CAPÍTULO 12
Sim, eu sumi por três semanas. Normalmente, as autoras do wattpad somem porque estão em semana de prova. Mas, e quando a autora é a professora, como faz? Adultos não podem matar aula e essa foi uma descoberta muito dolorosa que fiz. Um dia desses eu era adolescente e agora estou corrigindo 350 redações por mês. Sim, foi isso mesmo que você leu. Sem contar com o tanto de aulas para preparar e para dar, posts para fazer, administração e finanças - pois, como se não bastasse, sou autônoma. E sou escritora independente também porque gosto de sofrer. Agora, me dê ao menos uma estrelinha - e vá lendo meus outros livros enquanto não atualizo esse. Eu tive até que ler uma sentença de condenação de verdade para escrever isso.
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Penitenciária da Toca do lobo, abril de 2019
- Sabe, se eu pudesse, te faria um bolo com uma vela daquelas de sétimo dia. Daquelas bem grossas. Seria para comemorar o grande aniversário de um ano de "Elis Margô na Toca do lobo". Ou então, o título podia ser "A incrível competência e agilidade do sistema jurídico e prisional de João de Barro". – Tuana estava gritando da sua cela, só para provocar a outra.
- Nossa! Como você está falando bonito! Aprendeu isso onde? Numa placa de caminhão? – Lili revirou os olhos e depois riu. Ela nunca ria naquele lugar, não até Tuana chegar. – Mas, vamos combinar que a sua situação está mais grave que a minha. – Ela falou, deitando-se.
- Nem me fale. – Tuana deu um riso cansado e sentou-se em sua cama suja.
A penitenciária era dividida em sessões: o subterrâneo para as perigosas, o primeiro andar para as criminosas de pequeno porte, o segundo para as grávidas e lactantes. Na parte de trás, ficavam duas alas, cada uma com um facção, para evitar um confronto armado. No térreo, ficava a parte administrativa. Legalmente falando, não se podia misturar essas classificações de presas num mesmo lugar, ou seja, Tuana não poderia estar ali. Ocorre que as carcereiras argumentaram que não havia vaga no primeiro andar, o mais lotado de todos, e tiveram que deixá-la ali. Só que o Ministério da Justiça não compreendia as coisas dessa maneira. Deixar uma ré primária de um crime de pequeno porte se misturar com pessoas de alta periculosidade era a fórmula perfeita para se gerar um monstro. E era isso que estava acontecendo.
Tuana tinha 25 anos quando foi pega pela polícia. Até os 20, ela era apenas uma vendedora de uma boutique feminina, até que começou a se envolver no crime junto ao seu namorado, que já era traficante e matador de aluguel. Ela sempre fez vista grossa para as traições dele, até ele ter um caso com a sua vizinha. Foi aí que ela explodiu e decidiu se vingar. Porém, o tiro saiu pela culatra e ela é quem acabou sendo vítima de violência. Ele bateu em seu corpo pequeno, magro e raquítico, que não aguentou muito até cair no chão. Quando acordou de seu transe, viu que seu lindo e adorado cabelo estava sendo raspado. Ele era preto, liso e enorme. Agora que já estava na cadeia há três meses, tudo o que tinha era uma cabeleira preta estilo Joãozinho.
Até que ela foi pega no meio de uma operação policial, depois transferida para a Toca do lobo sem nem previsão de quando ia ser julgada. Daqui para que isso acontecesse, já teria cumprido pena o suficiente por três apreensões. Agora, como ela não estava com as outras presas do mesmo nível, acabava passando o banho de sol e a folga no pátio com detentas de todo tipo. Às vezes era com as do primeiro andar, às vezes era com as da facção que comandava a área em que ela morava. Haviam assassinas, latrocidas e traficantes e, ao conhecer as criminosas de verdade, Tuana começou a se transformar em algo muito mais perigoso que uma mula.
Ela arranjava remédios para dormir para Lili em troca de cobertura, e Lili comprava os remédios com esmaltes e cremes. O irônico disso tudo é que, em três meses, elas haviam se tornado amigas e uma nunca tinha visto a outra. Elas não conseguiam se ver na cela e não tomavam banho de sol juntas. Tuana odiava a biblioteca e Lili se dava melhor com as presas da Ala A, então, seus horários nunca se encontravam. O que elas podiam fazer era ficar se descrevendo uma para a outra, quase como uma narração cinematográfica para pessoas com deficiência visual.
- Meus olhos são castanhos, mas às vezes eles ficam cinza. – Falava Tuana.
- Estou fazendo uma expressão cética, agora. – Dizia Lili.
- É sério!
- Para os seus olhos ficarem cinza, você só precisa usar lente! Não é como se você fizesse mágica ou fosse especial. – Lili tomou um gole d'água, vagarosamente.
- E seus olhos são de que cor, Bela adormecida?
- Azuis como são as ondas do mar! – Lili disse, em tom cantante, quase como se fosse um poeta romancista fazendo uma descrição.
- E quem garante que você não está só usando lentes? – Tuana se ajeitou na cama.
- Minha mãe não era daqui não, garota. – Lili bebeu água novamente. Antes de Tuana chegar, ela passava até dias sem pronunciar uma única palavra. Agora, falar "tanto" estava até a deixando rouca.
- Ai, ai! Eu não conhecia a autoestima de gente branca antes, sabia? Estou impressionada.
- Melhor sorrir do que chorar.
De repente, elas ouvem o barulho de passos de uma bota bem pesada e conhecida. Zuza ia passando o seu cassetete nas grades das celas como se estivesse cantando uma sintonia. Seu outro braço ia atrás das costas, numa posição alfa, como quem dissesse "Podem me chutar! Eu dou conta". Então, ela chegou em Lili, que já não estava mais falando com Tuana, ergueu bem a cabeça e a encarou.
- Sabe, bela adormecida, eu preferia você antes da Maguila chegar. - E apontou o cassetete para a cela de Tuana, que estava controlando a raiva. – Você fica melhor calada.
Lili nada disse e nada fez.
- Mãos na grade! Seus advogados estão na sala de visitas.
Lili engoliu em seco. O dia havia chegado, decerto. Aquele era um sentimento muito conflitante: ela queria que tudo acabasse logo... Mas dói quando acontece.
Zuza a prendeu na grade e depois entrou na cela. Ela acorrentou os pés de Lili, colocou a tornozeleira de choque e algemou as mãos dela com luvas por debaixo, como as de um boxeador, de forma que ela não conseguisse mexer os dedos. Depois, a algema das grades foi retirada e Zuza ordenou que Lili andasse em silêncio.
- Você! Vire-se para a parede! – Ela apontou o cassetete para Tuana. Mais uma vez, Lili não conseguiu ver o seu rosto. Tudo o que ela conseguiu perceber é que o cabelo de sua companheira já havia crescido a ponto de cobrir uma parte de sua tatuagem no pescoço.
Lili foi conduzida até a entrada do subterrâneo, feliz por receber um pouco de ar fresco. Depois, Zuza a levou pelo corredor do térreo em direção à sala de visitas vigiada. Quando a porta pesada foi aberta, Lili viu que não eram só os seus advogados: a delegada estava lá, vestindo a farda da polícia local. Além dela, havia um escrivão. Lili sabia disso porque ele estava em seu julgamento.
Zuza a colocou na cadeira com tanta delicadeza que Lili quase se compadeceu. Depois de fazer o protocolo de sempre, a carcereira acenou para a delegada e depois saiu. Lili não disse nada, nem para os advogados. Estava tão acostumada a não cumprimentar e ser cumprimentada que até esqueceu disso.
- Olá Elis! – Principiou a advogada. – Nós estamos aqui hoje com o escrivão e com a delegada porque temos um assunto sério para tratar. – Ela mexeu na pasta que estava carregando e tirou alguns documentos, colocando-os sobre a mesa.
Bárbara estava com os documentos pessoais de Elis na mão. – Trouxe aqui para conferir os seus dados. – Ela disse. – Esse papel aqui... – Ela mostrou um documento para Elis. – Foi enviado pela Juíza Ana Graça Vidal, que está cuidando do seu caso.
Enquanto isso, e escrivão anotava tudo com uma velocidade que estava deixando Lili perturbada.
- Ela fez um para o Christopher também. Nós o entregamos antes de vir aqui falar com você. – Falou o advogado de Christopher, que estava logo atrás. – Seu psiquiatra está a postos, caso a sua reação também não seja boa como a dele.
Lili levantou um pouco a cabeça. A menção a Christopher deixou seus olhos arregalados.
A delegada tomou a palavra. – A data da execução química foi marcada. Será no mês de dezembro. Você e ele serão executados no mesmo lugar. Christopher será às 15:30 e você às 16:30. Um padre e um pastor de Bibiana se ofereceram para realizar uma oração prévia. Eles encontrarão vocês em suas celas individuais, se assim vocês quiserem.
Todos ficaram em silêncio, esperando por uma explosão ou coisa do tipo. Mas nada houve. Nenhuma piscada tremida, nenhum joelho em descompasso. Nenhuma lágrima. Elis apenas olhou para todos com sua íris azul e penetrante e assentiu com a cabeça. De leve. Os advogados estavam cabisbaixos. Até o escrivão tremeu. Mas nem Elis Margô, nem a delegada Bárbara Velásquez, demonstraram sentimento.
- Por que vai demorar tanto? – Foi isso que Elis Margô falou, pela primeira vez, desde que entrou ali.
- Ora, e você queria que fosse amanhã? – A delegada soltou, e o escrivão olhou para ela em forma de advertência. Ela tinha que se controlar na frente dos advogados.
A advogada tomou a vez. – Essa é a primeira pena de morte desde a segunda guerra, Elis. Há muita burocracia envolvida, muito trabalho para manter a mídia longe e muitas vidas em risco.
Ela teve vontade de rir com a última parte. Sério isso?!
- Bom, - Continuou Bárbara. – aqui está o termo assinado da sua confissão. Tanto a que você fez na delegacia, quanto a que você declarou em juízo. Levando tudo isso em consideração, acreditamos que não teremos problemas que você assine a que está sendo feita agora. Eu lerei o termo, como manda o protocolo:
"1ª Vara criminal do Juízo da república, comarca de João de Barro. Processo número 423.5678832.0009 (921). Natureza: artigo 29, parágrafo 7, do código penal da federação. Autor: Ministério da Justiça. Acusado: Elis Margô de Valente.
Data de sentença de execução. Vistos, etc. Relatório e confissão já realizadas e juntadas aos autos.
Considerando que o Júri, por maioria dos votos (unanimidade/ 5), ao responder o primeiro quesito, declarou a acusada como culpada;
Considerando que o Egrégio conselho de sentença, ao responder o segundo quesito, reconheceu que, na data de 10 de março de 2018, por volta das 18:00 da tarde, numa choupana existente no bairro de Bibiana, bairro da cidade de Faraó, capital do estado de João de Barro, a vítima Camila Leiria de Borba foi violada e molestada, e recebeu golpes de um bastão de madeira, causando-lhes as lesões descritas no laudo cadavérico..."
Bárbara continuou lendo o documento. Considerando que o Júri não absorveu os réus, mesmo sob a alegação de transtorno psiquiátrico feito pelos legistas, considerando que a ré se declarou culpada, considerando que a ré agiu por motivo fútil, considerando que a ré abandonou o local sem prestar socorro à vítima...
Era doloroso para Lili ouvir tudo aquilo de novo, mas havia uma coisa que quase a estava fazendo sucumbir, que era o ultra sensacionalismo que já viu sua mãe sofrendo tantas vezes. Ela não deu "golpes de bastão". Ela atingiu Camila uma única vez, já que nunca teve a intenção de fazer aquilo. E ela abandonou o local porque estava surtada, como constam nos autos. Mas, de que adiantaria falar nada agora?
"Isto posto, e considerando a vontade soberana do Tribunal Popular do Júri, declaro, por sentença, a procedência total da pretensão punitiva federal, para o fim e condenar a ré, Elis Margô de Valente, devidamente qualificada nos autos, com incurso da pena do artigo 29, parágrafo 7, do código penal federal.
A pena em abstrato para o delito tipificado no artigo 29 é prisão perpétua ou execução química.
Analisando as circunstâncias judiciais, condeno a ré a ser executada no dia 16 de dezembro de 2019, ás 16:30, na câmara presente no complexo prisional municipal, com transferência do complexo penitenciário da Toca do lobo a ser realizada com até 24 (vinte e quatro) horas de antecedência.
Dou esta por lida e publicada no plenário do Júri e na detenção provisória em que se encontra a ré, e delas intimadas as partes. Registre-se.
Ana Graça Vidal. Juíza de Direito."
- Você terá direito a escolher a sua última refeição quando for transferida para a câmara, no dia 15 de novembro. – Ela se inclinou sobre a mesa em direção à outra. – Alguma dúvida, Elis?
- Por que eu estou na Toca do Lobo se a execução não será feita aqui? – E por que tem uma presa de baixa periculosidade comigo? O que diabos acontece nesse lugar que tudo parece errado e sem respostas? Ela queria perguntar tudo aquilo, mas teve que se conter.
- Nós também já fizemos essa pergunta Elis. – Respondeu a advogada. – Mas, parece que é mera questão burocrática. A juíza Ana Graça foi orientada a trazê-la para cá.
- "Parece"? – Lili ergueu uma sobrancelha.
- Nós não podemos dar pitaco no que acontece nos autos, Elis! – A delegada proferiu, com firmeza, deixando claro que o assunto estava encerrado. Então, ela levantou-se e cumprimentou os advogados e o escrivão. – Vou deixá-la conversando com vocês, se assim quiserem.
Os advogados agradeceram e os escrivão mandou que Lili assinasse e organizou as suas coisas para sair também.
Ao fechar a porta da sala atrás de si, a delegada sentiu uma náusea instantânea. Ela não comeu nada fora do normal e nem poderia estar grávida. Por algum motivo, ver aquela mulher, aquela menina de 19 anos, ouvindo a pena de morte que saía da sua boca, por algum motivo... Aquilo a fez lembrar de Dalila, sua filha. Bárbara não sabe porque estava sentindo aquilo. Ela já esteve em muitas situações desafiadoras, mas nunca foi responsável por um condenado à morte. A única imagem que lhe passou pela cabeça era a de que ela podia ser sua filha, ou a filha de qualquer outro. Se fosse há alguns anos, Bárbara nem ia notar aquela menina passando no meio da rua. No final, foi bom que Nice tivesse morrido. Ela, Bárbara, não poderia, simplesmente, mencionar o tamanho da dor que aquela mãe ia sentir.
Elis Margô, o que foi que você fez?
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