⚔ Capítulo 6



         Fazia cinco dias desde que eu recebera a minha marca dos assassinos de bear e, desde então, não retornara ao chalé da minha família. Midas ordenara que eu passasse os dias seguintes me preparando para a minha primeira missão sob sua vigília e não permitiu que eu deixasse o palácio. Ele encarregou Nikosoli de me ensinar tudo o que eu precisaria aprender e tive sucesso nas aulas de equitação e alto-defesa. Mas também tive outras aulas, como reconhecendo diferentes tipos de venenos ou qual a diferença entre uma arma de lâmina dupla e um machado de duas cabeças?

Eu ainda não sabia a diferença.

— Não somos açougueiros — Nikosoli dissera, mostrando em seguida algumas adagas, facas e punhais. — Não podemos carregar armas grandes e robustas. Se precisar escolher, pegue sempre algo menor e bem afiado.

Ele também introduzira à arte da camuflagem entre as sombras; afinal, como assassinos, deveríamos aprender a nos tornar invisíveis e desaparecer era tão importante quanto acertar o alvo. Também fora uma tarefa difícil, principalmente porque Nikosoli falhava em sua didática.

O sol estava a pino e. durante esse horário, eu costumava passear no pátio da frente, onde querubins haviam sido entalhados carregando jarros e buquês de flores na base de uma fonte de pedras. Água jorrava para cima, criando a ilusão de um arco-íris no céu azul. Aquela imagem me dava certo conforto, era um sopro de paz, e as âncoras alojadas entre as lombadas dos ombros desapareciam.

Durante aqueles dias de estadia no palácio dourado de Midas, servindo-lhe como um dos assassinos, costumava passar pouco tempo sozinha. E, a cada vez que as horas se arrastavam entre uma lição e outra, as refeições rápidas e as noites mal-dormidas, meu coração sofria de saudade. Não tinha cheiro de pães saindo do forno da cozinha do palácio dourado. Não tinha a risada da Magdalena entre os corredores compridos. E não tinha o cantarolar de minha mãe entre as laçadas de agulha de sua costura quando a noite caía.

Quando eu pensava em meu pai, contudo, passar os dias no palácio dourado de Midas treinando com Nikosoli não parecia ser algo tão ruim; afinal, no palácio não tinha Eugênio. Ele chegava ao chalé quando o sol já não mais brilhava, cheirando a destilaria; costumava jantar em silêncio, salvo alguns comentários desagradáveis, e afogava-se numa garrafa de rum para comemorar os ganhos do dia — e se o carteado não lhe trouxesse alguns centéis à mais, ele bebia o dobro, porque perder dinheiro o deixava triste. Em seguida, Eugênio se retirava para se espatifar na cama e não levantar até o meio-dia do dia seguinte.

Suspirei.

Não podia continuar pensando em meu pai, ou mesmo em Magdalena e minha mãe, pois Nikosoli voltava do palácio com seu visual habitual: uma capa preta e um chapéu de bico pontudo. Ele caminhava com os punhos cerrados. E, talvez fosse o preto em suas roupas e do cabelo somado ao efeito da capa flutuante atrás dele, ou mesmo o vento que rebatia seu cabelo comprido, mas Nikosoli parecia deslizar sobre o gramado como uma sombra. Os passos pareciam se esquivar dos pontos de luz inconscientemente. Sem perder a postura.

— Midas me deu ordens para ensiná-la a roubar — declarou ele com cara de poucos amigos. Nikosoli costumava franzir o cenho com frequência. — E me deu isto. — Nikosoli esticou o braço direito, abrindo as mãos com a palma para cima. Um vidrinho com um líquido vermelho brilhava na pele branca. — Deve carregá-lo com você.

Apanhei o vidrinho sem lhe dar muita importância. Era parecido com o que ele havia me dado há uma semana, quando o Rei Valkran se desfez em sombras aos nossos pés. Guardei o frasco em um dos bolsos do cinto e soltei uma risada.

— Pensei que tinha dito que não era um ladrão — comentei, apenas por que aprendi que irritá-lo era divertido.

Nikosoli revirou os olhos.

— E não sou. — declarou, rangendo os dentes ao forçar um sorriso. — Mas preciso cumprir minhas ordens, e você as suas. — e foi a minha vez de revirar os olhos. Nikosoli ficou em silêncio e levantou a cabeça, procurando pelo sol. — Fiz com que ele deixasse você voltar para casa por algumas horas. — ele pigarreou e curvou os ombros. — Vai poder ver a sua família antes de partirmos.

O sangue em minha veia gelou.

O quê? — eu estava em êxtase. — Isso é sério?

— Sim.

— Vou poder ver minha mãe?

Sim.

— E minha irmã?

Sim, por um dia, ao menos. — ele olhou novamente para o céu. — Após se despedir, irá me encontrar nos fundos do Valkirian, amanhã, às dezesseis horas. Nikosoli fixou o olhar em mim. — E não se atrase.

Eu quase engasguei. Valkirian. Nunca tinha visitado o lugar, mas todos conheciam aquele nome. Era a taberna mais luxuosa e popular de Reinlynch, onde os ricos trocavam seu ouro por bebida barata e prazeres mais baratos ainda. O Valkirian ficava localizado mais ao norte da cidade, o que significava dizer ser longe, bem longe do centro e ainda muito mais longe do chalé.

— Estamos praticamente no meio do caminho, o palácio está bem mais perto do Valkirian. A distância entre a taberna e o chalé é quase o dobro... — pensava em voz alta, e Nikosoli arqueou a sobrancelha. — Não estou reclamando! — me adiantei.

— Se não ficou feliz...

— Não é isso, não quis dizer... — tentei pensar em algo para dizer, alguma coisa, qualquer coisa. Suspirei. — Gostei muito — disse por fim, e me senti péssima, minha voz não soava nada feliz.

— Você tem uma escolha, Celine. Você pode ir, ou ficar. Não ganhamos muito isso por aqui, a opção de escolher e pode não haver uma chance de revê-los depois de amanhã... — ele se calou por um instante e pigarreou. — Ainda assim, a escolha é sua. — Nikosoli assegurou. Ele endireitou o capuz sobre a própria cabeça, cobrindo o rosto quase completamente. A cicatriz, no entanto, continuava bem visível. — De todo jeito, avisarei para deixarem uma carruagem à sua disposição.

Eu agradeci. Nikosoli sacudiu a capa e se voltou para o palácio. Eu não voltei a vê-lo naquele dia. E também não usei a carruagem. Não conseguiria chegar em casa depois de tudo que aconteceu, não poderia aparecer na porta do chalé usando aquelas roupas, aquela marca... como uma deles.

Fitei o besouro em minha mão e semicerrei os punhos. Decidida, praticamente voei até meus aposentos — que consistiam em um pequeno quarto com uma janela e gaveteiro, uma alcova adjacente com uma cama e só. Apanhei o par de luvas que jaziam sobre o travesseiro e desatei-me a correr. Cruzei o porta principal do palácio, atravessando o pátio até o muro de pedras. O portão estava aberto, esperando por mim.

Olhei para trás. A fonte jorrava, mas dali não conseguia ver o arco-íris.

Então corri na direção oposta, deixando o palácio cada vez mais para trás, e desapareci no bosque.


         — O que faz aqui? — disparou Eugênio ao abrir a porta, exibindo uma feição de espanto. Eu teria gostado de assistir aquilo se não estivesse tão enjoada de ter percorrido todo o trajeto do palácio dourado até o chalé a pé. O sol já havia se escondido atrás das montanhas e azul-escuro tingia o céu. Teria vomitado em seus pés se ele não tivesse criado espaço para eu passar.

Corri até o banheiro, despejando o suco estomacal que ameaçava sair pela boca. Um jato amarelado voou direto no balde. Liguei a torneira em seguida, enfiando a cabeça debaixo da água corrente. Finalmente senti que podia respirar. Ou quase. Não demorou para eu ouvir os gritos.

— Sua filha está aí, Reina. — resmungou Eugênio. — Sim, sim, e está vestida como uma puta. — ouvi barulhos e passos cresciam sobre o tablado. Alguém bateu na porta e fiquei tensa.

— Celine, Celine! Ela voltou? Está aqui? — era a voz de minha irmã, ouvia Magdalena gritando. — Abra a porta!

Terminei de me lavar e fechei a torneira. Sentiria falta do barulho da água, ainda que por pouco, conseguia cobrir a voz de Eugênio, que continuava a reclamar e pestanejar com o peitoral bufante. Abri a porta. Olhos grandes e um sorriso aberto me fitaram de volta. Magdalena estava de pé, com as mãos dançando entre o tecido do vestido. O cabelo estava penteado e fitinhas decoravam as laterais da cabeça. Minha irmã era tão bonita quanto uma boneca de porcelana.

Ela pulou em meus braços e eu a abracei.

— Oh, estou tão feliz que está bem! — disse, acariciando suas costas. — Estava com tanta saudade!

— Nem acredito que está aqui! Está mesmo aqui! Voltou para nós! — ela dizia, alegre. Magdalena mexia-se tanto em meus braços que foi necessário por minha irmã de volta ao chão. Não conseguia segurá-la enquanto pulava e gritava. Nunca a tinha visto tão feliz. De repente, ficou em silêncio. Lágrimas desciam de seus olhos. — Achei que nunca mais poderíamos vê-la, achei que... papai disse que você estava morta.

Sem respirar, voltei-me para Eugênio, que fingia que nada acontecia.

Ele disse o quê? — meus dentes rangiam. Se eu pudesse matá-lo apenas com o ódio em meus olhos, teria feito. Teria partido-o ao meio. E queimaria seus ossos e daria aos porcos suas vísceras. — Por que diria algo assim? — avancei em cima dele e minha mãe surgiu, segurando-me pelos braços.

Eugênio se levantou, as sobrancelhas quase tocando a raiz do cabelo.

— Sua insolente, ia me bater? — ele gritava. — Ia bater no seu pai? O que pensa que é?

Cuspi na cara dele.

— O que você sabe sobre ser um pai? — ladrei. — O que você sabe sobre qualquer coisa que não seja beber e gastar todo o nosso dinheiro?

Vi seu rosto mudar e ficar vermelho. Ele estreitou os olhos, nada além de ódio destinado a mim. Eu conhecia aquele olhar. Eu conhecia aquela raiva. Eugênio soltou um grito de fúria e empurrou minha mãe para o lado com mais força do que devia. Ele, então, esticou o braço e avançou em cima de mim, apertando os dedos gordos ao redor do meu pescoço. Magdalena chorava e gritava. Minha mãe se encolheu no chão.

Em choque, não tive como me defender, afinal não esperei pelo golpe. Ele nunca fora um bom pai, mas não era também violento. Aquilo era novidade.

— É o meu dinheiro, meu e de ninguém mais. Eu vou gastá-lo como eu bem-quiser. — ele gritava enquanto seus dedos me enforcaram. — E você vai me respeitar por bem ou por mal. Fico feliz por não se dar ao respeito, minha dívida está paga e ganhei um crédito a mais graças a você — ele sorriu. Nojento. Nojento. Nojento. — Mas não pense por um segundo que você significa algo para mim. Sua bastarda imunda.

Ele afrouxou o aperto e começou a rir. Olhei para baixo, minha mãe evitava nos olhar, mas aquilo não fez com que Eugênio parasse. Ele me fitou de cima a baixo, com desprezo. Um brilho diferente queimava nos olhos. Não fazia ideia de quantas garrafas ele já entornar àquela altura, mas pareciam ter sido muitas; porque em nenhum de seus piores dias eu havia testemunhado tanta asquerosidade.

— Oh, bastarda? — a palavra saiu de meus lábios e, em seguida, uma risada.

— O quê? Está surpresa? — Ele avançou mais uma vez para cima de mim, sacudindo-me pelos ombros. — Por que está rindo, sua vagabunda? Por acaso eu disse algo engraçado?

— Sim! Muito! — cuspi em sua cara outra vez. — E estou especialmente feliz por não ser sua filha.

Passei meu cotovelo direito por cima de seu braço esticado e o empurrei, sacudindo o corpo como Nikosoli havia ensinado. Eugênio se empertigou, surpreso porque eu consegui me soltar e também por ter revidado. Fingi que ia dar um soco em seu estômago e ele, prevendo meu movimento, esquivou o corpo de forma que sua cabeça pendeu para baixo e afundei meus dedos em seus olhos. Ele gritava, cambaleante. Puxei uma faca do cinto e perfurei-o no músculo trapézio posterior, o espaço entre o ombro e o pescoço. Retirei a faca rapidamente enquanto Eugênio agonizava de dor.

A mancha vermelha crescia na camisa, o homem tombou no chão. Eu agi rapidamente, e tudo ocorreu ao meu favor porque Eugênio estava inebriado e mal conseguia se manter de pé sem o peso pender mais para um lado do que para o outro. Ele gemia de dor e gritava.

— Sua vagabunda! Diabo! Monstro! — ele tentava se levantar, mas não conseguia. Até que minha mãe foi ajudá-lo, e aquilo me fez sentir ainda mais raiva. — Olhe o que ela fez! Olhe meu braço! Demônio! Saia daqui, a culpa disso é sua! — ele se desvencilhar de Reina e voltou a cair no chão.

Eu me ajoelhei ao seu lado. Quando puxei a faca novamente, ele se sobressaltou, engolindo em seco e arregalando os olhos. Eugênio estava com medo. O interior do chalé estava estranhamente calmo, percebi que Magdalena parara de chorar e minha mãe optou pelo silêncio. Atrás de mim, ela mantinha a cabeça baixa. Como se não julgasse minhas escolhas, eu era o anjo com a espada do julgamento.

Apontei a lâmina na garganta dele.

— Vou comprar esse chalé e vou te dar mil moedas e cem centéis a mais se prometer que vai desaparecer. — disse. Eu queria matá-lo, mas mantive o olhar firme, e as mãos mais ainda. — Vá embora. Vá embora e não volte a dar as caras nunca mais, essa família será bem melhor sem você. Apenas vá. Levante e vá embora!

Ele obedeceu. Engoliu em seco e com certa dificuldade, engolindo o choro e com a mancha de sangue se alargando na camisa, ele se levantou e caminhou até a soleira da porta. De onde estava, lançou um olhar cheio de falsos sentimentos a Magdalena, que parecia não estar ali. Suas feições eram um misto entre o desprezo e a total apatia. Minha mãe libertou as lágrimas, mas não protestou.

Antes que Eugênio partisse, corri até o banheiro.

Do lado de fora, as cigarras chiavam e fiz questão de bater a porta para falar com ele sem que Magdalena ou mamãe escutasse nossa última conversa.

— Leve isto com você — entreguei o balde com o vômito em suas mãos. Dentro dele, um saquinho vermelho com moedas. Ele fez uma careta, satisfeito e enojado simultaneamente. — É um adiantamento para eu ter certeza de que não vai descumprir a sua parte do trato, e isso aqui é para você saber que não estou blefando. — tirei a luva da mão. A luz do luar fazia o besouro se destacar na pele como um grito o faz no silêncio. Eugênio arregalou os olhos e engasgou com a própria saliva. — Elas não precisam saber disso, mas você... — Calcei novamente a luva. — Eu não me importo com o que pensa. E ninguém nunca acredita no que sai da boca de um velho bêbado imundo.

Antes de ir embora, ele assentiu. E o alívio de nunca mais precisar chamá-lo de pai ou sentir um peso na consciência toda vez que me ressentia dele quase me fez flutuar até as estrelas. Dormi abraçada à minha irmã, com o ciciar da cigarra embalando a noite, e foi a primeira vez em anos que me senti tão viva.


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