⚔ Capítulo 7



         A chuva fina começou a cair assim que avistei a taberna. Poucas pessoas transitavam nas ruas daquela região ao norte da cidadela àquela hora, o que tornava minha tarefa de chegar até o Valkirian sem ser vista muito mais fácil do que eu pensei. Eu poderia ter escolhido caminhar entre os demais, mas que graça tinha se eu não pudesse pôr em prática os poucos ensinamentos úteis que Nikosoli passara à mim?

Vinte e quatro horas tinham se passado desde a última vez que eu o vira, desde sua oferta de paz. Estava definitivamente grata por aquele sopro de liberdade. Voltar a ver minha família, com todos os problemas que a noite rendeu, ainda trouxera à mim um pouco de esperança, e aspirava por um futuro melhor.

Ainda assim, medo fervilhava meu estômago. Eu não fazia ideia do que ele pretendia ou o que, exatamente, Midas desejava que eu fizesse nos próximos dias, quando os treinamentos chegassem ao fim. Menos ainda me alegrava que alguém ao norte da cidadela conseguisse me reconhecer, pois não seria nada bom fomentar fofocas mentirosas que, eu sabia, Eugênio espalharia com o meu nome. Por isso, lutei durante todo o caminho até o norte para que ninguém, nem mesmo a minha sombra, conseguisse me identificar.

Cheguei à taberna sem grande dificuldade e a fachada do Valkirian realmente fazia jus à fama. Era um estabelecimento elegante até mesmo do lado de fora. O solário de carvalho parecia ter sido esculpido por anjos, se é que existia algum. Espirais e ramos de erva-verde foram talhados nas colunas finas e grossas de sustentação. Balaústres em formato de ampulheta amparavam o cercado e o corrimão da escada. A porta também era de madeira, bem simples, com aldravas de metal prateado no centro, mas os entalhes faziam-na se destacar. Era uma belíssima combinação de trabalho manual local e metais refinados somente encontrados nos estabelecimentos com selo da Corte Real do Rei Valkran.

As janelas da taberna estavam fechadas, e ainda assim conseguia-se ver a luz do lado interno e ouvir as melodias e sons abafados que escapavam para o lado de fora. Não perdi muito tempo ali, afinal, eu não tinha cruzado a cidade para ficar no frio e na chuva.

Atravessei o corredor estreito ao lado do estabelecimento que dava acesso à área dos fundos. A chuva se intensificou, os pingos furiosos ensopando o melhor xale que eu tinha, destruindo meu vestido, meu cabelo, tudo, sem qualquer piedade. Ah, eu costumava gostar de dias cinzentos e chuvosos, mas naquele momento, especificamente, comecei a me ressentir do mau tempo. Esgueirei-me pelo tablado de madeira que cercava todo o perímetro da taberna, protegendo-me da chuva sob a área coberta.

Você veio. — o tom grave e áspero cortou o gotejar frenético da chuva. Ao girar em direção a voz, um vulto preto emergiu das sombras, bem na minha frente.

Ele abaixou o capuz do manto azulado e movimentou a cabeça para os lados antes de virar para mim outra vez, revelando o rosto e a cicatriz. Nikosoli estava um pouco afastado, mas não muito longe da proteção contra a chuva. Ainda assim, ele não fez menção em sair do lugar. Os pingos caiam em cima dele também, deixando o cabelo preto totalmente molhado e alguns fios soltos grudarem na lateral do rosto. Nikosoli não parecia se importar.

Eu, por outro lado, não conseguia dizer se o assassino estava satisfeito ou não por eu estar ali. O rosto continuava franzido em uma carranca mal-humorada, expressão com a qual eu já estava começando a me habituar. A cicatriz, no entanto, ainda me fazia engasgar com a saliva às vezes, e foi o que aconteceu quando bati os olhos nele.

Perguntava-me como Nikosoli teria conseguido um arranhão no rosto daquele jeito, tão profundo, tão antigo, tão selvagem. Mas sabia que, definitivamente, não deveria questionar em voz alta.

— Não finja estar tão surpreso. — disse a ele, finalmente. A chuva se intensificou e eu me encolhi, recuando até a área coberta. — Sabe que não tenho muitas opções. Como poderia não vir? — gritei, tentando fazer minha voz soar mais alta do que as gotas raivosas despencando do céu.

Olhei para cima, o cenho franzido. Nuvens traiçoeiras.

— Você não usou a carruagem e não estavam em lugar algum do castelo.

Ele parecia aborrecido.

— Eu não queria chamar atenção, não quero que Magdalena e minha mãe saibam...

— Midas disse a mesma coisa — Nikosoli meneou a cabeça e riu. A expressão não indicava que achara realmente graça de algo.

— Acho que ele tem mais fé em mim do que você — brinquei.

— Ele tem bem mais do que isso — rebateu, e afundou no silêncio. Quis perguntar o que aquilo significava, mas não houve tempo. Nikosoli desapareceu, deixando-me boquiaberta, ensopada, com frio e sozinha.

Eu demorei alguns segundos para entender que Nikosoli não estava mais ali. Girei o corpo para os lados, procurando por ele sem sair da minha área de proteção contra a chuva. O tablado rangia ao mínimo movimento e o chicotear do vento tornou-se ainda mais intenso, fazendo a chuva penetrar o vão entre o cercado e a marquise. Instantes depois, Nikosoli ressurgiu das sombras outra vez, ao meu lado, estendendo o braço na minha direção.

Se não fosse pelo calor de sua presença, não teria o descoberto ali. As sombras conseguiam abraçá-lo e soltá-lo tão silenciosamente que impossibilitava detectá-lo apenas com a audição.

— Venha. — disse Nikosoli, a mão direita parada a poucos centímetros de mim, a palma virada para cima. Eu hesitei. — Não vou machucá-la, Celine. — ele assegurou. — Pensei que já teria percebido a essa altura.

De fato, percebi. Se Nikosoli quisesse me ferir, provavelmente eu já teria perdido a cabeça no primeiro insulto disparado. A verdade era que isso não estava na minha lista de preocupações. Nenhum pouco. Não era Nikosoli o motivo da minha hesitação. Respirei fundo e segurei a sua mão. Assim que meus dedos tocaram a pele áspera de Nikosoli, senti a imensidão gélida da escuridão me abraçar imediatamente e, em um piscar, ele me fez desaparecer com ele pela segunda vez.


          A luz amarelada das lamparinas a óleo e o calor no interior da taberna me inebriaram assim que as sombras se dispersaram. Não lembrava estar com tanto frio antes, mas meu corpo molhado e os braços trêmulos, tal qual varas de bambu ao vento, informaram-me o contrário. A barra da saia do vestido estava arruinada, mas não a ponto de precisar jogar fora. O xale, tão úmido quanto meu cabelo; e quando encontrei meu reflexo no espelho, desviei imediatamente.

Não conseguia, e nem queria, olhar o caos que me encararia de volta enquanto estivesse com o rosto daquele jeito. Eu sabia o que iria encontrar. Marcas roxas ao redor do rosto, um corte na testa e bochechas fundas.

Eu não costumava ter problemas com a minha aparência. Não era magra como a maioria das outras garotas, o que era uma coisa boa, mesmo que alguns achassem que não. Ainda que minha família tivesse algumas dificuldades financeiras, tínhamos o nosso chalé e nunca faltava comida para mim ou minha irmã. Por causa disso, meu rosto costumava ser bem redondo e minhas bochechas eram grandes, mas a linha do queixo era fina.

Meu corpo não era definido e eu também não tinha muitos músculos. Além disso, estava longe de ter coxas e braços finos. Era uma mistura muito mal elaborada de todas as possíveis possibilidades para um corpo comum. Meu quadril era largo, o busto era proporcional, nem muito pequeno e nem muito grande. O cabelo loiro-escuro descia até o meio das costas, às vezes ondulado, às vezes mais cacheado. A cor mudava conforme a iluminação, alguns fios avermelhados brotavam aqui ou ali e as pontas eram um pouco mais claras. Nada extraordinário, apenas Comum.

Meus olhos, no entanto, eram a minha parte favorita. Azuis. Mas não era aquele tom irritante de azul que tinha o dom de desconcentrar qualquer pessoa em uma conversa casual. Não. Definitivamente não era azul-claro ou esverdeado, quase transparente como a água. Era um azul profundo, sombrio, quase preto.

Mas naqueles últimos dias eu me sentia pior do que um saco de verduras pisoteado, com certeza minha aparência não se diferia muito do quão mal eu me sentia.

— Sabe... só porque tem uma habilidade mágica, não significa que deve usá-la para tudo — disse, enquanto dedilhava a lateral da penteadeira velha na lateral do cômodo, poeira grudou nos meus dedos. Mas o móvel era bonito. — Por que não entramos pela porta da frente?

Admirei o resto do cômodo rapidamente. Era pequeno, aconchegante, muito diferente do que eu esperava do interior de uma taberna. Na verdade, a surpresa me tomou por completo quando notei na cama. Aquilo era um quarto. Bom, nada muito incomum. Afinal, eu sabia que existiam quartos em algumas tabernas-hospedagens da região. Mas quando desviei o olhar da decoração para Nikosoli, pude ver o cenho franzido.

— Não pode entrar no Valkirian vestida desse jeito. — ele respondeu, e eu olhei em volta outra vez, curiosa. Eu não conseguiria guardar a pergunta apenas para mim.

— Não estamos na taberna, então? — ele balançou a cabeça para os lados, negativamente, deixando as gotas de chuva respingarem ao redor, mas o cabelo estava pesado demais para sequer balançar. — Onde estamos?

Nikosoli fez uma careta preocupada e, em silêncio, marchou até o guarda-roupa do outro lado do cômodo. Só então percebi que toda a decoração do lugar era de madeira, itens pequenos, como carrosséis e bonecas de pano feitas à mão descansavam no móvel à direita. O chão era de tacos de bétula, ao que parecia, as paredes de um tom mais escuro.

Enquanto Nikosoli vasculhava o guarda-roupa, detive os instintos de tocar nos objetos e me contentei a observar. Um item pequeno, no mezanino ao lado da cama chamou minha atenção. O cômodo era bem pequeno, então apenas bastou alguns passos para que eu alcançasse.

Era uma caixinha de música azul-cobalto cintilante ornamentada com pérolas pretas nas extremidades e laterais; a estatueta de uma bailarina de metal no centro do tampo girava em sentido horário, infinitamente, mesmo sem música.

— Não toque nisso — repreendeu Nikosoli, a voz soou baixa, mas o tom era mandatório. Recolhi o braço antes que minha mão finalizasse o caminho até a bailarina. Não arriscaria ter meus dedos decepados por um Assassino de Bear.

— Desculpe — sussurrei, sem ter certeza se ele conseguiu ouvir.

Nikosoli pigarreou e eu girei o corpo para trás, ereta como um tronco de pinheiro, ainda um pouco preocupada em fazer alguma coisa errada. Mas logo o sentimento desapareceu.

Quando me deparei com um Nikosoli segurando um emaranhado de tecido preto nas mãos, tudo que senti foi vontade de rir da careta enrugada. Ele provavelmente era tão jovem quanto eu, embora jamais tenha perguntado a sua idade, julgava-o, talvez, ser apenas alguns anos mais velho. Ainda assim, as expressões rígidas e o jeito de falar lembravam um homem comum beirando os cinquenta anos.

Segurei a risada.

Ele não era um homem comum.

Pegava-me constantemente tentando me lembrar disso. E por mais que não quisesse admitir, percebi o quanto aquela sensação de falsa liberdade ao seu lado era perigosa. Ainda que ele não fosse o responsável e estivesse tão atado a Midas quanto eu, não conseguia espantar aquela estranha sensação. E eu quase podia vê-la se materializar. Era um véu translúcido flutuante entre nós, envolto por uma camada de névoa densa e tempestuosa. O véu nos aproximava e afastava na mesma intensidade.

Eu não me sentia em constante perigo ao seu lado, ou à mercê da morte, não me sentia como a prisioneira que eu era. Porque Nikosoli não era mais um inimigo. Ainda assim, eu não podia ignorar aquele sentimento, não podia abaixar a guarda demais, não ainda.

Nikosoli arremessou a montanha de tecido na minha direção, e eu segurei com um pouco de dificuldade, tentando manter o tecido longe das minhas roupas ensopadas.

— Vista isso e não demore. — pediu ele. — Voltarei em dez minutos.

Instantes depois, Nikosoli desapareceu nas sombras mais uma vez.

          Eu realmente estava maravilhosa, mas não conseguia afastar a sensação esmagadora em meu peito de estar parecendo com uma prostituta dentro daquele vestido. Era incrivelmente bonito, sim. Acho que, sem qualquer sombra de dúvidas, o vestido mais caro que já coloquei no corpo. A fazenda era delicada ao toque, como seda. Uma camada de renda se estendia abaixo de duas camadas de tecido musseline preto com pedras brilhosas na base da saia. O corpete deixou minha cintura bem mais fina do que era de fato, e o decote acentuado fazia meus peitos saltarem para frente a cada passo.

Estava muito consciente das áreas expostas do meu corpo e com muito medo de meus seios acabarem acidentalmente pulando para fora ao mínimo movimento. Mas não havia nada que eu pudesse fazer naquele momento quanto ao vestido ou minhas mãos suadas. Assim que adentramos no estabelecimento, todos os clientes e serventes do Valkirian giraram as cabeças curiosas para a porta, eles encaravam a mim.

Eu desejei desaparecer. Mas, por sorte, os meus cinco minutos de apreensora de atenções duraram apenas isso, talvez menos. Porque eu me parecia exatamente como todas as outras mulheres do Valikiran, exceto talvez pela palidez excessiva no rosto e os cabelos molhados.

Ao menos uma missão havia sido cumprida com sucesso.

— Relaxe — Nikosoli sussurrou, a postura estava ereta, ele olhava para frente. Quase pensei que tinha ouvido coisas, mas quando girei a cabeça, ele acompanhou meu olhar e sorriu. — Em breve estará se vingando deles por fazê-la se sentir desconfortável desse jeito.

Nikosoli tinha trocado o manto azulado de veludo por um tipo de fraque, simples, preto, como o resto de sua aura sombria. Os cabelos molhados estavam penteados para trás da orelha, caindo sobre as costas. Ele estava elegante e, se não fosse pela cicatriz, diria até atraente. E ele não precisava se incomodar com os seios à mostra.

Era injusto, e por isso bufei enraivecida. Eu devia estar bem incomodada mesmo, já que ele tinha percebido meu desconforto a ponto de comentar. Reprimi a risada e respirei fundo.

— Bom, se chegar a isso, não é deles que irei me vingar. — disse e apoiei a mão no braço Nikosoli, exatamente como ele tinha me instruído a fazer antes de cruzarmos a porta do Valkirian poucos segundos atrás.

Nikosoli nos guiou por entre as mesas com passos silenciosos até o balcão de bebidas e pude sentir alguns olhares sobre mim. Logo outra música preencheu a taberna, fazendo com que a atenção de todos os clientes e atendentes se dissipasse outra vez.

Desvencilhei-me de Nikosoli antes de chegarmos até a mesa. Assim que nos sentamos, um homem de meia-idade, alto e careca se aproximou trazendo duas canecas grandes de cerveja. Pousou-as na mesa e acenou com os dedos antes de se retirar. Balancei a cabeça um pouco chocada e tateei o tampo da mesa. Estava com medo de me inclinar para pegar a caneca e o vestido descer.

Por sorte, não precisei fazer isso. Nikosoli pegou o copo de cerveja e pousou-o na minha mão.

— Deve estar se perguntando porque estamos aqui — a voz dele conseguiu cortar a cacofonia sem soar muito alta, o que era um pouco surpreendente até mesmo para alguém como ele.

Balancei a cabeça para os lados.

— Na verdade, essa é uma das coisas com a qual menos me importo no momento — confessei, e era verdade. Mas ele não precisava saber do resto. Nikosoli cruzou os braços, e o cenho torcido já estava lá.

— Com o que se importa, então?

O brilho de curiosidade iluminava seus olhos. Estaria ele disposto a me dar respostas? Decidi arriscar.

— Eu não tenho habilidades em combate, tão pouco possuo algum poder mágico ou influência — despejei. — Na minha cabeça, ao menos, não faz o menor sentido que ele tenha exigido que seja eu, dentre todas as pessoas, para me unir a vocês. Um grupo de assassinos, ora! O que ele espera de mim? Por que teria todo esse trabalho de designá-lo para me ensinar a lutar e me defender? Ele poderia ter qualquer outro guerreiro mais experiente... — Nikosoli ouvia-me em silêncio. — Não faz o menor sentido... Parece que... Parece que...

Nikosoli uniu as mãos e apoiou os cotovelos sobre to tampo da mesa, descansando o queixo entre os nós dos dedos.

— Ele vê algo em você.

— O que isso significa? — indaguei, a sobrancelha arqueada. Tão logo a confusão se esvaiu de meu rosto. — Este é o seu jeito de dizer que ele quer me levar para cama?

Nikosoli tossiu em meio a risada.

— Não! Pela Deusa, não! — gesticulava, forçando a saliva goela a baixo. Ele limpou a garganta e endireitou a postura. — Não foi o que eu quis dizer. Midas tem um olho mágico, uma habilidade élfica rara, nem todos de sua espécie a possuem. Ele consegue enxergar... coisas que olhos comuns não veem.

Assenti, um pouco envergonhada por minha conclusão precipitada.

— O que ele viu, então? — indaguei.

— Ele nunca disse. — Nikosoli suspirou. — Mas vai contar na hora certa, ou, talvez, jamais conte. É uma criatura féerica, afinal, não se pode confiar muito.

— Mas você trabalha para ele.

— Sim — Nikosoli refletia —, mas continuo confiando apenas em mim e, exatamente por isso, prometi a mim mesmo que não a deixaria correr perigo... — Nikosoli se calou, torcendo o cenho como se tivesse acabado de tomar uma colher de vinagre.

Fitei-o, confusa.

— E por que faria tal promessa? — insisti, arqueando a sobrancelha. — Espero que não esteja apaixonado por mim ou algo do tipo, porque não vai rolar. — comentei, espirituosa, e tomei coragem para beber um gole da cerveja.

Senti o líquido gelado e amargo descer pela garganta. Eu não costumava gostar muito de cervejas, mas talvez aquela fosse a minha última, então bebi um pouco mais. Por que eu continuava provocando-o desse jeito? Mas, contrariando todas as leis que regiam o mundo de Lymurian, Nikosoli não reagiu do jeito amargo que esperava, ele riu. E não somente riu, mas gargalhou, tão alto que vários outros clientes do Valkirian se viraram para a nossa mesa. Remexi-me na cadeira, desconfortável, enquanto ele retomava o fôlego. Não era tão engraçado.

Ele ainda estava rindo quando pousei a caneca de cerveja de volta na mesa.

— Desculpe. — ele pediu. — Não quero que se sinta ofendida, com certeza deve ter seus charmes, mas não estou interessado. — ele se apressou em explicar, retornando ao estado carrancudo habitual. E de repente o ar ficou pesado, Nikosoli olhou para baixo e não ousou levantar a cabeça até terminar de falar. — Quando invadimos a sua casa... aquela menina e a mulher ficaram aterrorizadas, em pânico... — senti um arrepio ao ouvi-lo falar de Magdalena e minha mãe. — Mas você não. Você não estava com medo ou, se estava, conseguiu enterrá-lo bem fundo e colocou-as em primeiro lugar. Vi fogo queimando em seus olhos, sabia que lutaria, que faria o que estivesse em seu alcance para ajudá-las. E por isso não quis assistir.

— Claro que eu faria algo — disparei, o tom subindo mais oitavas do que o normal. — Elas são minha família, tudo o que eu tenho, qualquer um em meu lugar faria...

Está enganada — ele levantou a cabeça, os olhos sombrios mais rígidos que diamante. — Está enganada, Celine. Eu conheço dezenas, não... centenas de homens com o dobro ou triplo da sua força que não teriam essa coragem, e eu sei que você conhece pelo menos um — Eugênio. Foi minha vez de encolher. — Aquilo realmente causou uma impressão. O jeito que se colocou na frente delas, seu olhar, especialmente, sua determinação... Você me lembra alguém com quem falhei muitos anos atrás.

Estiquei a mão para pegar a caneca de cerveja e fiz sinal para o balconista assim que todo o líquido desceu pela garganta. Percebi que talvez precisaria de mais alguns goles se fôssemos continuar a compartilhar memórias daquela noite infeliz.

— Sua namorada? — perguntei, batendo a caneca vazia na mesa. Arrotei, e Nikosoli franziu a testa em advertimento, o que me fez lembrar de minha mãe. Fui obrigada a reprimir a vontade de rir.

— Minha irmã — declarou ele quando o homem careca voltou à nossa mesa com mais duas canecas de cerveja. Fiz um gesto de agradecimento, mas não toquei no copo. — Seus olhos me lembraram os olhos dela, e a coragem... A lembrança de Talyssa me invadiu de novo enquanto voc~e fazia o acordo com Midas no salão, e quando me viu cortar a cabeça de Valkran. A impetuosidade, o destemor, a raiva... Não conseguia pensar em outra coisa. — ele suspirou, parecendo mais perdido do que jamais vira alguém ficar algum dia. — Na verdade, tudo em você faz eu me lembrar dela.

Ele levou a caneca de cerveja à boca.

— Ela morreu? — indaguei e ele concordou com a cabeça, balançando-a sutilmente, um movimento tão leve que quase achei ter me confundindo. Mas depois ele levantou a cabeça, ainda sério, os olhos afundando no vazio.

— Sim. — respondeu. — Por isso que decidi ajudá-la.

Era um pouco frustrante e irreconhecível, simultaneamente, enxergá-lo daquele jeito. Como alguém vulnerável, com dores e dramas familiares misteriosos. No entanto, com fantasmas do passado ou não, Nikosoli ainda era uma das pessoas mais terríveis e perigosas do Reino das Estrelas, ainda era um assassino, e muito provavelmente não merecia minha pena.

— Midas fez algo com ela? — quis saber, ele negou com a cabeça, ausente. Não voltou a explicar nada por mais alguns segundos, o que me deixou bastante ansiosa.

— Você queria saber o motivo, dei-lhe um. Já expliquei o que precisa saber. — Nikosoli apanhou a caneca de cerveja e virou-a de uma vez, o gogó subindo e descendo rapidamente. Arregalei os olhos, assustada. Ele bateu a caneca na mesa e arrotou, igual eu tinha feito. — Não pude ajudar minha irmã, mas posso fazer isso por você. Farei isso. — ele deixou a expressão pensativa para trás e exibiu um sorriso. — Agora, vamos. Vou lhe ensinar a primeira lição que precisa saber da aula de hoje.

— Para quê? — perguntei, parando a caneca de cerveja no meio do caminho.

Se ele falava a verdade, se realmente estava prestes a me ensinar alguma coisa que eu pudesse usar para me livrar de Midas, se aquela primeira lição exigisse o mínimo de coordenação ou pensamento claro, eu não podia continuar bebendo.

— Para matar, Celine. — ele disse, e o sorriso desapareceu, a expressão sombria retornando tão subitamente quanto ia embora. Mas dessa vez não me incomodou mais. — Vou te ensinar a matar.

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