CAPÍTULO 10

Bairro de Bibiana, novembro de 2018



Charlie Leira de Borba já tinha quase 21 anos quando teve certeza de que a morte o assombraria para sempre. Primeiro foi sua irmã, que já não estava entre eles há oito meses. Naquele momento, Charlie estava sentado ao lado do jazigo da família, naquele pequeno cemitério da cidade de Faraó. A foto de sua jovem irmã adornava um quadro que ele tinha mandado fazer recentemente. Em letras grafais na lápide de mármore havia: Eternas saudades da nossa princesa: papai, mamãe e Charlie.

A mãe não sabia que ele estava ali, e nem poderia. Ela foi a segunda a morrer, depois da filha, ou ao menos era isso que Charlie considerava, já que ela havia virado um zumbi que passava o dia a base de remédios, leite e chá. Seu pai era outro morto-vivo, que decidiu fazer voto de silêncio desde que sua filha se foi. Eduardo de Borba, no auge dos seus 54 anos, já agia como se estivesse prestes a ir. Logo ele, que era um pai tão bondoso e amoroso, com seu jeito de galã e sua farda imponente. Ele era marinheiro, capitão do navio, na verdade. Porém, ele pediu uma licença há seis meses, que acabou se transformando numa aposentadoria precoce. Síndrome do pânico, foi o motivo.

Então, Charlie estava só. Não que ele reclamasse de nada, já que achava muito feio um rapaz de 20 anos que reclamava com os pais por falta de atenção, ainda mais depois de ter uma irmã assassinada. E, como ocorre com todas as vítimas das tragédias, ele teve que amadurecer mais cedo. Se ele não fizesse as compras, todos morriam de fome, se não cuidasse em imprimir e pagar os boletos, a luz seria cortada. Podia ser pior, ele sabia, afinal, não precisava sustentar a casa.

Charlie arrancava um fiapo de grama que estava mais crescido do que o normal. Nos últimos meses, o túmulo da sua irmã era sua única companhia. Ele não teve condições de continuar a faculdade e acabou trancando, o que quer dizer que, depois de cuidar da casa, o que lhe restava era pegar a sua moto e dirigir até o cemitério. Sendo que, ultimamente, não era só a lápide de Mila que estava chamando a sua atenção.

Já fazia um mês que outra grande tragédia havia tomando conta de Bibiana: o suicídio de Nice. De onde estava, Charlie podia ver a vala comum em que ela foi enterrada. Ele ficou sabendo que a mãe dela, aquela velha estranha que ficava esfregando as mãos feito uma louca, não quis nem se dar ao trabalho de enterrá-la decentemente. Charlie quase ficou com pena, se não estivesse muito ocupado em sentir raiva, afinal de contas, ela era uma culpada moral sobre a morte de Mila. Mas, no fundo, havia um pouco de empatia, porque o rapaz sabia o que ela estava sentindo.

Já sua mãe, não se compadeceu. Ela dizia que Nice nunca seria uma vítima, porque nunca ia sentir o que ela, Monalisa, sentia. Diziam que a atriz também havia perdido a sua filha, mas isso não era verdade: ela podia visitá-la e abraçá-la, ao passo que Monalisa estava privada disso para sempre. Quando a pena de morte fosse marcada, Eunice saberia o que era dor de verdade, sendo que, quem ia imaginar que ela acabaria morrendo antes de Lili, aquela vadia maluca.

Charlie lembra-se quando tinha os seus 14 anos e descobriu a existência da Dionisíaca. Por mais que a sua família tentasse poupá-lo daquilo, seus amigos não deixavam. A maioria deles começou a acessar pornografia antes dos 12 anos e, como Charlie não queria ficar por baixo, decidiu ir junto. Os garotos começaram a caçar vídeos antigos de Nice, já que era muito difícil conseguir comprar e esconder uma revista sem ser pego. Então, enquanto suas ricas famílias achavam que seus filhos estavam fazendo exercícios de matemática na sua escola cara, eles baixavam material gratuito pelos celulares.

Ocorre que, com pouco tempo, os garotos também se acharam no direito de fazer bullying com Lili. Ela inda era muito jovem, no máximo 13 anos, quando descobriu a duras penas o que sua mãe fazia da vida. Houve um pouco de vergonha, a princípio, mas ela não tinha tempo para isso, não quando precisava agir. Vou entrar na sua casa e comer a sua mãe também, foi o que lhe despertou o gatilho. Daquele dia em diante, ela se tornou violenta. Depois que aquele colega de sala apanhou, foram poucos os que tiveram coragem de fazer a mínima menção a Nice. Ninguém chamava a mãe de Elis Margô de puta, não na frente dela. Foi naquela época também que ela se afastou de Charlie. Ela não esperava que justo ele fosse lhe apunhalar pelas costas.

Que irônico.

- Quem é o Senhor?! – Charlie perguntou, num ímpeto. Ele não era de se meter na vida alheia, mas havia um homem visitando a cova de Nice, e isso lhe pareceu estranho e assustador.

O homem se retesou. Ele não esperava que fosse ser abordado por fazer uma coisa tão corriqueira. Mas, então, ele prestou bem atenção e percebeu que conhecia aquele garoto de algum lugar. Sim, claro! Ele era o irmão de Camila, estava visitando a cova dela. Lembrava-se dele brincando com Lili quando eram mais novos.

- Sou um conhecido. Estou apenas visitando a cova. – Ele respondeu. Não iria dar mais informações que aquilo. Não podia.

Charlie arqueou as sobrancelhas. Era óbvio que aquele homem grisalho não queria falar. Mas, por quê? Ninguém nunca ia visitar a cova de Nice, o que estava deixando o jovem bastante intrigado. Será que ele trabalhava com ela? Mas ele não parecia um ator pornô e nem alguém que gostasse disso. Na verdade, a aparência do estranho se assemelhava muito a um motorista de caminhão. Ele estava usando botas, boné, uma jeans surrada e tinha chaves penduradas no bolso. Debaixo do reflexo de seus óculos, não era possível visualizar bem os seus olhos castanhos. Será que era um fã? Sem chance: aquela era uma vala comum, além de que Charlie duvidava que os telespectadores se importassem com Nice o suficiente para visitar o seu túmulo.

- Me desculpe perguntar, mas essa é uma vala comum, o que quer dizer que o senhor sabe, exatamente, o que está procurando. Ninguém nunca ia para a casa dela, e ela é mãe de uma assassina, se o Senhor não sabia. – Charlie teve vontade de chorar ao pronunciar isso, porque o corpo de sua irmã estava ao lado.

O homem colocou as mãos nos bolsos. – Eu conheço essa história, filho. Não se preocupe: sou apenas um conhecido. Passo muito tempo bêbado também, então, não ligue para os meus devaneios. – Ele tentou rir para descontrair. Ele era ruim de piada e sabia disso, apesar de que sua intenção não era fazer uma piada naquele momento, apenas sair daquela situação. Aquele garoto era muito desconfiado e o homem ficava se perguntando se ele sempre foi assim ou ligou algum tipo de radar depois que a irmã morreu.

Charlie estava com medo daquele estranho. E o estranho estava com medo de Charlie. Sua pele muito branca denotava que ele era de João de Barro mesmo, mas aquela barba por fazer, aquele cabelo cinza e áspero, as roupas simplórias e velhas... Ele não tinha dinheiro, o que quer dizer que não tinha o que fazer em Bibiana, onde você pagava uma fortuna até para respirar. De onde Eunice poderia conhecer um homem daqueles?

Então, o velho ficou triste de repente, soprou um beijo carinhoso na cova a sua frente e foi embora.

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Monalisa

Monalisa estava sentada no banco da pracinha que seus filhos tanto brincaram na infância. Seu filho, corrigiu-se. Ao perguntar para a psiquiatra o que deveria responder quando as pessoas perguntassem quantos filhos ela tinha, a médica respondeu que falasse apenas por Charlie, e que Camila seria assunto para outro tipo de conversa, quando ela tivesse condições de falar disso sem chorar. A mulher estava enrolada numa manta, usando uma roupa de flanela por baixo, como se estivesse, constantemente, pronta para dormir. E era isso que acontecia quando se entupia de remédios: dormia cerca de 14 horas por dia.

Os cabelos dela estavam bagunçados e ressecados. Nem quando esteve de resguardo, com a barriga ponteada e dois bebês no colo – uma recém-nascida e um de um ano – esteve tão ruim assim. Ela planejava uma grande festa para quando completasse 50 anos, mas agora, só queria morrer o quanto antes, pois cada mês se tornava um martírio. O que a mantinha viva era Charlie, ou a ideia que tinha de que ele precisava dela. Ela era a mãe, afinal de contas. Se bem que duvidava que ele precisasse de uma mãe como ela. Ultimamente, o que mais saía da sua boca era: "Me deixe", "Vá para o seu quarto", "Preciso de uma soneca", "Agora não". Quantas vezes ela já acordou de madrugada ou de manhã cedo e seu filho nem ao menos estava em casa? E ela não fazia nada a respeito, não ligava, não o procurava.

Monalisa olhava para a casa da sua vizinha há alguns metros de distância, ou para o que sobrou dela. A casa de Nice e Lili havia sido destroçada depois que a mais velha cometeu suicídio. As pessoas tinham medo de depredar tudo antes, ainda mais porque achavam que ela era perigosa e podia estar envolvida com coisas erradas. Mas então, depois da morte da atriz - o povo daquele bairro de classe alta depredou mais de três milhões de reais em um único imóvel. Monalisa não fez parte do cambalacho, mas também não sentiu dó.

Do outro lado da rua, um pouco mais embaixo, havia outra casa depredada. Era a mansão dos Lessa de Arantes, de onde veio o estuprador da sua filha. Monalisa não sabe de quem ela sentia mais raiva: se de Lili pela traição, ou se de Christopher pela covardia. Já as pessoas, não pareciam dosar a sua raiva: destruíram a casa de Sara o Otávio na calada da noite, de forma que eles tiveram que sair fugidos em menos de 24 horas. Não que as coisas estivessem fáceis para eles também: Otávio, o pai de Chris, teve um surto psicótico e saiu correndo e gritando no meio da rua. Já Sara, perdeu um peso que ela nem tinha e seus cabelos estavam caindo. Ela conversava com as paredes e acordava à noite gritando em pânico.

Agora, Monalisa não sabia para onde eles haviam ido e nem queria saber. Já ia ter o desprazer de dar de frente com eles no dia da execução e, quando isso acontecesse, era ela quem ia sair de Bibiana. Aquela era outra advertência que a psiquiatra lhe dava: sua filha não vai voltar só porque seus algozes foram mortos. Mas a mãe sabia disso. Tudo o que ela queria era um pouco de conforto para que sua família sobrevivesse aos dias que lhe restavam. Quando aquilo tudo acabasse e seu pesadelo não tivesse mais nome e rosto, ela iria para uma casa bem longe. Mas, por enquanto, não podia sair dali.

Ocorre que o diário de Mila estava perdido. Ela contou para a polícia da existência desse diário, e a própria Lili, que sabia da existência, disse que ali poderia ter alguma pista. Inclusive, aquela era a única esperança de Christopher de provar a sua suposta inocência. Mas o diário nunca foi encontrado e a investigação já tinha provas o suficiente para seguir sem ele. Talvez nem houvesse nada lá, assim como não havia no computador, no celular, ou nas redes sociais de qualquer um deles.

Mas ela sentia que devia encontrar aquilo antes que tudo acabasse. Ela até abriu buracos nas paredes e no chão para achar algo, desmontou o closet, descosturou roupas em busca de pedaços de papel, olhou nas frestas das esquadrias... Depois, ela investigou no próprio quarto, no de Charlie, no quarto de hóspedes, da dispensa... Quando ela destruiu o jardim, cavando, seu filho teve um ataque de choro e ela se viu obrigada a parar. O diário não estava ali, nem foi encontrado por ninguém nas casas de Elis e de Christopher. Eduardo, seu marido, até teve a coragem de entrar na choupana em que sua filha morreu para procurar, mas não tinha nada. Tudo o que havia era o sangue seco de sua filha no chão.

Elis Margô, o que foi que você fez? 

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