⚔ Capítulo 2


Celine! — Alguém gritou. E a voz veio de cima. Levantei a cabeça. Por um buraco de aproximadamente cinquenta centímetros, um olho me encarava de volta.

— Magdalena. — minha voz saiu fraca.

Percebi que o príncipe seguiu meu olhar, empertigando-se ao meu lado. Os tablados acima de nossas cabeças rangeram e Magdalena gritou outra vez, mas não havia nada que pudéssemos fazer àquela altura. As chamas cresciam ao nosso redor e o calor aumentava proporcionalmente, sufocando-nos com o odor forte de carbono. Senti algo envolver minha cintura e logo meu corpo foi puxado para o lado, uma sombra pendeu em minha direção e demorei a perceber que era o corpo de Demetrius.

Não tive tempo para assimilar todo o resto.

Uma viga de madeira caiu onde estávamos parados apenas alguns instantes atrás. Demetrius me protegeu transformando o próprio corpo em escudo, abaixando a cabeça até pousar no vão entre meu pescoço e o ombro, deixando que o manto grosso cobrisse-nos completamente. Senti sua respiração quente em minha bochecha. Durou bem pouco. Demetrius se afastou assim que a viga tocou o chão.

As tábuas rangeram.

O príncipe se agitou e limpou a testa, que gotejava suor sem parar, empurrou os fios pretos de seu cabelo molhado para trás e em seguida se virou para mim.

— A sustentação não vai aguentar por muito tempo — ele disse, pensativo, arrastando o indicador no queixo perfeito. — Está vendo aquela abertura ali? — ele apontou para o vão horizontal onde a viga se pendurava. — acho que, se conseguirmos soltar mais algumas tábuas, poderemos atravessar. Posso te levantar... Achar que consegue alcançar o teto?

Girei em volta, sem saber exatamente o que fazer. Não tínhamos muita opção e nosso tempo estava se esgotando.

Balancei a cabeça, incapaz de produzir qualquer som, mas não houve tempo para agir. Um estrondo, tão alto e potente quanto o ribombar de um trovão, ecoava do lado de fora. De repente, a estrutura interna começou a tremer. O segundo estrondo nos atingiu como um soco.

Demetrius foi arremessado para trás e, antes que eu pudesse me segurar em algo firme para me equilibrar, caí de joelhos no chão. A parede de madeira se desfez, tacos voaram para todos os cantos e as chamas se agitavam sorrateiramente, lambendo as vigas do teto.

Magdalena gritou.

Atrás do buraco na parede, a lua se exibia, majestosa. Não havia nenhuma nuvem no céu, estava completamente limpo, exceto algumas estrelas pinceladas aqui ou lá. Consegui avistar a montanha de pinheiros no horizonte acompanhando a cadeia de montanhas. A escuridão da noite que gritava do lado de fora aplacou o brilho do fogo do lado de dentro.

Pisquei duas vezes antes de reconhecer a forma encapuzada que se aproximava. Botas surradas pisaram sobre os tablados chamuscados, o misterioso abaixou o capuz preto, revelando a testa tatuada.

— Mikhail — o vulto não se moveu. Será que ele ouvira? Tinha a possibilidade e eu estar engada, mas não...  era ele, tinha certeza. Eu reconheceria os Assassino de Bear em qualquer estado deplorável ou lugar que estivesse.

O vulto desaparecera. Pisquei e Mikhail surgiu ao meu lado, era realmente ele dessa vez. Seus braços fortes carregavam alguma coisa. Estaria ele ali sob ordens de Midas ou Nikosoli? Tentei levantar, mas meus joelhos falharam. Atrás de mim, Demetrius se remexia, tentando remover a capa chamuscada dos ombros.

— Cada vez que a vejo está com a aparência ainda mais terrível. — ele sorriu. Aquilo me fez querer vomitar. Quem teria coragem de exibir os dentes daquele jeito numa situação daquelas? Mikhail estendeu a mão, a luva de couro marrom cobria-lhe a pele. Hesitei. — Ande logo, não temos a noite toda. Nikosoli está me aguardando.

— Onde ele está? — perguntei, em meio a tosse, conseguindo reunir energia o suficiente para levantar o braço na direção da mão esticada do assassino. Mikhail me puxou e me apoiei em seu ombro.

— Está com sua mãe — o assassino respondeu sem olhar para mim.

— Por quê? — disparei.

Mikhail assegurou que eu estivesse em condições de sustentar o peso do meu corpo sozinha para então avançar até Demetrius. Ele tossia, ajoelhado, apoiando-se em um móvel tombado, aparentemente um guarda-roupa muito antigo.

— Quem é esse? — indagou ele, arremessando o braço do príncipe ao redor de seu pescoço, puxando-o em seguida para longe da fumaça e do fogo.

O príncipe tossiu, tropeçou no próprio pé e então, ainda cambaleante, empurrou o corpo de Mikhail para longe, postando-se de pé com o corpo ereto e postura impecável.

— Demetrius Revereux Argonier, ao seu dispor. — ele tentou se curvar, mas hesitou, optando por um simples aceno cortês com a mão direita. Segurei-me para controlar minhas expressões faciais.

Esperava uma reação à altura de um Assassino de Bear, mas Mikhail nada disse. Ele apenas olhou para mim e então para Demetrius em silêncio. Ao invés de disparar perguntas ou apontar uma espada na direção do pescoço do príncipe, Mikhail suspirou, pesaroso, e puxou o capuz sobre a cabeça outra vez, de modo que apenas a linha fina dos lábios permanecia visível.

— Vamos — ele ordenou, e nos guiou para fora da construção em ruínas, atravessando o buraco na parede.

No exterior, a brisa gélida da noite beijou meu rosto, acolhendo-me da mesma maneira que uma mãe o teria feito. Atrás de nós, a pequena construção de alvenaria e madeira era consumida pelas chamas. Demorei um pouco até tomar consciência do quanto meu corpo estava pegajoso e quente. Sentia como se grãos de areia dançassem em minha garganta e a tosse era inevitável.

De costas, conforme se afastava, Mikhail parecia flutuar sobre o gramado escuro. A capa preta se movimentava conforme o vento, esvoaçante.

A poucos metros, dois cavalos malhados, um preto e um cinza, selados com material novo, aparentemente couro de qualidade, esperavam por nós pacientemente. Nenhuma corda os prendia à qualquer árvore ou grilhão, e não me surpreenderia nada se Mikhail dissesse que foram treinados para esperarem horas a finco até o retorno de seus donos.

Parada de pé à direita dos animais, abraçando o próprio corpo, estava minha irmã.

— Magdalena! — gritei e corri até ela, que disparou em minha direção. Nos abraçamos e parecia ter se passado anos desde que estivemos juntas uma última vez. Ela estava diferente, um pouco maior do que me lembrava. Me afastei para fitar seu rosto.

Cansada, abatida, triste.

Abracei-a outra vez.

— O que aconteceu? — Magdalena perguntou, se afastando. Dessa vez ela não procurava as respostas em meus olhos, a pergunta não era pra mim. Minha irmã juntou as mãos, os dedos nervosos se entrelaçando como um nó bem atado. — Para onde eles a levaram?

Mikhail traçou um caminho diferente, deslizando por trás dos cavalos, parando ao lado do animal de pelo preto e crina trançada, ignorando as palavras de minha irmã. Senti quando Demetrius parou ao meu lado, mas não tinha qualquer energia ou coragem de fitá-lo ou explicar o que estava acontecendo.

Por onde deveria começar?

— Ouviu alguém se aproximar? — perguntou o assassino, acariciando o animal. O cavalo relinchou em resposta, balançando a cabeça. — Muito bem, muito bem. — Mikhail então deu uns tapinhas no pescoço, como se agradecendo pela informação, e se voltou para nós. — Midas está no castelo, precisamos ir agora.

— Você... estava falando com o cavalo? — foi Demetrius quem perguntou, mas não julguei seu tom de voz cético. Estava tão descrente quanto ele.

— Todos os membros de Bear tem um dom — foi tudo o que ele disse antes de deslizar para o lado e montar no segundo animal.

— Antes cavalos do que sombras — sussurrei, mais para mim do que para os outros escutarem. Ao meu lado, Demetrius se empertigou e controlei o ímpeto de segurar sua mão.

Ao norte, o vento ricocheteou as árvores e alguns pássaros cortavam o céu noturno, agitados. Mikhail girou o corpo para aquela mesma direção e, depois, fez um sinal com as mãos para o cavalo preto. O animal curvou a cabeça e se afastou de seu dono, virando-se para mim logo em seguida. 

Os olhos tão pretos quanto turmalina negra me encaravam de volta, e era como fitar o abismo. Nele, vi minha própria imagem borrada refletida.  Os cabelos negros esvoaçando com o vento, fuligem e suor. 

— Está preparado, garoto? — acariciei o pelo do animal em minha frente. — Ainda temos uma noite interminável pela frente.

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