⚔ Capítulo 27
O ESCRITÓRIO DO príncipe estava limpo em comparação com o estado deplorável no qual se encontravam os demais cômodos do castelo. Alguns papéis dobrados, amassados e recortados haviam sido espalhados sobre a mesa principal num redemoinho amontoado. Se eu precisasse adivinhar, diria que sofreram um terrível acidente durante ataque de raiva.
As janelas estavam empoeiradas. Nas bordas superiores, teias de aranha contra o vidro e a madeira. Elas também se formaram no teto, nos rodapés e debaixo dos mezaninos. No entanto, não estávamos numa situação tão difícil de controlar. Instruí Demetrius durante a limpeza e me surpreendi com a sua obediência silenciosa. Conseguimos fazer o trabalho num ritmo rápido o bastante para terminarmos de arrumar tudo antes do sol se pôr totalmente.
O príncipe Demetrius auxiliou na organização dos volumes de alguns livros que haviam sido removidos da estante e também na hora de organizar a papelada em cima da mesa. Foi muito educado em me explicar como gostava de manter a organização.
— Eu não trabalho para você — lembrei-o. Demetrius mostrou o sorriso habitual.
— Não pensei nessa possibilidade nem mesmo por um segundo.
Controlei-me para não revirar os olhos em alguns momentos, principalmente quando o príncipe repassava instruções óbvias. Mas, no geral, a presença dele ali foi surpreendentemente agradável. A mensagem estranha da Dama do Lago sempre me vinha à memória quando Demetrius se aproximava, ou mesmo quando o via de longe, cruzando o corredor do castelo. No início, a ideia de ficar perto dele era aterrorizante.
No entanto, depois de algumas longas horas em sua companhia, senti um alívio repentino. Enquanto o príncipe observava e avaliava cada movimento meu, meu medo se dissipou. Já estava amortecida completamente e os comentários irônicos que Demetrius soltava vez ou outra acabavam melhorando meu humor muito mais do que eu esperava ser possível. Além disso, não me sentia mais tão nervosa ou incomodada com a sua presença.
— Papéis com carimbos vermelhos não podem ser abertos em nenhuma circunstância, também não os remova dos lugares onde eu os deixei, mesmo se tiver caído no chão ou aos pedaços. — ele cantarolava, feliz, enquanto eu batia a poeira do tapete na mureta da varanda.
Demetrius tossiu quando o vento trouxe parte da poeira em nossa direção e eu não pude controlar a risada. O príncipe me olhou com uma careta raivosa e eu assumi minha postura de serva obediente após me recompor.
— Devo chamar as autoridades? — arrisquei. — Está com cara de quem está considerando mandar alguém para o calabouço.
Demetrius cruzou os braços.
— Eu sou a autoridade. — Ele desfez a postura, alisando o cabelo.
— Está bem — concordei. — Não entrarei nesta sala sem permissão ou depois das quatro horas da tarde a menos que esteja acompanhada e não tocarei em nada que você mexer a menos que me peça para fazer isso.
Ele sorriu, satisfeito.
— Ótimo. — disse, apanhando o tapete das minhas mãos. — Dê-me isto. É pesado demais para você. Se continuar vai acabar deixando que caia bem em cima das roseiras e destruirá meu tapete. — o príncipe Demetrius assumiu meu trabalho de limpar o tapete e me empurrou para dentro do escritório outra vez. — Esvazie as gavetas do lado direito enquanto isso.
Fiz o que ele mandou.
Andei lentamente até a longa mesa de madeira e abri a primeira gaveta. Eu não estava preparada para o que encontrei ali, e tenho certeza de que deixei algum som escapar, porque Demetrius voou na minha direção, parando bem ao meu lado com um olhar preocupado.
— Você... Você quem fez? — perguntei, levantando a cabeça para encará-lo. Seu rosto estava bem perto do meu, as sobrancelhas espessas quase se tocando, a careta enrugada transmitia dor e... apreensão. Demetrius balançou a cabeça.
— Sim. — sua expressão estava irreconhecível, fechada, distante.
Na gaveta, peças de madeira, talhadas em diferentes tamanhos e formatos, esculturas de animais, pessoas, flores. Haviam dezenas. Algumas ainda inacabadas, outras polidas e coloridas, e longos blocos de madeira com infinitas possibilidades e nenhuma lasca arrancada.
— É muito bonito, Demetrius — disse, pegando a menor peças dentre as outras, um galho de cerejeira com um pássaro empoleirado no topo. Talvez porque toquei sem querer em sua mão quando me estiquei para tocar a peça, ou por ter quase sussurrando seu nome, mas pude senti-lo tremer ao meu lado, e isso quase me fez deixar a escultura cair.
O príncipe tossiu e se afastou.
— Não me lembrava que ainda guardava essas coisas aí — ele disse, a voz soando vaga e distante. Duvidei de cada palavra. — Jogue tudo fora — pediu, os olhos fitando o chão.
Não consegui esconder a expressão incrédula que começava a tomar meu rosto.
— Tem certeza que deseja se livrar de tudo isso? É muito...
— Sim. — ele não tinha dúvidas, e também não ousava levantar o olhar para me encarar dessa vez. — Livre-se de tudo, Celine. Por favor... — Demetrius continuava fitando as tábuas de madeira do piso com um falso interesse. Ele fechou o punho e se virou. Os olhos cinza se conectando aos meus em uma linha inquebrável.
Era como se só existissem nós dois em todo o mundo, sua respiração era a única coisa que eu ouvia, quente e compassada. O príncipe tocou a mão que segurava a escultura, acariciando o dorso em movimentos circulares. Em seu rosto vi a sombra escurecendo seus olhos, entendi porque a mudança repentina de postura. Era dor.
Aquelas esculturas traziam memórias dolorosas para ele, era como um relicário de lembranças que Demetrius desejava esquecer.
— Por que gostou desta? — ele perguntou, ainda sem desviar o olhar. Mas precisei olhar para baixo. Abri a mão e fitei o objeto que repousava em minha palma.
— Parece que ele está tentando voar — disse enquanto observava o pássaro e então levantei a cabeça outra vez. — Mas não sai do lugar por algum motivo.
O príncipe riu.
— Talvez porque não é um pássaro de verdade.
Deixei a escultura em cima do mezanino e abri a gaveta de baixo, depois a terceira e última. Todas elas abarrotadas de blocos de madeira e pequenas esculturas inacabadas. Virei-me para encará-lo outra vez, mordendo o lábio inferior. Obrigando-me a não dizer o que martelava minha cabeça.
Ao invés de falar o que eu realmente queria, apenas disse:
— O que devo fazer com tudo isso?
— Queime-as — ele disse, e dei um salto, os olhos arregalados. O príncipe pareceu se divertir com minha reação. — ou jogue-as no rio, se preferir, pode dar ao orfanato da cidadela também. Não me importo.
Mas a sombra pairando em seus olhos me diziam o oposto.
— Está bem. — apenas concordei.
E quando dei por mim, as horas já tinham se arrastado completamente, o dia tornou-se noite e o escritório foi totalmente organizado. Todos os livros foram enfileirados em ordem alfabética, Demetrius ajudou na realocação de boa parte dos títulos depois que todo o pó foi removido das prateleiras. Juntei todas as esculturas em uma cesta, ainda sem saber muito bem que fim dar a elas.
Acho que o príncipe percebeu minha relutância, pois assim que apanhei a última peça, com o galho de cerejeira e o pássaro empoleirado viajando no ar para se juntar às demais esculturas da cesta, ele parou a poucos passos, interditando minha mão antes de finalizar o percurso.
— Você gostou desta, pode guardar ela com você... se quiser — ele disse e depois esticou o braço, posicionando uma mecha do meu cabelo para trás da orelha.
— Ouvi alguns boatos sobre um dos príncipes ser um artista, não pensei que fosse verdade — contemplei, encarando a peça nas mãos. Os detalhes talhados tão bem definidos e ricos que mal parecia que outros aquilo havia sido um mero pedaço de madeira. — Tão pouco esperava conhecê-lo.
Ele sorriu para mim, e retribui. Porque era genuíno. Alguma coisa naquele momento, naquela sensação, algo ali naquele silêncio embriagador nos fez vibrar como ímãs. Estávamos perto, e o modo como Demetrius me olhava fez o meu coração bater mais rápido. Desviei minha atenção para baixo, para os lábios rosados que, naquele momento, eu tanto desejava sentir junto aos meus.
E percebi o porquê pensar nele me deixava agitada e afoita, nervosa ou com os membros formigando. Demetrius era como um tornado de espinhos e rosas. Demetrius era o mar indomável no qual queria me banhar. Aquela sensação frenética que me abatia, o ímpeto desmedido e avassalador. Era o desejo, inquietante e insaciável... cruel.
Eu queria beijá-lo.
Eu desesperadamente queria beijá-lo.
E não podia.
Sentindo aquela urgência se espalhar por todo o meu corpo, soube que precisava ir embora. Rápido. Quando dei por mim, já estava cruzando o corredor, correndo com a cesta em uma das mãos e a pequena escultura de pássaro na outra. Meu coração continuou batendo acelerado até mesmo depois que cheguei ao meu quarto, trancando a porta atrás de mim.
Tentei respirar, tentei me controlar.
Mas Demetrius era tudo o que eu via quando fechava os olhos.
Ele era o príncipe.
E eu não tinha mais para onde correr.
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