⚔ Capítulo 26



      A brisa da manhã trouxe o aroma de flores dos jardins do castelo junto ao ar fresco e agradável. Criei o hábito de dormir com a janela aberta, na esperança vã de Nikosoli aparecer. Remexi o corpo sob os lençóis, sentindo o peso confortável do travesseiro na minha cara. Esperava por notícias. Todos os dias. Clamava por elas. Sonhava com Magdalena todas as noites desde o dia que o castelo se tornou minha nova casa.

Mas casa continuava sendo um conceito vago naquele momento, e nunca estivera tão longe.

Semanas se arrastaram sem qualquer pressa. Sentia-me cada vez mais como uma prisioneira, o tempo era um grilhão em meu tornozelo. As paredes, uma jaula sem cadeado. Eu já havia me convencido de que Nikosoli nunca mais apareceria. Que estava condenada. Sozinha. Convencia-me também que Midas estava louco.

Estávamos há quase um mês brincando de faz de conta no castelo e o monstro não dera as caras uma só vez.

— Acorde — alguém disse. E a luz do sol agrediu meus olhos. Ainda que fechados, podia sentir a luminosidade varrendo todo o quarto. O travesseiro tinha sido empurrado para longe

Ao abri os olhos, eu o vi.

Nikosoli estava em meu quarto. No castelo. Agachado ao lado da cama.

Um novo par de cicatrizes se formou na altura do pescoço. Ele estava sem o chapéu preto e o manto azul que vestia como uniforme havia sido substituído por um colete cinza, um fraque preto e um terno simples. Por um instante, senti falta da blusa branca desabotoada. O cabelo preto estava bagunçado, caindo liso até a altura do ombro. Ele combinava com aquele visual mais despojado. No entanto, por algum motivo, senti falta do cabelo longo. Parecia errado vê-lo daquele jeito. Como se sua essência tivesse sido arrancada.

Era como vê-lo despido.

Corei imediatamente. Felizmente, não fui pega. Ele me encarou por alguns minutos depois, em silêncio, avaliando o quarto, os objetos. Suspirou e estendeu a mão em minha direção. Na palma aberta, um cordão trançado elaborado com linhas coloridas e conchas brancas.

— Mikhail disse que a sua irmã fez isto para você — ele disse, e a breve menção à Magdalena me fez acordar totalmente. Saltei para fora da cama e apanhei o colar. Meu pânico devia estar evidente em meu rosto, pois logo ele acrescentou: ela está bem, sua mãe está bem também. Estão vivas e em segurança.

— Por onde esteve? — perguntei, posicionando o colar no pescoço. — Onde elas estão? Fiquei esperando todos esses dias por alguma notícia... e você não apareceu! Pensei que tivesse... pensei que... — parei. Respirei profundamente, não era o momento certo para surtar. Meus dedos tatearam o colar que agora pousava em minha pele. A respiração começou a ficar descontrolada ao passo que minha mente fervilhava com perguntas. — Por que ela pediria algo a Mikhail? O que contaram à minha irmã? — minha voz soava mais alto a cada palavra — O que está acontecendo?

— Acalme-se — pediu Nikosoli.

— Peça algo mais simples — rebati, saltando para fora da cama.

— Você ainda está de pijama. — ele mudou de assunto, propositalmente. O tom era calmo, frio e distante. Uma ruga surgiu em minha testa, no entanto, se ele notou minha reação, nada disse. Aquilo fez um arrepio percorrer minha coluna.

Algo estava errado. O Nikosoli de minha memória, que me abraçou sob as estrelas, era acolhedor e quente. Este era uma pedra de gelo.

— Vou me trocar — avisei.

Ele voltou-se para a janela, os braços dobrados atrás das costas. Fiquei aliviada com aquele gesto. Ao menos ele tinha algum senso de cavalheirismo e não ficava encarando.

Corri até o guarda-roupa e puxei um vestido extravagante de plumas verde, renda e pedrinhas sobre o corpete azul. Era belíssimo, mas era demais. Sem dúvidas, Midas o havia escolhido, ignorando totalmente o meu gosto pessoal. Vesti-me rápido e, devido às circunstâncias, não tive a melhor das experiências. O meu cabelo sofreu danos no processo, mas era melhor do que continuar aquela conversa estando ainda de pijama. Nós dois já havíamos cruzado barreiras o suficiente, era bom saber que algumas linhas de dignidade ainda não foram rompidas.

Eu tossi, limpando o pigarro da garganta, e Nikosoli girou em minha direção.

— Seu pai voltou para casa alguns dias depois de sua partida... — senti meu coração acelerar. Filho da puta. — Mas não se preocupe, eu tomei algumas medidas quanto a isso.

— O que quer dizer?

— Mandei que Mikhail fizesse visitas regulares, o que o assustou um bocado. Não sei o que disse a ele, mas Mikhail ajudou a manter o seu pai afastado por um tempo... Em uma das visitas, Magdalena tomou coragem para abordá-lo. Acho que as lembranças sobre aquela noite voltaram quando ela o viu. Sua irmã fez mais perguntas do que ele conseguiria responder.

Nikosoli parecia querer rir enquanto contava, mas algo em meu rosto o fez ficar sério outra vez.

— Mikhail não tem a habilidade de desaparecer nas sombras como eu. Na verdade, nenhum deles consegue isso. Então, pode imaginar que foi um pouco difícil para ele se esquivar de sua irmã. Ela é bem insistente quando quer e é corajosa igual a você.

Foi minha vez de querer rir. Apenas porque era verdade. Magdalena era ainda pior do que eu, porque ela tinha o dobro de energia e fofura.

— Mas? — perguntei, a sobrancelha arqueada.

Nikosoli praticamente flutuou até o outro lado do quarto, voltando a fitar a paisagem externa do castelo. As colinas ao longe estavam quase totalmente cobertas pelas nuvens, um nevoeiro denso marchava lentamente em direção à cidadela. As florestas e os bosques mais floridos estavam subjugados ao tempo nebuloso.

Ele suspirou, pesaroso.

— Ele apostou o chalé em um jogo de cartas, e perdeu... — disse, e senti-me como uma âncora afundando no mar. Não conseguia respirar. — Precisei levar sua mãe e sua irmã para longe da cidadela, mas não tão longe a ponto de provocar algum mal-entendido. — De repente, meu coração começou a bater muito mais rápido do que conseguia assimilar a informação que ele despejava. — Celine — Nikosoli chamou, mirando meus olhos. O peso de suas mãos caindo em meu ombro. — Respire. Elas estão em um lugar seguro agora e seu pai desapareceu outra vez.

— Estão em um lugar seguro? Onde exatamente é esse lugar seguro? — esbravejei, empurrando seus braços para longe. — Será que esse lugar sequer existe?

Ele não respondeu.

— Está com a adaga que lhe dei? — ele perguntou quando o silêncio já não era mais tão incômodo. Apenas balancei a cabeça, confirmando. — Ótimo. — ele pigarrou e, quando percebeu que não tinha mais nada a dizer, chamou as sombras outra vez. Elas se uniram na base dos pés, enroscando-se em sua bota.

— Espere — pedi, e ele olhou para cima. Seus olhos eram como os meus, e aquilo me fez tremer. — Leve-me com você. Leve-me até elas, apenas por algumas horas... preciso... preciso...

Eu não completei o que ia dizer, não sabia o que viria depois que abrisse a boca, e também mais nenhuma palavra saiu.

Nikosoli, no entanto, pareceu entender. Seus olhos assumiram uma expressão suave. O assassino respirou fundo, pensando. O que ele estava pensando tanto, afinal?

— Não. — disse. — Midas nos mataria se eu a tirasse daqui. — Eu estava prestes a protestar quando as sombras começaram a arrastar sua imagem para longe. Logo, sua voz fantasmagórica sussurrou: voltarei à meia-noite. E desapareceu, como grãos de areia soprados pelo vento.



As horas seguintes se arrastaram dolorosamente. Não esbarrei com Demetrius em nenhuma ala do Castelo naquela manhã. A Sra. Dorthie finalmente encontrou uma dama de companhia para mim, o que não me deixou muito feliz. O seu nome era Marisa. Era uma moça ainda mais jovem do que eu, com a pele branca e o cabelo avermelhado. Marisa tinha um belo sorriso e uma voz um tanto quanto esganiçada.

Estávamos dando um passeio pelo jardim quando avisto a silhueta esguia e familiar de Midas. Ele trajava um colete dourado com pedras de topázio e uma calça larga da cor laranja. O cabelo cumprido balançava livremente de um lado para o outro. O preto misturado às mechas coloridas que mudavam de cor.

— Milady — chamou Marisa, tímida, enquanto conduzia uma reverência curta — devo me retirar. Deixarei-os a sós. Se precisar de mim, estarei ajudando a Sra. Dorthie na cozinha.

Anui, silenciosamente, com um sorriso estampado. Minhas bochechas doíam de tanto forçar o sorriso. Já não aguentava mais. Fiquei extremamente satisfeita quando Midas parou ao meu lado, e Marisa desaparecia atrás das portas do castelo.

Ele riu.

— Que cara é essa, querida?

Tão logo recuperei minha postura.

— Preciso de um favor. — minhas mãos tremiam, por algum motivo. Eu estava nervosa. Midas me estudou em silêncio. Os olhos brilhantes pareciam sorrir, mas o rosto estava sério. A testa, no entanto, estava tensionada. Uma ruga de dúvida se formou no cenho.

— Em que posso ajudá-la, querida?

— Preciso visitar a minha família. — respirei fundo, quando dei por mim, não consegui controlar as palavras. Saíram aos tropeços, umas sobre as outras. Torci apenas para que algo fizesse sentido. Para que ele ouvisse, que concordasse. — Sei que não devo desobedecê-lo ou sair daqui antes de nossa missão acabar, mas estou com medo por elas, estou preocupada. Quero apenas me certificar de que estão bem... Estou...

Ele ouviu tudo sem interromper.

— Está...? — quis saber. — continue.

— Estou desesperada.

Midas respirou fundo, cruzando os braços.

— Estou chocado e um pouco... confuso. — foi a minha vez de torcer o cenho. — Tenho a impressão de que as coisas não ficaram muito claras... Você é uma Assassina de Bear agora. Por isso que está aqui. E sabe o que isso significa?

— Honestamente? Não faço a menor ideia.

Midas sorriu.

— Isso significa que não é uma prisioneira. — Ele balançou as mãos, do jeito que sempre fazia quando queria uma bebida. Um brilho dourado iluminou seus dedos onde, em instantes, uma taça de champanhe borbulhante se materializou. Midas levou a taça aos lábios com uma elegância invejável. — O acordo nos entrelaça, sim... — ele voltou a dizer, levemente entediado. — Mas apenas porque você ainda precisa de mim, e eu quero algo que apenas você poderá me dar. É uma troca.

Encarei-o por alguns instantes. Midas não se mexeu ou ousou interromper o silêncio.

— Está dizendo que não se importa?

— Desde que meu plano funcione, você pode fazer o que quiser. — Midas fez uma mesura rápida, voltando-se para o bosque. Ele se afastava quando emendou — apenas não faça nada muito estúpido. Não quero chorar no seu enterro, querida.

Eu quis rir, mas algo me impediu. De algum jeito, aquela cena pareceu tão improvável que me fez querer gargalhar e rolar no chão. Midas não se parecia em nada com alguém que derramaria lágrimas sobre o túmulo de alguém. Mas seu olhar sobre mim estava sério, quase triste. Retesei-me.

— O que exatamente você quer de mim? — O que exatamente você quer?

Midas revirou os olhos.

— Nada ainda. Não é o momento certo para essa conversa, querida. — Midas bebeu mais um gole de seu champanhe dourado. — perguntei, por fim. O que me matava por dentro naquele momento era a curiosidade.

Midas revirou os olhos.

— Mas não há nada com o que se preocupar.— Midas bebeu mais um gole de seu champanhe dourado. — Estamos bem mais perto agora.


          A parte mais estranha de ser uma visitante no castelo, sem qualquer dúvida, era conviver com o silêncio daquele lugar. Não era à toa que todos chamavam aquele lugar de mausoléu amaldiçoado. Sem membros da corte, sem os serviçais e as comemorações semestrais, o castelo era como um sepulcro. Vazio.

Terrivelmente assustador.

Eu observava enquanto Marisa ajudava a Sra. Dorthie a limpar o conjunto de tapeçaria. Havia pouquíssimos itens restantes no castelo de Reinlynch. Ao que eu havia percebido, os demais pertences da rainha e de sua corte já haviam sido esvaziados dos e enviados para a instalação vizinha. Prysen era muito mais bonita durante o inverno, não fazia muito sentido enviar a corte e todos os criados para lá quando o palácio de Guilea era muito mais perto e adequado para uma estadia durante a primavera. No entanto, suspeitava de que a realocação era meramente política.

O príncipe acabou pulando o desjejum naquele dia, e metade do banquete matinal acabou indo parar no lixo. No horário do almoço, no entanto, ele apareceu. Marisa organizava os talheres sobre a mesa quando a porta foi aberta.

— Alteza — cumprimentei, curvando-me em sinal de respeito. Senti minhas bochechas corarem quando levantei e deparei-me com seu sorriso torto.

— Bom dia, Celine — disse ele, informal, mais alegre do que de costume. Demetrius abriu a boca e se inclinou para frente, ameaçando dizer alguma coisa (inapropriada, provavelmente), quando a Sra. Dorthie invadiu o salão de jantar.

— Oh, Celine, querida! — ela correu na direção de Marisa, trazendo uma bandeja prateada que parecia ter metade do seu tamanho. Era bem grande. — Os talheres à esquerda. O prato fundo acima do raso e... Não, não , está tudo errado! — Ela abanava as mãos enquanto orientava a nova serviçal. — Apenas prepare dois lugares, o príncipe fará as suas refeições no escritório. Ele havia feito o pedido mais cedo, mas estava ocupada com o trato dos cavalos e não pude avisá-la.

— Oh, Sim... — Marisa tentou sorrir.

— Deixe-me ajudá-la... Marisa não pode dar conta de tantas tarefas sozinha... — precisava me mostrar útil. — Sou apenas uma consorte, ninguém se importa se eu pôr a mão na massa, não é? — Marisa se animou ao meu lado. Apoiei minha mão sobre o seu ombro e ela curvou a cabeça, tímida.

— Está bem, querida, se insiste...

A Sra. Dorthie se virou para Demetrius, o sorriso largo deixava as bochechas rosadas e rugas em todo o rosto. Era sempre a mesma expressão calorosa que lhe tomava a face quando percebia a presença do príncipe, como um carinho maternal desmedido.

— Já está com fome, Demetrius, querido? — ela perguntou, doce. Era fácil imaginar a Sra. Dorthie naquele papel de mãe preocupada, sempre correndo pelos cantos, esperando as crianças voltarem de uma tarde cansativa de brincadeiras. Mas Demetrius não poderia caber no papel de uma criança normal.

— Posso esperar — foi tudo o que ele disse, retribuindo o carinho no tom de voz aveludado.

A Sra. Dorthie se curvou e deixou o salão, dando-nos as costas apenas após cruzar a porta lateral, por onde os serviçais entravam e saíam. Não eram todos os cômodos que tinham passagens como aquelas, mas todos os grandes salões do primeiro andar possuíam ao menos duas delas.

Quando tornei minha atenção ao príncipe, ele já não estava mais ali.

Por algum motivo aquilo me deu uma breve sensação de alívio. Apenas um pouquinho.

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