⚔ Capítulo 3
— Este é Siril — disse Magdalena. — Essa é Cibel — ela apontou para a égua cinzenta e manchada com pintinhas pretas no pescoço. Ela era um pouco mais malhada do que o macho, a crina estava solta, mas penteada.
— Cibel é um pouco mais selvagem e não gosta muito de estranhos. Ela já está familiarizada com o cheiro de Magdalena, então é mais seguro que façam a viagem com Siril. — Explicou Mikhaill, esticando o braço para baixo.
Magdalena segurou-se à mão estendida do Assassino de Bear, apoiou o pé descalço na superfície lisa da bota de Mikhail para ganhar impulso e jogou o corpo para cima da montaria sem hesitar. O corpo miúdo se acomodou facilmente, Mikhail projetou os braços ao redor do corpo de Magdalena, segurando a alça da correia firme o bastante para que servisse de parede e ela não caísse do cavalo.
Já montados, os dois se viraram para nós, aguardando algum movimento. Demerius tomou à frente e, após se assegurar que o equino não o derrubaria da sela, esticou o braço para que eu montasse. E assim eu fiz.
Cavalgamos cada vez mais rápidos, rumo a trilha estreita que nos levaria direto à Floresta das Almas, bem longe da construção que seguia consumida pelas chamas. Meu cabelo esvoaçava conforme o ritmo do vento e Demetrius não precisou se esforçar para guiar Siril, pois o animal sabia para onde deveria ir. Cibel adentrou a floresta carregando Mikhail e Magdalena consigo, logo depois foi a nossa vez.
Meu coração batia acelerado a cada trote e um arrepio percorreu meu corpo enquanto a trilha desaparecia atrás de mim. Estava claro para mim que liberdade estava cada vez mais distante, tão difícil de obter quanto era tentar aprisionar água corrente em minhas mãos. Escoava sempre entre os dedos.
Demetrius era um bom cavaleiro, embora a Floresta das Almas não fornecesse a melhor das estradas para se cavalgar durante a madrugada. As longas horas se estendiam conforme cruzávamos os corredores de árvores, arbustos e galhos infinitos. Havíamos percorrido bem mais de trinta quilômetros àquela altura, bem quando pensei que Siril precisava de um descanso, Mikhail puxou as rédeas de Cibel, os trotes do equino diminuíram até parar por completo.
Um pouco atrás, acompanhando a líder gloriosa, nossa montaria também foi diminuindo a velocidade antes mesmo do príncipe ordenar que o fizesse.
— Seria bom ter um cavalo bem treinado assim no castelo — sussurrou, mais para si do que para outra pessoa —, que Princesa jamais me escute dizer isso, mas você é impressionante, Siril.
A voz de Demetrius era doce, ele sussurrava elogios enquanto acariciava o pelo da montaria. Um silêncio pesou sobre nós e voltei minha atenção para o homem que nos escoltava. Mikhail cochichou algo para minha irmã e aquilo me incomodou. Não confiava nenhum pouco no Assassino. Mesmo depois de ter nos salvado, mesmo ainda dependendo de sua assistência para salvar nossas vidas, mesmo que tivesse provado sua lealdade, não conseguia. E não tinha tanta certeza assim se deveria.
— Por que paramos aqui? — indaguei. Estávamos no meio da floresta, sem qualquer abrigo à vista onde pudéssemos nos esconder. — Imagino que os animais precisem de uma pausa, mas não acha que parar aqui é um tanto perigoso?
Mikhail abaixou o capuz preto que o engolia e desceu de sua égua, sussurrando palavras no pé da orelha empinada de Cibel. Ela relinchou em resposta e sacudiu o rabo de um lado para o outro, confirmando que entendera o pedido. Era de fato um animal muito inteligente. Em seguida, Mikhail se virou, deixando o olhar semicerrado vagar entre mim e o príncipe.
Engoli em seco, levemente irritada. Ele não parecia nenhum pouco inclinado a me responder.
"Eu ordenei."
Celine ouviu a voz em seus pensamentos. Ao olhar para baixo, a marca do besouro em suas mãos brilhavam em um tom escarlate.
— Midas?
"É claro, quem mais seria? Preciso que venha sozinha. Sua irmã estará em perigo se continuarem seguindo por esse caminho. Mikhail e o príncipe poderão escoltá-la até um local seguro. Ouça com atenção. Não deixe que seus sentidos sejam enganados ao retornar ao castelo, esse lugar não é mais o mesmo."
— Certo. — não pareceu haver alguma brecha para descordar, afinal Midas poderia até usar um tom brando para se comunicar conosco, mas sabíamos que em cada palavra que saía de seus lábios não jazia um mero pedido. Mirei, Mikhail, que já dera meia volta com o próprio cavalo. De frente para nós, seu olhar cúmplice fitou o chão. Estranho.
— Preciso que sigam Cibel por aquela rota ali, continuem cavalgando para o oeste até que o sol brilhe alto no céu outra vez. — ele apontou para o limite da floresta, onde um rio dividia as terras sem nome que levava a uma faixa de terra desconhecida. Demetrius arqueou a sobrancelha. — Eu e Celine seguiremos em frente sozinhos.
— Vamos juntos ao castelo?
Um arrepio percorreu minha espinha
"Não. Você precisa vir sozinha. Não confie em ninguém."
— O que quer dizer? — Mikhail fez um sinal com as mãos. O dedo indicador sobre a boca fechada. Em seguida, tocou a própria orelha duas vezes. Em seguida, ele continuou sua explicação como se nada o tivesse acontecido.
— A égua sabe quando é seguro partir ou ficar, mas se agita facilmente quando eu não estou perto. Se isso acontecer, precisarão continuar a viagem. Não mudem a rota a menos que ela mostre um novo caminho e, se for necessário, deixe que Magdalena siga em frente sozinha.
Minha irmã se agitou a menção de seu nome, mas ainda estava com medo demais para se pronunciar. Percebi ao notar os olhos caídos, ela não se atreveria a contestar qualquer ordem naquele estado.
Mas eu não nutria os mesmos sentimentos.
— Onde está Nikosoli?
Mikail fez o mesmo sinal com as mãos. Mexeu a boca. Nenhum som saiu.
— O quê?!
As folhas se agitaram e as sombras pareceram ainda mais escuras ao nosso redor, sibilando, crescendo. Mikhail engoliu em seco. Durou apenas um breve, intenso, porém breve instante. Eu senti algo quente me envolver e de repente, como se as nuvens beijassem minha pele, o calor se dissipou. A mão de Demetrius pousou em meu ombro.
— Celine. — A voz de Demetrius aqueceu meu corpo. — Ele disse que não é seguro. Provavelmente tudo o que vocês falam é monitorado. Midas tem uma influência muito grande nesse lugar graças ao poder emanado pela floresta. Ele está dizendo para tomar cuidado com o que fala.
Mikhail continuou em silêncio. Aguardando.
Não.
Não importava o preço que fosse. Ele disse que eu deveria ir sozinha. Precisava estar lá. Aonde quer que lá fosse.
— Eu sou grata pela preocupação. Com certeza Nikosoli lhe deu esta tarefa, mas não posso ser protegida o tempo todo, ainda mais as custas de outras vidas. — não dei nenhuma margem para que houvesse um debate seguido daquela afirmação. Mikhail abaixou a cabeça e depois, brandindo uma expressão pensativa e nada satisfeita, fitou Demetrius a contragosto. Sabia que reconhecer a presença do príncipe ali o importunava.
Mikhail se aproximou de nós e esticou o a mão.
— Dê-me sua mão Celine. — ele pediu. — Ao menos, uma coisa posso fazer para lhe ajudar.
Eu estiquei o braço e, antes que pudesse fazer qualquer coisa, senti a queimação sobre a pele. Sangue escorria sobre a marca do besouro. Em seguida, Mikhail cortou a própria mão, traçando uma linha funda bem no meio da marca.
— O que você fez? — Demetrius se sobressaltou, alcançando a bainha. Não seria inteligente travarmos uma briga entre nós, já éramos tão poucos.
— Apenas cumpro ordens, príncipe. Midas não conseguiu me passar muitas informações e não consigo me comunicar com Nikosoli, tudo o que ouvi através do canal de magia foi um pedido urgente para que a marca do besouro fosse destruída. — ele avisou. — Entenda, nenhum deles são homens de pedir favores levianamente. Midas explicitamente pediu que eu criasse um rompimento na marca e, assim, nem mesmo ele conseguirá rastreá-la. Só não consigo entender o porquê... tudo isso é muito suspeito.
— O que quer dizer?
— Como assassinos, uma de nossas principais tarefas é não ser detectado. Por isso, Midas normalmente nos presenteia com um objeto capaz de nos esconder de outras criaturas mágicas, como o colar em seu pescoço. No entanto, tais objetos não o excluem. Por esse motivo ele cria o pacto de sangue com quem firma seus acordos e nos marca com o besouro. O besouro é o único meio de Midas conseguir nos localizar, ele cria uma ponte e através da marca ele consegue nos ouvir, ver através de nós e falar em nossa mente. Se Midas está desesperado a ponto de mandá-la sozinha até o castelo sem a marca é porque há algo muito errado, Celine.
— Mas suponho que agora que não há nada conectando Celine a Midas ela não precisa obedecê-lo, não é? Ela pode simplesmente não ir.
— Precisamente. — Mikhail soltou o ar, pesaroso. — De qualquer forma, eu irei descobrir o que está acontecendo. — ele olhava expressivamente para mim agora, com certo medo, percebi. — Você pode levar Magdalena e o príncipe a um lugar seguro, se quiser.
Respirei fundo, digerindo aquelas palavras, sem saber como chegamos até ali, como Demetrius se atirara naquele mar de caos e pesadelos, ou melhor, fora arrastado por mim. Fique com o príncipe. A voz da Dama do Lago ecoou em minha mente, como um sopro distante. Talvez a minha salvação fosse a perdição dele.
Olhei em volta e suspirei.
— E que lugar seria esse?
Atrás de mim, Demetrius se remexeu. Não soube dizer se o príncipe se sentiu ofendido ou se o tom amargo de Mikhail o irritava tanto quanto a mim. Jamais perguntei porque ele se agitou daquele jeito ou o porquê de seus olhos brilharem tanto, não era importante. As palavras que se seguiram cativaram toda a minha atenção.
Baixo, como um sussurro amante e sedutor, Demetrius acariciou minha orelha e disse: A decisão é sua, Celine. Farei o que você mandar.
Girei o corpo para trás, pois necessitava confirmar que o príncipe estava mesmo ali. Seus olhos cinzas em formato de meia-lua me encaram de volta, brilhantes. Tracei uma linha nas bochechas rosadas com meus dedos delgados, que deslizavam na superfície macia de sua pele com facilidade.
Nossos rostos estavam perto e sua boca carnuda era tudo pelo qual eu ansiava. Inclinei meu corpo e ele acompanhou meu movimento, enlaçando minha cintura, apoiando a mão aberta em minhas costas. O toque de seus lábios nos meus, no começo, foi sutil e delicado. Um convite. O toque explorava meu corpo à medida que a língua quente invadia minha boca e tudo o que veio depois foi prazer absoluto.
Eu estava beijando o príncipe.
Outra vez.
Mas aquilo era diferente. Meus dedos dançavam na base de sua nuca e precisei de coragem para romper o beijo, separando nossas bocas com uma mordida de despedida em seu lábio inferior. Foi a pior coisa que eu poderia ter feito, beijá-lo de novo, pensei. Tanta coisa aconteceu nas últimas horas que havia me esquecido da sensação. Após provar sua boca, todos os segundos que não o estava beijando eram dolorosos, agora que conhecia seu toque ardente em minha pele, ansiava desesperadamente por mais, para sempre desejaria mais. Até que eu, enfim, morresse.
Demetrius encarava-me desejoso, aflito, confuso. Era como fitar alguém beirando a loucura, pronto para pular de um penhasco — caso isso lhe trouxesse sua tão esperada libertação. Eu era sua libertação. Ele pularia até mim, percebi, e aquilo tocou meu coração. Bastava uma palavra. Eu sorri e saltei do cavalo com o máximo de graciosidade que conseguia exibir naquele estado.
— Cuide de minha irmã — disse, e não tive coragem de encarar Demetrius após ouvir seu suspiro pesaroso. Eu estava decidida a não arriscar mais a vida de ninguém e ver seu rosto talvez afetasse minha postura confiante, não poderia arriscar.
O Assassino de Bear assobiou e uma coruja branca se empoleirou no enorme galho acima de nossas cabeças.
— Vamos seguir a pé, ou nossa presença será detectada antes mesmo de chegarmos à clareira — dizia o assassino, arrastando o pé sobre o gramado encoberto de sombras até parar ao meu lado. As sombras combinavam com ele, mas eu sabia que aquele poder de controlá-las era uma exclusividade de Nikosoli.
Mikhail desamarrou o nó do colarinho e removeu sua capa, revelando o familiar conjunto de calça e colete dos Assassinos de Bear. Ali estava o broche metálico com o desenho de besouro de perto, os detalhes brilhavam diante meus olhos, como se fossem pontinhos de prata e dourado dançando à margem de um rio negro.
Mikhail, no entanto, agiu pela primeira vez como se fossemos iguais. Ele esticou a capa escura, pousando-a sobre meus ombros, ajeitando o capuz de modo que meu cabelo permanecesse bem escondido. Nenhum fiapo estava para fora, e apenas uma pequena faixa do meu rosto abaixo do nariz permanecia à mostra. O tecido não era quente ao toque, mas também não deixava o frio transpassar. Um cheiro masculino, terrivelmente comum, semelhante a ferro e cobre, impregnava minhas narinas.
— Vamos seguir a coruja — ele aconselhou e se despediu de Magdalena com um aceno. Desferindo tapinhas em minhas costas, incentivou-me a continuar, o que foi um pouco paternal e estranho demais vindo de Mikhail.
Não queria ver Demetrius, não poderia. Temia que disparasse em sua direção e desistisse de tudo caso aqueles olhos cinzentos e felinos me encarassem mais uma vez. Apenas uma. Era o que bastava para que eu o seguisse. Porque assim que eu o visse, meu corpo seria puxado até ele e seria impossível resistir, seria impossível não correr em sua direção. Eu, então, deixaria tudo em um piscar. Para longe. Bem longe.
Mas nem mesmo o inferno seria longe o bastante para me separar da culpa.
Girei rapidamente para o outro lado. Mirava as montanhas, árvores e pedras, olhava para o lugar seguro que brilhava no horizonte, pelo qual valia a pena lutar, pelo ideal de futuro que não me faria desistir; e encarei a negritude da floresta que me esperava, reunindo toda a coragem que podia. Após mergulhar nela, não havia como voltar. A coruja chirriou e bateu as asas imensidão adentro, deslizando entre os galhos e folhas do bosque denso.
Seguimos em frente, e não olhei para trás.
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