⚔ Capítulo 29
O tempo é um rei amargo e cruel, que gosta de governar seu reino de tortura com um imenso sorriso no rosto. Ele se delicia com o nosso sofrimento e não se apressa. Não. Ele é sereno, frio, lento. E foi assim que aquele dia transcorreu, o tempo se arrastando como um governante ganancioso, absoluto de seu controle. Enquanto o sol se escondia atrás das cadeias montanhosas, eu desfilava com o meu pomposo vestido pelo castelo.
Midas caminhava ao meu lado em silêncio enquanto avançávamos pelo castelo até a ala ao norte. Os corredores, como sempre, estavam vazios. Era quase como se quisessem que nós bisbilhotássemos.
As janelas estavam abertas e o frio me fez encolher. Por algum motivo, pensei no príncipe. Demetrius se esforçou muito para se certificar de que eu não destruiria nenhum de seus volumes inestimáveis do acervo real. Parecia estranho que não se importasse com suas esculturas.
— Está pensando em seu príncipe encantado? — cantarolou Midas, os olhos semicerrados em minha direção. Estava tão imersa em meus pensamentos que nem mesmo percebi que havíamos parado. Midas torceu o cenho e inclinou a cabeça, as madeixas laranjas pendendo até o meio da barriga. — Está estranhamente quieta hoje, Celine. O que houve? O príncipe mordeu a sua língua ontem?
Arregalei os olhos.
— O quê? — o pânico não me permitiu pensar em uma resposta.
Midas abanou as mãos.
— Não se esforce tanto, querida. Sim, é claro que eu sei. Sei de tudo, não se esqueça. — Midas voltou a sua postura elegante e tradicional, como se tivesse acabado de perder todo o interesse. — Tente abrir esta porta.
Voltei-me para onde Midas apontava. Era uma porta comum, como qualquer outra do castelo. As maçanetas, no entanto, pareciam diferentes. Mais grossas, douradas e brilhantes. Fiz o que ele pediu. Estiquei a mão e assim que meus dedos tocaram a superfície gelada e metálica das aldravas, um arrepio percorreu meu corpo. Recuei imediatamente.
— Não é mais fácil procurarmos por uma chave? — me apressei, escondendo as mãos sob o emaranhado da saia.
Midas levou o indicador ao queixo, pensativo.
— Não existe chave. — ele suspirou. — Curioso. Sentiu algo quando encostou na porta?
— Não — menti, e esperei que apenas uma resposta curta fosse o suficiente para convencê-lo. Midas se curvou até que seus olhos estivessem alinhados ao meu.
— Eu não consigo ver através da magia que cerca esse lugar, Celine. Você sabe o que isso significa? — balancei a cabeça. Midas bufou. — Recebemos um pedido de socorro falso, meus poderes não conseguem ultrapassar a barreira que já existe nesse lugar, o terrível monstro não apareceu e, honestamente, duvido que sequer exista...
— Está dizendo que caímos numa armadilha?
Midas esticou a coluna como um gato e, em seguida, levou as mãos até os cabelos. A medida que seus dedos entrepassavam os fios, um tom violeta substituía o laranja.
— Estou dizendo que tem algo errado. — Midas estala os dedos e uma bandeja prateada surge sobre suas mãos. — Preciso que leve isto ao príncipe Demetrius.
— O quê? Por quê? — eu quis dizer não, definitivamente não. Não pretendo vê-lo, obrigada! Mas estiquei a mão para apanhar a bandeja.
— Dei um jeito para que a Sra. Dorthie e Marisa saíssem do castelo. Temo que as coisas fiquem um pouco assustadoras a partir de agora... Então... bom, o príncipe não jantou esta noite e eu não vou servi-lo. Você vai.
Revirei os olhos.
— Você acabou de dizer que não existe monstro nenhum, por que acha que algo assustador vai acontecer? Não faz sentido!
Midas estreitou a sobrancelha ao me encarar. O olhar frio e rígido o fazia parecer um homem cruel, exatamente como na noite em que nos conhecemos, quando eu e Magdalena fomos arrastadas até seus pés. Aquele olhar me embrulhou o estômago. Lutei contra o instinto de abaixar a cabeça e recuar.
— Eu não consigo ler através dessa magia, mas graças ao nosso pacto, apesar de mentir para mim, eu posso ler você. Sei que a coisa sentiu a sua presença quando tocou na porta e você pôde senti-la de volta. Isso significa que você tem algum poder, Celine. — Midas abriu um sorriso. — A criatura pode não existir, mas algo reagiu a sua presença. Isso não é assustador?
Eu sabia que Midas não se importava realmente comigo ou minha segurança, mas a certeza me atingiu como um raio quando ele estalou os dedos e desapareceu. Algo reagiu a sua presença. Isso não é assustador? Como ele pôde dizer isso e desaparecer? Como pôde me deixar sozinha naquele lugar enorme?
Eu deveria estar com medo, sim. Talvez. Mas aquela situação me deixou em um novo estado de raiva. Marchei o mais rápido que pude até o escritório de Demetrius. Eu sabia que não deveria entrar lá sozinha, mas a ideia de procurá-lo em seu quarto era um pouco íntima de mais. Preferi evitar o incômodo e verificar primeiro o escritório.
Rezei durante todo o caminho para que ele estivesse lá.
— Trouxe a sua janta — disse assim que Demetrius abriu a porta do escritório. O alívio de encontrá-lo ali me fez sorrir também.
O príncipe olhou para a bandeja e depois levantou a cabeça, abrindo espaço para que eu passasse. Prendi a respiração a cada passo, soltando o ar apenas quando o calor do corpo dele já estivesse a uma distância segura.
— Você já comeu? — ele perguntou enquanto caminhava até sua poltrona. Percebi que, de fato, era um príncipe organizado, pois todo o nosso (meu) trabalho ainda estava preservado com quase perfeição. Balancei a cabeça positivamente em resposta à pergunta. — Ótimo! — ele sorriu outra vez. — Seria rude fazê-la me assistir comer se estivesse com fome.
— Quer que eu o observe enquanto come? — minha sobrancelha arqueou automaticamente.
— É muito comum. Nós raramente ficamos sozinhos, membros da corte, digo, sempre temos um ou mais acompanhantes em mais situações do que são necessárias — ele explicou.
— Então príncipes e reis não podem ser deixados a sós com suas refeições?
— Podem. — ele bebericou a taça de prata com mais elegância do que eu jamais sonhava possuir um dia e depois cortou o pedaço de frango. Parecia macio e suculento. — São apenas velhos costumes. Não é exatamente uma regra, Celine.
O jeito que ele proferia meu nome, como se as letras dançassem em sua língua, deliciando-se ao sair, e seu olhar vibrante me fizeram tremer.
— Gosta tanto assim da minha companhia? — provoquei. Precisava sair dali, precisava não ficar presa em um cômodo com Demetrius.
— Sim — ele não hesitou. E mastigou mais um pedaço de frango, provando um pouco da batata assada também. O garfo de prata posou ao lado do prato. — Eu gosto. E não quero mais comer sozinho, é muito deprimente.
Abaixei um pouco a cabeça, para que não visse o rubor em minhas bochechas. Não precisava de uma humilhação daquelas em minha lista de tristeza e sofrimento. Ele era o príncipe. O príncipe! Eu deveria saber o meu lugar, deveria... mas meu coração batia agitado ainda todas as vezes que ele sorria. E como se soubesse o que eu pensava, Demetrius parou de comer, com uma expressão séria, o olhar enrijecido. Apenas me encarou. Mudo.
— O que vai fazer depois? — ele perguntou.
Pensei um pouco, demorando para entender a pergunta. O choque totalmente nítido em meu rosto. Definitivamente não esperava ouvir aquelas palavras.
— Preciso ir à biblioteca.
— Faça isso depois, eu quero te mostrar...
Eu o interrompi.
— Não. Eu não posso ficar aqui. — a expressão facial dele mudou, de repente, mas não consegui perceber o que era. No mesmo instante ele exibiu um largo sorriso.
— Está bem, então. — bateu as palmas e só então percebi que ele comera só metade da comida, deixando quase tudo intacto no prato. — Ao menos... deixe-me acompanhá-la.
Foi o que ele disse. E mesmo sob incontáveis protestos meus, não fui ouvida. Afinal, ele era o príncipe. Ao chegarmos na biblioteca, Demetrius se recusou a ir embora. Eu já havia desistido de expulsá-lo quando ouvi um barulho vindo do corredor. O príncipe virava as páginas de um livro qualquer, apoiado com as costas nas paredes. A perna cruzada e o corpo levemente inclinado para trás. O cabelo caía um pouco no rosto, estava mais comprido em baixo, na altura do pescoço.
Com o livro tão rente ao rosto, não conseguia ver seus olhos, mas sabia exatamente que cara fazia quando estava concentrado. A realização daquilo fez meu coração dar um salto e eu segurei a risada de nervoso que ameaçava escapar.
Crack.
Demetrius abaixou o livro. Seus olhos cinzentos sob a penumbra eram tão escuros quanto os meus.
— Ouviu isso? — ele perguntou.
O barulho vinha do lado de fora. O príncipe não esperou por mim, fechou o livro em um único baque, deixando-o cair sobre a mesa antes de correr até a porta. Lufada de ar fresco invadiu a biblioteca, levantando a poeira acumulada na prateleira e móveis mais próximos à entrada. O silêncio nos atingiu. Demetrius estava parado ao pé da porta, segurando ambas as maçanetas com o braço esticado, fitando o corredor vazio.
Estiquei o pescoço para enxergar melhor. Algo parecia mexer atrás dele. Um estrondo ainda maior ecoou pelo corredor, como se dezenas de cacos de vidro se estilhaçassem no chão.
Vi uma sombra se aproximando, no final do corredor.
— Midas? — chamei, e o vulto correu para a ala leste, desaparecendo atrás das pilastras. O príncipe virou a cabeça por cima do ombro, mirando-me com uma careta estampada no rosto, a sobrancelha arqueada. — Acho que há algo errado.
As palavras voltaram a se repetir: Algo reagiu a sua presença. Isso não é assustador? Filho da puta!
— Talvez seja a Sra. Dorthie — o príncipe sugeriu. Ele não sabia.
— Ela não está no castelo, alteza. — o príncipe me segurando. Eu estava prestes a cruzar a porta e seguir a sombra, mas seu aperto ao redor de meu pulso era forte. — Me solte.
— Não seria inteligente deixá-la ir sozinha.
— Mas vi alguém... alguma coisa.
— Deve ter sido apenas as sombras das cortinas balançando — sugeriu, mas nem mesmo o príncipe parecia convencido pelas próprias palavras.
Celine...
Ouvi meu nome. Um arrepio percorreu minha espinha até a base da nuca, eriçando todos os pelos. Aquilo era um sinal de perigo, mas também um convite. Ouvi a mesma voz em meu primeiro dia naquele castelo, a voz da Dama do Lago. Eu precisava ir. Estavam me chamando. Estavam me chamando.
Então, comecei a andar.
— Celine... — era a voz de Demetrius.
Só percebi que o príncipe estava parado ao meu lado quando chegamos ao final do corredor. Antes de girar para a direita, em direção à ala leste, senti um vento frio soprar no meu rosto. Quando me dei conta, o vulto negro estava bem na minha frente, pairando de um lado para o outro, sussurrando meu nome.
— Celine — a voz do príncipe falhou dessa vez. Boquiaberto, pálido e sem reação. Ele olhava para o mesmo lugar que eu.
— Você pode vê-la? — perguntei, virando-me para ele. O príncipe mantinha-se rígido, com os olhos grudados à frente, como se estivesse tentando enxergar algo muito além das paredes do castelo. Mas ele concordou, balançando a cabeça sem conseguir vocalizar nada enquanto inebriado pelo medo.
Eu não tinha medo, conhecia aqueles olhos, aquela forma fantasmagórica. Era a Dama do Lago.
Celine... Precisa ver. Precisam saber...
Ela chamava, a voz ecoando como um sussurro em minha mente.
Sua figura sombria e sinistra começou a se afastar, dançando suavemente pelo piso, flutuando envolta em bruma cinzenta, amarga e vazia. Um frio terrível me atingiu, como se eu tivesse outra vez me afogando na água gelada do lago. Fique com o príncipe.
— O que é essa coisa? — sibilou o príncipe, a voz tremeu um pouco ao dizer, mas a respiração estava mais tranquila à medida que a Dama do Lago se afastava. — O que ela quer?
Continuei encarando, sentindo o formigamento na palma das mãos aumentar. Ela chamava por mim, continuava repetindo meu nome. Será que ele também ouvia alguma coisa?
— Ela está me chamando — disse. — Acho que precisamos segui-la. Quer nos mostrar alguma coisa.
— Ela está falando com você? — Demetrius perguntou, ainda com os olhos voltados para frente. Eu não quis respondê-lo.
Talvez por tudo aquilo ter acontecido um pouco rápido demais, talvez pelo frio mortal cobrindo meu corpo ou a presença de Demetrius, não pude identificar o motivo real, mas minhas pernas tremiam sem parar. E eu não consegui dar nenhum passo à frente. A Dama do Lago continuava flutuando, apenas a alguns poucos metros de nós, chamando por mim, esperando.
Eu ainda não havia lhe dado nenhuma resposta e o príncipe fez o que eu jamais esperaria que ele fizesse.
— Vamos — ele disse, e segurou minha mão, guiando o caminho. A Dama do Lago, totalmente apática, continuou clamando por mim, o nome soando mais baixo e distante a cada passo que nos aproximávamos dela.
Celine, venha, preciso mostrar. Precisam ver.
A Dama do Lago avançava rumo a ala norte, cruzando o mesmo caminho que eu e Midas fizemos apenas algumas horas atrás. Eu sabia exatamente para onde estávamos indo. Seu vulto cruzou uma porta, a última do corredor, e então afundamos no completo e mais vazio silêncio. Estávamos sozinhos outra vez.
— Ela foi embora — disse, minha voz falhando, soando bem mais fina do que o normal. — Não consigo mais ouvi-la.
O príncipe encarou a maçaneta por alguns segundos, sem tirar os olhos dali. Era uma porta comum, igual a todas as outras do castelo. Mas não era qualquer porta. Eu estava ao seu lado, um pouco mais atrás, espiando por cima do ombro. Ele lançou-me um olhar de canto e o encorajei a abrir.
— O que acha que ela quer nos mostrar, Celine? — perguntou o príncipe. A voz dele estava firme e aveludada como de costume, e não mais com medo. Seu olhar, no entanto, tão cinza quanto um céu nublado, parecia perdido. Ele era o segundo na linha de sucessão, um príncipe do Reino das Estrelas. Naquele momento, no entanto, não parecia tão imponente quanto seu título. Era só alguém com esperança e medo, beirando os vinte e tantos anos, com um futuro desconhecido e cheio de aventuras pela frente, alguém que poderia ser qualquer um e ninguém ao mesmo tempo. Alguém com um pouco mais de peso sobre os ombros do que conseguia suportar.
Suspirei.
— Iremos descobrir logo — disse, arrependendo-me logo em seguida.
Assim que o príncipe abriu a porta, um enorme espaço, totalmente entregue à escuridão profunda, se revelou diante de nós. Não havia janelas, lamparinas ou qualquer outra fonte de luz. Demorou um pouco até percebermos que a escuridão estava envolta por uma bruma opaca e inodora como uma nuvem de fumaça. Lentamente, as nuvens tomaram formatos. Ela tinha rosto, corpo e olhos. Elas tinham nomes e estavam enfileiradas uma ao lado da outra.
Eram dezenas. E a vida parecia ter sido sugada de seus corpos. Homens e mulheres, todos entrelaçados à bruma negra que dançava ao seu redor. Eles mantinham as expressões de horror em suas faces congeladas como se o tempo, para eles, tivesse parado. Os cadáveres estavam de pé, veias verdes saltavam da pele marmoreada em cada canto que os olhos podiam alcançar.
Alguns deles usavam o uniforme da corte, outros a armadura típica dos membros da guarda real, com ombreiras, escudo e capacetes de metal. Homens altos e musculosos, homens franzinos, idosos, animais, mulheres de todos os tamanhos. Todos haviam sido transformados em estátuas de sombras.
Um frio subiu minha espinha.
E entendi porque não havia mais ninguém além da Sra. Dorthie trabalhando no castelo.
Todos os outros estavam mortos.
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