesmo o que eu acho? – Ela virou o rosto na direção dele com violência. – Acho que ele estava fazendo aquilo para me atingir. Ele a atacou porque sabia que ela era importante para mim. Eu pensei que ele me abusasse para atingir a minha mãe, sabe? Ele a odiava, assim como odiava todas as garotas da Dionisíaca. Ele as torturava, obrigava minha mãe a chupar o pau dele! – Ela teve que parar de falar, não estava aguentando mais.
Ele estava ficando com dó dela, mas não podia parar, não ali. – Então, essa é a sua linha de raciocínio: ele queria atingir a sua mãe e, posteriormente, atingir você. Correto?
Ela só balançou a cabeça.
- Essa justificativa é um pouco melhor que a anterior. Agora, quero falar da sua mãe.
Lili o olhou com raiva.
- Não me olhe assim, Lili. Não vou desqualificá-la nem nada do tipo. Só preciso falar dela porque ela era um elemento chave nisso tudo.
Lili respirou fundo e Rodrigo entendeu aquilo como uma permissão para continuar.
- Ela era a única pessoa no mundo, além de você, que afirmou já ter visto e convivido com esse homem. Ela foi a única que te apoiou na ideia de que ele existia e, sendo verdade, poderia justificar uma parte do que estava acontecendo. Sendo que ela é a sua mãe, o que não é um bom álibi. A versão dela da história não é confiável, porque ela sempre vai querer te defender, como todas as mães fazem. Estou certo?
- Tanto faz. – Ela limpou a testa cheia de suor com a manga de sua blusa. Ao ver a blusa manchada, ficou com agonia.
- Vou considerar que isso é um sim. Sendo que a existência do Renan não foi comprovada: não haviam provas na cena do crime, não haviam registros dele na Dionisíaca e ninguém que trabalhava lá confirmou a sua existência. – Ele engoliu em seco. - O que quer dizer que esse homem nunca existiu.
Nesse momento, Lili olhou vidrada para ele, com os olhos vermelhos e a respiração pesada. Depois, ela deu um riso nervoso.
Tuana, que até então estava calada, gritou de sua cela: - Cara, é melhor você parar.
Mas, ele ignorou, pois, finalmente, havia chegado onde queria. – Mas, eu não acho que você é psicopata.
Definitivamente, ela já não estava entendendo mais nada, e seu olhar entregava isso.
- Uma psicopata não pode sentir as coisas tão profundamente quanto você sente. Acho que houve muita incompetência e muito viés ideológico no seu diagnóstico e na sua sentença. – Era antiético o que ele dizia. Ele poderia até se encrencar por externalizar aquele tipo de conclusão.
- O que quer dizer com isso? – Ela sentou-se na cama, exausta.
Ele tinha, em sua fisionomia, toda a postura de quem tem o controle da situação. Agora sim ele era, de fato, o Rodrigo Macena de quem os jornais tanto falavam. – As pessoas pensam que você inventou a existência desse homem para safar Christopher e, de certa forma, amenizar a sua situação. Mas, eu acho que tudo o que você fez foi alucinar com a existência dele para não ter que lidar com uma realidade tão dura: a de que Camila estava abusada e morta. – Ele deu uma pausa. – Acho que tem esquizofrenia, que seu TOC é uma consequência e que sua mãe encobriu os seus erros.
Lili sentia como se tivesse levado um tiro no peito. Ela não estava louca, sabia disso. Aquele homem era real, acabou com a sua vida e com a vida de todos os que estavam a sua volta, e Rodrigo agora vinha dizer que ele não passava de um devaneio, como se toda a sua existência fosse uma mentira.
- Eu sei que isso é duro de ouvir, mas... – Ele tentou suavizar.
- Cale a boca! – Ela se controlou para não gritar, ou Zuza acabaria vindo.
E, num movimento ousado e perigoso, Rodrigo segurou as grades da cela. Se alguém visse isso, ele seria expulso dali e nunca mais poderia voltar. Até Lili ficou abismada com aquela atitude. – Preste atenção, Elis! Se você for mesmo esquizofrênica, se provar que não é psicopata, sua pena pode ser revogada! Entende?! Ao invés de morrer ia...
- Ia para a perpétua, num sanatório imoral e desumano, passar o resto da vida mofando... E, ainda assim, seria uma assassina. – O olhar dela era de indignação. – Como pode achar que isso seria melhor que morrer? – Ela deu uma pausa. Ele nada disse, então, ela continuou, encarando-o. – Se acha que sou esquizofrênica, então, o que o Chris é?
Ele olhou para ela com pesar. Estava sendo duro, mas era isso ou nada. – Acho que Christopher é um estuprador, somente.
- Então é isso? Se o Renan foi só uma alucinação, o único estuprador possível é Christopher, o que quer dizer que, para escapar da morte, tenho que atirá-lo na fogueira?
- Basicamente sim, Lili, mas isso é você quem decide.
- Não pode simplesmente vir aqui e me pedir para fazer isso, especialmente quando sei que estaria cometendo uma tremenda injustiça, assim como vocês estão fazendo agora.
- Sabe – ele tentou – ele não demonstra arrependimento. Só tem medo de morrer.
- Como ele poderia demonstrar arrependimento se não fez nada? – Ela rebateu.
- Lili! – Dessa vez foi Tuana quem gritou. – Lembra quando conversamos sobre entrar na cadeia por causa de um homem? Lembra das coisas que você me disse? Acha mesmo que vale a pena acompanhar um na morte?
- Eu estou aqui por causa de um homem, sim, mas não é quem vocês estão pensando.
Então, surge no corredor uma barulho de botas conhecidas e de chaves balançando. Rodrigo afastou a sua cadeira e sentou rapidamente, fazendo cara de paisagem. Tuana deitou-se em sua cama e se cobriu, para não ter que dar satisfações. Já Lili, não pôde fazer nada com o seu rosto inchado.
- Está na hora de ir. – Falou Zuza, e Rodrigo obedeceu sem pestanejar. Em sua cabeça, só pairava uma pergunta:
Elis Margô, o que foi que você fez?
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