⚔Capítulo 4


Uma semana.

Uma semana havia se passado desde o deplorável encontro com Midas, o elfo colecionador de tesouros — e torturador de jovens mulheres e crianças. Uma semana desde o pior dia da minha vida. Uma semana desde a noite que fui obrigada a vender minha alma ao diabo, e ainda não tinha recebido instrução alguma.

A deusa, com toda a certeza, me odiava.

Mas não estava em condições de reclamar. Midas concordou em me libertar em troca de trabalhar para ele ao lado dos Assassinos de Bear, ordenou que minha irmã fosse medicada e deixou que ela retornasse para casa junto comigo. Eu sabia que nenhum deles acreditava que eu conseguiria me manter seguindo as ordens de um elfo louco, mas estava satisfeita por não ter visto mais a cara de nenhum dos Assassinos de Bear em nosso chalé ou nas redondezas durante os últimos dias.

Eu sabia que eles estavam por perto, vigiando, aguardando. Eu conseguia sentir. Ao menos, eles tinham o bom senso de se manterem afastados e longe de vista — o que por ora era o suficiente.

Magdalena ainda choramingava de vez enquanto e não conseguia mais ficar em um cômodo sozinha por muito tempo. Mamãe não nos deixava sair de casa sem ela, o que dificultava muito todos os planos que eu tentava arquitetar para reunir moedas o suficiente e tentar escapar de uma vida de servidão — ou pior, me tornar uma assassina.

Eugênio ainda não tinha dado as caras em casa, e eu agradecia por isso. Desde que não nos envolvesse em mais nenhum problema, torcia para que desaparecesse para sempre. Nos vimos pela última vez na mesma noite que eu e Magdalena fomos escoltadas até o chalé.

Ele entrava no palácio de Midas quando eu e Magdalena subíamos na carruagem. Mikhail, que descobri ser o assassino com a tatuagem no pescoço e bandana vermelha na cabeça, ajudou Magdalena a se acomodar na carruagem e, em seguida, sentou-se no banco mais distante. O outro, de cabelo comprido e chapéu, passou por mim como se eu fosse um fantasma, sentou-se ao lado de Mikhail em silêncio e fingiu que estavam sozinhos na carruagem durante todo o trajeto.

Durante o caminho, eu descobri que os Assassinos de Bear tinham um código de conduta bem diferente dos outros criminosos do reino e que, nem sempre, eles eram contratados para matar pessoas. Mikhail falava bastante, e o outro não parecia se incomodar. Eram como irmãos. Assemelhavam-se com pessoas normais. Falavam como pessoas normais. E, ainda assim, eu sabia que poderiam me matar com apenas um movimento.

Mas aquela leveza ao redor dos dois quando estavam sozinhos e o jeito que interagiam um com o outro me deixou menos tensa. Enquanto eu fingia estar dormindo, consegui ouvir a conversa sem ser notada e pesquei informações aqui e ali, guardando tudo que me pudesse ser útil em um futuro próximo.

Não pude evitar de sentir um leve desapontamento.

Os temíveis e cruéis Assassinos de Bear pareciam tão presos aos seu "anfitrião" quanto eu. Não pareciam mais tão assustadores — ou distantes de minha nova realidade. Ainda assim, prendia a respiração algumas vezes, principalmente quando se lembravam da minha existência e lançavam olhares atentos na minha direção.

Ainda assim, os dias adiante me amedrontavam bem mais. Minha vida e a de Magdalena passaram a depender pura e somente da vontade de um louco. Eu não era boa na arte da sedução. Detestava combates e lutas, muito menos saberia como matar alguém. As minhas habilidades furtivas eram tão baixas, tão baixas que cogitei pedir a um dos quatro homens que nos matassem antes de chegarmos ao chalé.

Um arrepio me atingiu.

A carruagem estava menos instável do que a primeira viagem, quando nos levaram à força para o palácio de Midas. O balançar era sutil enquanto os três cavalos trotavam devagar e aquela viagem parecia uma brisa suave num dia quente de verão. A cabine era grande, a estrutura de madeira era estofada por dentro, havia uma pequena mesa entre os assentos e cortinas nas janelas.

Os assassinos falavam bem pouco, só se dirigiam a nós quando precisavam dar alguma ordem e, na maior parte das vezes, utilizavam um idioma diferente quando conversavam entre si, que soava como Shireano ou Latim. Mas eu tinha um bom ouvido e, mesmo não entendendo algumas palavras, consegui identificar seus nomes.

O ruivo de cabelos cacheados, que não estava presente, se chamava Moroslav e, aparentemente, era o mais velho dos quatro. O loiro, que também estava ocupado com outros afazeres para o anfitrião, era o Petrus. Suas feições angulosas e olhos cinzas realmente combinavam com o significado do nome. E o homem do chapéu preto de abas longas e cicatriz no rosto, era o Nikosoli. Ou Niko.

Eu fiz questão de memorizar o rosto e o nome de cada um deles.

Se ninguém até aquele momento conseguiu dar alguma informação sobre os Assassinos de Bear para a Guarda Real, isso poderia estar prestes a mudar em breve. E talvez esse pudesse ser o meu ás na manga para quitar a dívida, talvez essa seria a minha vingança. Então toquei o colar em meu pescoço com a ponta dos dedos e me encolhi. Talvez eu precisaria estar disposta a cair junto com eles.

Quando cheguei ao chalé, me senti aliviada ao ver que tudo continuava normal. Por enquanto, eu ainda era eu. Celine. E os planos para me livrar de Midas e seus assassinos ficaria para outro dia. Depois dos últimos dias sufocada com a atenção excessiva de mamãe, aproveitei os minutos que ela nos deixou livres no chalé para escapar até o centro da Capital. Eu vivia um pouco mais ao sul do que gostaria, mas não podia reclamar, não mais.

Enquanto seguia em direção ao norte pela trilha de pedras, me permiti admirar a paisagem e suspirei. Eu podia ter morrido naquela noite, ou pior, talvez eu e Magdalena fossemos realmente vendidas como escravas para as criaturas mágicas ao sul de Lymurian. Um arrepio percorreu minha espinha. Se algum dia precisasse partir, definitivamente sentiria falta daquelas árvores largas e da umidade no ar. Viver em Reinlynch era estar constantemente ouvindo o canto dos pássaros durante as manhãs frias e o som da cigarra ao entardecer, até mesmo pequenos goblins e duendes batiam nas janelas às vezes.

Meu pai costumava dizer que era um sinal de sorte. Quando ele ainda era um pai. Bufei, tentando espantar a raiva ao me lembrar do que fizera, ou melhor, do que não fizera. Ele não é mais meu pai. Vi nos olhos dele quando eu disse, jamais poderia retirar aquelas palavras. Jamais.

Fiquei aliviada quando a mistura de sons caóticos da praça me afastou daquela memória dolorosa. Avancei até o meio, onde os feirantes costumavam se reunir, onde era mais agitado, e tentei sondar os transeuntes. Meu objetivo era identificar objetos de valor e presas fáceis para minha primeira tentativa de furto. Precisava estar preparada quando Midas me chamasse, precisava ser útil.

Avistei um garoto que saltitava enquanto jogava uma bolsa de moedas para cima. Ele não aparentava ter mais de doze anos. Perfeito. Deslizei entre a multidão e joguei o xale que descansava em meu ombro sobre a cabeça enquanto me aproximava do garoto. Muitas jovens usavam lenços ou tecidos finos cobrindo o cabelo ou o rosto, então ninguém acharia um comportamento estranho.

Assim que me aproximei o suficiente do garoto para que sua cabeça estivesse a um braço de distância de meus dedos, deslizei até a barraca ao lado para que ninguém suspeitasse. Ele parou de pular e girou para trás. Em pânico, quase me joguei em cima da barraca de frutas. Ao mirá-lo pelo canto do olho, suspirei aliviada, o garoto não olhava para mim. Fingi, então, analisar a cesta de maçãs vermelhas, redondas e suculentas à minha frente. Quando virei outra vez, a criança já tinha ido embora.

Bufei, irritada. Atrás de mim, um riso abafado me fez girar para trás. Puxei o xale sobre a cabeça ainda mais para frente e olhei para trás. Nikosoli estava parado na minha frente, e não apenas isso. Ele estava rindo.

Eu demorei alguns segundos para reconhecê-lo.

No lugar do chapéu preto de abas longas da semana anterior, ele usava um manto azulado com capuz cobrindo o rosto quase completamente. Consegui ver o nariz pontudo e a cicatriz facilmente quando ele balançou a cabeça, e reprimi a vontade de correr. Além de causar um tumulto e atrair mais atenção do que poderia em minha situação atual, seria completamente inútil. Ele me alcançaria em dois minutos.

A postura de ovelha machucada podia enganar os demais, mas não a mim. Porque eu sabia a verdade, sabia quem ele era. Ele era o lobo.

Recuei alguns passos para trás, quase batendo as costas na estrutura de madeira da tenda. O feirante me encarou com a sobrancelha franzida, deixando um xingamento baixo escapar, e balançou os braços, mandando que eu fosse embora se não estivesse interessada em comprar suas maçãs. Eu me desculpei e tentei evitar Nikosoli enquanto deslizava para longe da barraca.

— Não deveria ter feito um acordo com ele — foram as primeiras palavras que Nikosoli disse, o sotaque ainda mais carregado do que eu me lembrava. Havia se passado apenas uma semana? Parecia uma década.

Ainda rindo, Nikosoli me seguia. Ele estava próximo o bastante para que o seu sussurro pudesse soar alto ao pé do meu ouvido e eu reprimi a vontade de socá-lo na cara. Aquela proximidade não era nenhum pouco bem vinda. Um arrepio me atingiu e fitei-o por cima do ombro. Nikosoli caminhava a poucos centímetros de mim, os braços cruzados, postura ereta, passos longos. Notei que usava luvas pretas de couro, escondendo a marca dos Assassinos de Bear logo abaixo do tecido.

Grunhi com a lembrança.

O que será que ele e os outros andaram fazendo na última semana? Matando filhotes, talvez.

Se estiver com pena de mim, pode resolver isso me dando algum dinheiro. Não sou tão orgulhosa e aceitarei qualquer coisa — disparei e, em seguida, desejei não ter feito isso. Nikosoli podia se parecer como os outros homens da cidade e até mesmo falar com aquele divertimento no olhar, mas ele não era comum.

Ele era um predador. Um lobo traiçoeiro. Um monstro. Pior do que isso, era um Assassino de Bear — Você também é uma de nós agora. Estava escrito em seu olhar, e eu odiei conseguir lê-lo.

A imagem dele derrubando a porta do chalé de repente ficou mais nítida. Peguem as garotas. Ele deu a ordem para os outros me atacarem. Ele me arrastou até Midas. Ele é o motivo de eu precisar ter feito uma oferta ao diabo, uma que eu jamais poderia pagar.

Ele.

O ressentimento e a raiva me atingiu como uma avalanche. Bom, talvez não fosse inteiramente culpa dele, e bem, bem lá no fundo, eu tinha plena consciência disso— mas era Nikosoli que estava ali na minha frente. Senti ódio outra vez e tal presença já estava se tornando um velho amigo. Não quis espantá-lo, porque minhas costelas ainda doíam, o olho esquerdo continuava roxo e não conseguia deitar com o corpo virado para o lado. Aquele ódio era um lembrete vivo, pulsante, que eu ainda tinha trabalho a ser feito.

Nikosoli pareceu entender minha mudança brusca de reação, pois hesitou em responder por alguns segundos. Eu estava prestes a correr — e dessa vez não hesitaria —, no entanto, assim que me virei, senti algo gelado envolver meu pulso. Eram dedos. Um arrepio subiu pela espinha e eu fechei os olhos, esperando o golpe vir.

Mas nada veio.

Desculpe — pediu ele, soltando meu pulso no instante em que me encolhi. — Não vim machucá-la, Celine. — Minha surpresa não passou despercebida. Logo ele endireitou a postura e aumentou a distância entre nós. — É claro que sei o seu nome. — acrescentou, como se não fosse importante.

Talvez realmente não fosse, não para ele, afinal.

— Então, por que está aqui? — perguntei. Talvez, se eu o irritasse o bastante, ele pudesse me matar logo e acabar com meu sofrimento. — Se não veio me arrastar de volta até Midas... Por que está me seguindo? Não tem que tirar crianças de suas casas e enviá-las como escravas para prostíbulos às Sandilhas hoje? — provoquei, voltando a caminhar.

Pude ver a expressão de Nikosoli ficar sombria enquanto me acompanhava através de seu reflexo na coleção de espelhos exposta na tenda da frente. Escondi o sorriso usando o xale para cobrir a boca.

— Não fazemos isso.... Eu não... — ele se ofendeu. — Eu não faço isso!

Revirei os olhos.

— Todos sabem o que realmente acontece no sul de Lymurian. — disparei, virando-me para ir embora. — Talvez devesse rever esse seu código infeliz porque ele é uma merda.

Depois disso, soube que seria melhor se eu passasse os próximos anos calada. Os olhos de Nikosoli ficaram sombrios, a boca formando uma linha reta. Talvez ele não precisasse de uma ordem de Midas para acabar com a minha vida, talvez eu e minha estupidez incalculável fossem incentivo o bastante.

— Pensa que sabe tudo só porque ouviu parte da nossa conversa? — ele riu. — Somos Assassinos, Celine. Trabalhamos nas sombras e no silêncio, acha mesmo que eu e Mikhail conversaríamos na sua frente se deixá-la nos ouvir não fosse a intenção desde o começo?! Achei que fosse mais esperta do que isso.

Nikosoli balançava a cabeça, tentando desviar dos transeuntes que se infiltravam entre nós para bisbilhotar a conversa. Inesperadamente, ele avançou na minha direção e me puxou pelo braço, salvando-me de um bêbado que cambaleava sem olhar para frente. Aquilo me deixou com mais raiva ainda.

— Não precisava fazer isso — cuspi. — Eu não quero a sua ajuda.

Eu não iria agradecê-lo. Nikosoli apenas me ignorou e reposicionou sua máscara de indiferença, estreitando as sobrancelhas como se tentasse enxergar algo que se escondia atrás das tendas de ferragens.

— Foi bem esperta conseguindo mais tempo para tentar fugir, mas sugiro que não faça isso. — congelei, e ele mostrou os dentes. Nikosoli estava bem perto agora, poderia me apanhar pelo ombro e me carregar para longe outra vez se quisesse. Mas ele não fez isso. — Não pense que Midas é tolo. Acha que deixaria a nova aquisição dele andando livremente por aí? Temos ordens para segui-la e não tirar os olhos de você.

Nikosoli se calou, mas eu não desviei o olhar. Não podia mostrar fraqueza. Precisei me esforçar para engolir a saliva, a garganta pareceu fechar, de repente. Aquisição. Era assim que ele me via. Um objeto. E pensar no que Midas faria com Magdalena e minha mãe se eu tentasse desobedecê-lo fez uma lágrima brotar no olho esquerdo.

Elfos eram conhecidos em toda Lymurian por sua falta de humanidade, a crueldade era uma parte bem característica de sua natureza. Ainda assim, eram criaturas que se importavam com a verdade e a lealdade acima de todas as outras coisas.

— Sabe o que ele quer de mim? — indaguei, a voz baixa sambava entre as sílabas. Gostaria de poder ter soado menos insegura.

Nikosoli escolheu o silêncio. Eu não me surpreendi.

A resposta não importava. De todo o jeito, Midas esperava que eu falhasse. Soube disso assim que vi seus olhos mudando de cor, brilhando de excitação diante minha proposta. Ele não se importava com a dívida ou com as tarefas idiotas que mandaria eu executar. Ele queria o espetáculo, o drama. Aquele era um jogo de virtude, e Midas queria testar se meu desespero iria me levar a quebrar a promessa como meu pai fizera e deixar Magdalena para trás.

Eu senti meu olho queimar ao pensar em meu pai, mas não iria chorar ali.

— Está certo em uma coisa. — disse e levantei a cabeça apenas para encontrar um Nikosoli de cenho franzido. Fitar aquela cicatriz de tão perto me dava arrepios, mas eu não recuei. — Eu não sou criança, mas a minha irmã é. Ela não tem culpa de nada e vocês não se incomodaram em machucá-la enquanto ela berrava, sangrava e se debatia. Não pense que me conhece só porque passou dois segundos me vigiando, não faria nada que pusesse minha irmã em perigo.

Eu não percebi que estava gritando e, quando me dei conta, já era tarde demais. Todos os feirantes próximos e demais fregueses que caminhavam em filas ao nosso redor olhavam para mim e Nikosoli com cara de espanto e curiosidade. Imediatamente, fechei a boca. Nikosoli me segurou pelo braço, estalou os dedos com a mão livre e, em um piscar, desaparecemos entre as formas negras que nos envolveram

Ressurgimos nas sombras de um beco escuro qualquer menos de um segundo depois. Um gritinho assustado escapou assim que a luz rompeu a escuridão e eu saltei para trás, criando o máximo de espaço possível entre nós dois. Não eram apenas boatos, então. Eles realmente podiam andar nas sombras.

E desaparecer nelas também.

— Nunca mais faça isso — pedi, tirando o xale da cabeça. As minhas mãos tremiam. — Pensei que... Pensei...

Pensei que ia me matar.

Minha respiração se tornou ofegante. O coração batia acelerado, consistente em suas batidas irrefreáveis. Conseguia ouvi-lo sob o alvoroço caótico que tomava a cidade a poucos metros de nós como se desse ritmo ao caos da feira. TUM. TUM. TUM. TUM. Ele quase escapava pela garganta. Até mesmo a simples tarefa de inalar o ar se tornou dolorosa; a atmosfera ao redor parecia densa, venenosa; respirar era como ser golpeada em cheio no peito.

Eu precisava me apoiar em algo ou, de certo, me espatifaria no chão sujo daquele beco vazio. Ouvi uma voz me chamar. Nikosoli, ele ainda estava ali.

Esquivei de suas mãos.

— Ei, ei... Calma. Eu disse que não vou machucá-la— Nikosoli tirou as luvas, deixando-as cair no chão, movendo as mãos de baixo para cima, como quem tenta se aproximar de um animal ferido. A marca dos Assassinos de Bear estava visível no dorso da mão. Desviei o olhar imediatamente. Nunca mais queria ver aquele símbolo. Nunca mais.

Mas a lembrança de estar carregando o mesmo símbolo pendurado no peito sob as camadas de roupa era como ter um balde de água fria derrubado por minha cabeça em pleno inverno.

— Eu estou bem — assegurei.

— Achei melhor trazê-la para um lugar com menos pares de olhos nos cercando. — explicou Nikosoli. — Pode voltar a gritar comigo se quiser.

Não tenho certeza se foi pelo nervosismo ou se minha sanidade já tinha me abandonado àquela altura, mas tudo que consegui fazer foi rir. Eu ri até meu estômago começar a doer e lágrimas brotarem nos olhos. Nikosoli continuou parado, em silêncio, esperando que eu terminasse.

Aquilo me deixou furiosa.

— E eu devo acreditar em você? — ralhei, tão ácida quanto ele merecia. — Devo acreditar que não vai me machucar? — Nikosoli não respondeu. — Por que não dá uma boa olhada no meu rosto? — eu apontei para os hematomas. Ele seguiu o indicador com a cabeça. — Acha que eu sou tão tola a ponto de confiar em alguém como você?

Nikosoli não se moveu. Postava-se ereto, como uma estátua; os olhos fixados em mim, observando-me como se pudesse enxergar as veias e os ossos sob minha pele. Estávamos a meio metro de distância, mais perto do que eu gostaria, mas longe o bastante para que eu conseguisse respirar sem me sentir sufocada. Me surpreendi quando Nikosoli abaixou a cabeça e recuou.

Ele deixou um suspiro escapar antes de me encarar pela segunda vez, a postura menos confiante, ombros caídos e olhar desistente.

— Os Assassinos de Bear seguem ordens sem questionar. Temos regras. Um sistema... mas não somos monstros, Celine. — ele suspirou ao dizer e não parecia feliz com isso. Se era verdade ou não, não me importava. Nikosoli mexia as mãos, inquieto. Fechou o punho e depois abriu. — E eu não sou violento como meus irmãos.

— Vocês são irmãos? — perguntei, os olhos arregalados. Por algum motivo, não era algo que eu esperava ouvir.

Nikosoli moveu os ombros, indiferente.

— Quando importa, sim. Somos como uma família — ele explicou, encostando o corpo na parede oposta. Nikosoli estava com uma postura mais relaxada, o joelho esquerdo levantado com a sola do pé pressionando a parede. — Alguns laços são mais profundos do que o sangue.

— Assassinos com senso de honra e família, — debochei — está aí algo que não se vê todos os dias. — Nikosoli revirou os olhos, mas não pareceu se ofender. — E quantas quebrou?— indaguei sem qualquer esperança de Nikosoli responder. E senti vontade de rir quando Nikosoli arqueou a sobrancelha. — Regras. Você disse que os Assassinos de Bear seguem ordens e regras. Quantas regras já quebrou?

Ele finalmente pareceu entender, não muito inclinado a dividir segredos comigo. Não sabia dizer se eu estava realmente interessada ou apenas criando uma distração. Olhei para a minha direita e demorei para identificar o ponto de luz ao final do corredor.

— Suponho que vir me intimidar e me tirar da vista dos outros não tenha sido ordem de Midas. — insisti. — Quer dizer, vocês também podem agir sem que ele dê uma ordem específica?

Nilosoli pareceu pensar sobre minha pergunta e um sorriso triste se formou no canto do lábio. Desviei a atenção para o outro lado, nada. Apenas sombras e uma muralha mais alta do que minhas habilidades me permitiam escalar.

Direita, então, eu devia correr para a direita.

Quatro. Eu já quebrei quatro regras. — Nikosoli enfim respondeu, suspirando, e eu arregalei os olhos, genuinamente chocada. Não pensei que ele fosse responder. — E não. Midas não ordenou que eu viesse até aqui ou se quer imagina que vim vê-la. Celine, apenas quero avisá-la que...

Levantei a mão, interrompendo-o.

— Não estou interessada nos seus avisos. — eu não estava mais tentando atuar para atingi-lo, minha irritação tinha alcançado um estado incontrolável. — Não tenho ideia do porquê está aqui, mas se não trouxe uma ordem de Midas, pode voltar para onde veio. E informe ao caro anfitrião que não tenho qualquer intenção de fugir, não sou tola como... como... — não conseguia mais dizer meu pai em voz alta.

— Sim, eu vim porque eu quis. — Nikosoli se apressou em dizer. Não acreditei nele, mas ri mesmo assim. — Para alguém com uma corda no pescoço, você parece se divertir bastante. — ele cuspiu, e eu estreitei os olhos, semicerrando os punhos. — Será que você consegue ser menos rude?

— Será que consegue ser menos babaca? — aquele ponto, já não me importava quem ele era ou o que poderia fazer comigo. — Eu não pedi por ajuda, apenas vá roubar algum fazendeiro moribundo e me deixe em paz!

— Eu não sou ladrão. — a expressão de Nikosoli era rígida, séria, como se eu tivesse insultado-o de alguma maneira. Não consegui segurar a risada. Percebi que às vezes me esquecia que ele era perigoso, mas era impossível não achar graça.

— Sério? — limpei as lágrimas que brotaram, entre uma risada e outra. — Não há problemas em sequestrar, ferir e matar, mas furto está fora de questão. — finalmente consegui parar de rir. — É uma de suas regras? Mate o homem, mas não tirai-vos suas galinhas!

Nikosoli revirou os olhos.

— Você ri e fala muito para alguém que estava calculando rotas de fuga a poucos minutos. — Nikosoli bufou e avançou na minha direção, tentando me intimidar. Não movi um só músculo. Os olhos dele estavam mais pretos do que da última vez. Sombrios. Vazios. Exatamente como os meus.Não tem mais medo de mim?

Aquela foi a primeira vez que eu o vi de verdade, os olhos de lobo selvagem faminto fitando-me de volta.

Nikosoli me olhava como se procurasse por alguma coisa, sondando cada centímetro do meu rosto. Abaixei a cabeça e ele se afastou lentamente. Meu coração estava batendo normalmente, nada parecido com as batidas aceleradas em pânico de uma semana atrás.

— Não. — respondi e suspirei, sentindo a insegurança me dominar pela primeira vez naquela manhã. Eu era uma gazela indefesa e encurralada. — Acho que, na verdade, estou esperando que me mate. — disse, e era a primeira vez que eu falava em voz alta o que continuava martelando minha mente.

— Porque se eu te matasse, tudo estaria acabado. Não haveria acordo com Midas ou a responsabilidade de cuidar de sua família, você estaria livre. — ele concluiu e eu concordei com a cabeça.

— É patético, eu sei — suspirei.

— Posso fazer isso. — ele disse como se estivesse me concedendo um favor, como se eu tivesse acabado de pedir para que me entregasse uma tigela de ervilhas da prateleira de cima. Com uma naturalidade mórbida. — Posso conceder seu desejo e matá-la, Celine. Afinal, concordo que a morte seria bem mais rápida e misericordiosa do que uma vida de servidão.

Pisquei, sem acreditar. Nikosoli era firme e, ainda que seu rosto estivesse a poucos centímetros de mim, seu olhar era vago. Distante.

— Mas o que devo fazer com sua mãe e irmã? Deseja que eu acabe com o sofrimento delas também? — Nikosoli perguntou. Deu um passo à frente, nossos narizes quase se tocando, o olhar rígido.

Era como encarar um poço vazio de escuridão sem fim.

Eu balancei a cabeça, desviando minha atenção para o chão. A terra e os cascalhos sob meus pés incomodavam.

— Não. —consegui segurar o choro, não desabaria na frente dele. — Não faça nada. Eu... eu vou conseguir.

Nikosoli continuou em silêncio, ao passo que eu demorei um pouco mais para levantar a cabeça de novo. Não estava com vontade de ficar olhando para ele, muito menos de continuar ali. Cheguei a pensar que Nikosoli tinha ido embora quando a voz áspera cortou a escuridão.

— Amanhã será sua cerimônia de iniciação. — ele disse. Estava calmo e a voz soou tão baixa que pensei ter imaginado, que aquelas palavras jamais tivessem saído de sua boca. Mas ele continuou. — Depois disso, você se tornará oficialmente uma de nós. E eu não poderei ajudá-la.

Eu não sabia o que dizer. Não preciso da sua ajuda, pensei. Mas não consegui responder. Não consegui falar qualquer coisa, porque o tom preocupado em sua voz me deixou inquieta e desconcentrada. Porque eu não tinha mais ninguém com quem contar. Porque ele era o único que sabia o que realmente estava ao meu aguardo.

Não se deve repudiar o que se teme... — Nikosoli cantarolou, baixinho, quase como em um sussurro.

Pois o medo empunha a lâmina que fere o coração — conclui, levantando a cabeça. — É um poema um tanto irônico, não acha?

— Não. É muito pertinente, na verdade. — Nikosoli sorriu e, curisoso, arqueou a sobrancelha. — Você conhece a história por trás do poema?

— Todos conhecem. É a história do lobo e o menino que contava mentiras. — disparei.Uma vez o menino disse a verdade, mas ninguém acreditou que o lobo viria. E todos morreram. — expliquei. Como se esperasse por aquela observação, Nikosoli exibiu os dentes outra vez.

Conveniente.

Todos morreram? — ele perguntou. Nikosoli criou mais espaço entre nós, vestindo as luvas sem se preocupar em me vigiar. Eu poderia ter fugido, mas não me movi. — Talvez seja uma questão de perspectiva, não é?

Nikosoli sorriu.

Depois de acenar com a cabeça e sorrir misteriosamente, Nikosoli desapareceu nas sombras antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Recuei até meu corpo bater na superfície fria da parede de pedras e deslizei até cair sentada no chão. E, de repente, senti um vazio me abater. Nikosoli estava mesmo oferecendo ajuda? Um Assassino de Bear com a consciência pesada senso de moral deturpado estava tentando me ajudar?

Por quê?

Minha cabeça parecia querer explodir em milhões de pedaços, e eu quase implorei a Deusa para que o fizesse. Que explodisse tudo, e me levasse junto com os estilhaços. Ao final do dia, já não conseguia fechar os olhos sem ouvir ou ver o rosto de Nikosoli. Amanhã eu me transformaria em alguém como eles, uma Assassina de Bear, e não teria mais como voltar atrás. No fundo da mente, ouvia uma vozinha repetir:

E todos morreram.

E todos morreram.

E todos morreram.

Mas não o lobo.


     

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