⚔ Capítulo 20





          Eu lutava contra a água, debatendo-me sem parar. Lutava contra os esqueletos que me puxavam cada vez mais para o fundo. Lutava contra o peso instalado em meu peito, mexendo os pés e as mãos, mas não pude fazer nada quando o último sopro de ar foi tomado de mim.

Ainda assim, continuei tentando, tentando não pensar no que encontraria se as sombras me engolissem por completo. Lancei-me para cima, mas não conseguia nadar livremente, então tentei me desvencilhar das mãos esqueléticas. Mas meus esforços de nada adiantaram. Cada vez mais rápido, a negritude se aproximava e, de repente, senti o peito começar a queimar.

Precisava de ar.

Os olhos arregalados exprimiam o horror enquanto eu girava a cabeça para cima, a superfície e a luz do sol pareciam estar a uma infinidade de distância.

Eu precisava respirar.

Abri a boca, por puro reflexo, e senti a água atravessar a garganta. As vias respiratórias ardiam como se eu tivesse acabado de engolir brasa quente, e uma mistura nauseante de doce e salgado dançava em minha boca.

Água invadia minha garganta e nariz, bolhas se misturaram ao meu engasgo.

Eu estava sufocada.

Morrendo

Com toda a certeza, morreria afogada naquele lago.

Logo as sombras me cercaram por completo e, tanto o frio quanto os cadáveres que me puxaram, desapareceram; restando apenas eu, as águas e sua imensidão vazia.

Foi então que eu senti.

Uma força poderosa me puxou, houve um sacolejo, ar quente tocou a face e meu corpo bateu de encontro a uma superfície dura e áspera. Tossi e me contorci sentindo o chão firme e sobressalente sob mim. Tentei levantar, mas minhas pernas falharam. Com o coração acelerado e a respiração descompassada, as tosses começaram outra vez, e continuou assim até que toda água ingerida fosse expelida. Meus pulmões doíam, as mãos tremiam e eu pude ver marcas vermelhas ao redor do pulso.

Esqueletos malditos.

Um arrepio subiu por minha espinha ao me lembrar daquelas criaturinhas infernais.

Estava viva, sorri diante a realização, e respirei profundamente várias vezes, alegre a cada bater do meu coração, a cada fração de ar invadindo os pulmões. Deixei a mão pousada acima do peito. Estava viva. Passei tantos dias desejando que a morte viesse, não fazia ideia que lutaria tanto contra ela quando enfim desejasse aparecer. Nikosoli teria ficado orgulhoso do meu empenho para continuar viva.

E teria me crucificado por não carregar a adaga comigo para todos os cantos como havia instruído que eu fizesse.

Aproxime-se — ouvi a mesma voz fantasmagórica de antes sussurrar outra vez.

Olhei para os lados e para cima, procurando. Então, vi. A água transparente e os peixes do lago pairando sobre minha cabeça, como um aquário suspenso no ar. Ao longe, bem lá em cima, tons de azul, verde e amarelo se misturavam na imagem embaçada provocada pelo suave movimento das águas. Era o céu azul e o brilho do que pensei ser o sol.

Quando olhei ao meu redor, rochas molhadas e fios de água corriam pelas paredes e chão, levando até um corredor estreito e entregue à escuridão.

Senti vontade de rir. Principalmente porque aquilo me fez lembrar um poema bem antigo, que se espalhou bem rápido pelos quatro reinos depois da Grande Guerra. E lembrar-me dele me fez suspeitar de que, talvez, não estivesse viva, afinal.

Não tente enganar o diabo, pois ele cobra dobrado;

Livre-se do medo, não fale, não ria!

E então será poupado.

Mas se ao inferno chegar, não tema o caminhar

Não chore e não pisque! Apenas siga adiante.

Jamais dê as costas ao fogo, ou queimará num instante.

Havia chegado ao inferno, então? Só me restava continuar seguindo.

Com esse pensamento em mente, caminhei em direção a voz suave e melodiosa, que se tornava cada vez mais alta e sombria à medida que eu avançava. Imagens nebulosas atravessavam as paredes do corredor, migrando de um lado para o outro, envolvendo-me numa tempestade de cores, pessoas, diálogos e eventos que eu não reconhecia.

Estava, definitivamente, no inferno. Era a única explicação.

A névoa tornava-se cada vez mais densa à medida que eu me aproximava da voz fantasmagórica. Ao final do corredor, tochas iluminavam o que parecia ser o final da caverna. Uma fumaça densa e esbranquiçada cobria todo o lugar e, no meio do caos, a figura de uma mulher esbelta, pálida como um defunto, e de cabelos longos, cantarolava.

O cabelo era preto, descia até o quadril, e as vestes transparentes deixavam quase todo o seu corpo à mostra. Não tive a intenção de violá-la com meu olhar curioso, mas não conseguia desviar, não conseguia me mover.

Tentei recuar, mas meu corpo não me obedecia.

Não tenha medo, Celine — disse a mulher, exibindo um sorriso tão branco quanto o brilho de uma lua cheia. Seus olhos eram dourados e dóceis. Mas as unhas exageradamente pontiagudas e a expressão morta fizeram-me pensar que talvez não seria bom me deixar enganar pela aparência da mulher.

— Estou morta? — perguntei, e a mulher estranha riu.

Não tinha nada engraçado.

Ainda não. — A mulher respondeu, flutuando até mim. Quis desviar, quis me mexer, quis correr. Não conseguia. Os olhos dourados, de repente, tornaram-se como os meus: azul noturno, quase preto. — Está mais viva do que deveria — a mulher sussurrou ao pé do meu ouvido, e uma corrente gelada me atravessou. — Não se assuste, não se assuste! — ela se afastou de repente, rindo como uma hiena machucada.

— Um pouco difícil...

A mulher continuou exibindo um sorriso sombrio no rosto pálido, e desejei não ter falado nada.

— Não lhe farei mal algum... Sou apenas uma mensageira — constatou, balançando as mãos, as unhas tinindo ao se tocarem. — Bom, na verdade, pode pensar em mim como sua guardiã espiritual.

Arregalei os olhos, as sobrancelhas arqueadas.

— Certo... Guardiã — engoli em seco. — Será que pode me desencantar, então? Ainda não consigo me mexer. Já que... bom, se é minha guardiã, não está tentando me matar, certo?

A mulher concordou com a cabeça, fez um movimento rápido e, em um piscar, senti a força que me dominava desaparecer. Tentei dar um passo para trás. Minhas pernas acompanharam o pedido, obedientes. Quase chorei de alívio. Estava realmente livre? Eu podia sair dali?

— Só quando eu deixá-la ir embora — respondeu à mulher. Um tremor cobriu meu corpo. — Ora, não se preocupe. Só consegui ouvi-la porque praticamente gritou. Não posso ler todos os seus pensamentos.

Levantei a cabeça lentamente. Atrás da mulher, cores e linhas tomavam forma. Reconheci meu próprio rosto, e também o castelo. A figura da mulher tornava-se opaca conforme flutuava para frente e para trás.

— Quem é você? — ralhei. — Foi Midas que a enviou atrás de mim?

Ela fez uma careta confusa, e eu não soube interpretar aquela reação.

— Pode me chamar de Dama do Lago — respondeu, enigmática. Ótimo, era tudo que eu precisava. Mais um problema misterioso. — Midas é uma migalha de inseto comparado à corrente em suas veias, Celine. E eu vim até aqui para alertá-la... — a mulher disse, sustentando meu olhar inquisitivo com rigidez. Era a primeira vez que ela parecia real, e não apenas um espectro fantasmagórico. — E vim para protegê-la.

Percebi que não estava mais com medo, e sim furiosamente curiosa.

— Alertar sobre o quê? — perguntei.

Ele está cercando o castelo há alguns meses e agora encontrou bem mais do que estava procurando, encontrou você. — a voz da Dama do Lago oscilou enquanto dizia. — E isso pode mudar tudo, isso vai mudar tudo.

— Ele quem? — disparei, minha voz soando mais aguda do que nunca.

Queria que Nikosoli pudesse me ver naquele momento, ele costumava se impressionar bem fácil com a minha coragem infinita, mal sabia ele que na maior parte do tempo eu estava apenas desesperada demais para conseguir sentir qualquer outra coisa.

Mas ali, ali eu sentia tudo.

Sentia o medo, a dor, a tristeza, a frustração, a raiva, tudo que me privei de sentir durante aquelas semanas. Por algum motivo, estava tudo vazando para fora, como sangue jorrando através da ferida aberta. A Dama do lago flutuou até mim, tocando minha a face com uma das mãos e apertou meu antebraço com a outra, deslizando os dedos até meu pulso.

O Senhor das Sombras. — ela respondeu, sussurrando.

— Sempre enigmática, percebo. — disparei, e o aperto dela ao redor da minha pele se intensificou.

— Isso não é uma piada, Celine. — ralhou a Dama do Lago. — Ele procura, procura, mas ainda não achou. Então, ainda pode enganá-lo, ainda pode tentar... — De repente, os olhos dela se iluminaram como faróis. — Sim, sim! Se perto do príncipe você ficar, a magia dele não poderá tocá-la. — concluiu, por fim, como se tivesse chegado àquela conclusão naquele mesmo instante. — Fique com o príncipe.

A Dama do Lago cantarolava, ainda me apertando, as unhas fincando na pele. Senti como se mil agulhas tentassem atravessar meu osso. A dor excruciante que me arrebatou fez eu fechar os olhos e gritar.

— O Senhor das... Sombras? — repeti, arregalando os olhos. — O que acontecerá se eu não ouvir seu aviso?

Morte. — ela sussurrou, e pude sentir as unhas afiadas perfurando minha carne, gravando em meus ossos, rasgando minha pele. — Fique com o príncipe. — repetiu.

A Dama do Lago soltou meu braço, e eu caí. 


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