⚔ Capítulo 17
EU PRECISEI PROMETER cinquenta vezes que retornaria para casa antes do verão chegar. Prometi também que levaria Magdalena para visitar o castelo. Antes de conseguir cruzar a porta do chalé até o lado de fora, senti minha irmã me puxar pela saia do vestido, os dedinhos grudados no pano como uma corda atada. A pouco menos de dois metros da soleira, uma carruagem preta com a insígnia do Reino das Estrelas carimbada na lateral aguardava por mim.
Não havia sinal de Midas em canto nenhum, o que era curioso e preocupante simultaneamente.
Minha irmã continuava me seguindo. Após arremessar uma cesta de roupa para dentro da carruagem junto a demais pertences através da abertura na janela, ela me soltou. Eu queria poder contar toda a verdade, mas apenas respirei fundo e abracei minha irmã. Senti o aroma adocicado de pétalas de rosa quando o vento soprou seu cabelo. Depois que eu me acomodasse naquele assento e penetrasse os portões do castelo, não conseguiria mais voltar em minha decisão. Não haveria espaço para fracassar.
Abaixei a cabeça, suspirando. Meus olhos bateram em cheio na carne marcada com aquele familiar filete de sangue. Depois que voltamos do festival, há três noites, Magdalena me ajudou a cuidar dos arranhões e também a esconder o vestido rasgado e sujo sem causar alvoroço.
— Por que está me ajudando com isso? — arqueei a sobrancelha, não queria que a pergunta saísse em tom acusatório, mas foi exatamente como soou. Me preocupei porque minha irmã sempre foi aquela que não conseguia guardar um segredo, principalmente se era meu para contar.
Magdalena suspirou.
— Mamãe já anda muito preocupada, qualquer coisa a tem assustado nesses últimos dias. — explicou ela. — E você está indo embora. Preciso ser boazinha e responsável agora.
Aquilo fez uma luz se acender e aquecer meu coração e a lembrança me fez querer rir.
Ainda puxando minha saia, Magdalena cochichava sobre o cheiro dos cavalos não ser muito agradável e o cocheiro resmungou, dizendo que chegaríamos atrasados para a apresentação. Eu ainda não fazia ideia do que aquilo significava, mas puxei minha irmã para um último abraço, depositando um beijo rápido no topo de sua cabeça para me despedir.
Eu queria dizer mais, muitas coisas mais, queria poder levá-la comigo ou para outro lugar, bem longe, muito longe dali. Queria dizer "estou indo embora por você, para te proteger. Quando conseguir o suficiente para pagar a dívida, eu voltarei. Prometo que voltarei."
Mas as palavras não saíram. Ela ainda me olhava tristonha, com o cenho franzido.
— Promete que vai me levar para visitar o castelo depois? — Pediu Magdalena, pela quinquagésima primeira vez. Nada hipnotizava minha irmã mais do que os pináculos do castelo. E eu sabia que visitá-lo era seu sonho. Ela não precisava saber dos planos de Midas ou do meu envolvimento com os Assassinos de Bear. Ela não sabia que estávamos todos em perigo. Assenti com a cabeça, acariciando suas bochechas rosadas. O cabelo preto estava preso em uma trança que caía nas costas. Minha mãe apareceu na porta do chalé e acenou, distante.
Ela não queria ficar perto demais e alertara-me sobre isso antes. Eu não tinha certeza se ela conhecia a verdade por trás de meus motivos, ou se apenas suspeitava. Tudo o que eu sabia era que ela não queria chorar ao se despedir porque não queria que eu desistisse de ir embora.
Fiquei um pouco aliviada.
Magdalena recuou e correu até Reina. Minha mãe era tão bela quanto minha irmã. As duas se pareciam tanto. Olhar de aço, brilhante, mas ainda assim, doce. O cabelo preto longo, o rosto fino e rosado, postura ereta e corpo anguloso, com quase nenhuma curva. Elas eram tão diferentes de mim, em cada traço, em cada dobra.
— Vejo vocês no verão — disse, acenando, e entrei na carruagem.
Elas gritavam e acenavam, mas não deram nenhum passo para fora da soleira da porta. O cocheiro estalou o chicote e os cavalos relincharam, cavalgando para longe do chalé, para longe da cidadela, em direção ao castelo.
A estrada à nossa frente era longa e meu corpo estava exausto, reclamando a cada sacudida. Decidi dormir durante a viagem, afinal, não tinha como saber o quanto minha nova rotina iria exigir de mim e não podia contar com o cansaço para me atrapalhar. Ainda não tínhamos nem saído da cidade quando consegui ver um lampejo da floresta dos Alces no horizonte.
Suspirei, bloqueando a luz do sol com as cortinas e encostei no estofado do banco com os olhos fechados. Adormecer durante as próximas horas não faria nenhum mal.
Pisquei uma, duas, três vezes.
Quando estava prestes a fechar os olhos de vez, as sombras começaram a tomar forma.
E Nikosoli estava sentado à minha frente.
Era a primeira vez que eu o via sem chapéu. O cabelo preto, antes longo, agora batia na altura dos ombros e estava penteado para trás da orelha. Ele usava o uniforme preto habitual, com espirais vermelhos decorando a veste. O Manto preto-azulado era pesado, cobria todas as outras cores.
Aquele manto me lembrou o rapaz de cabelo vermelho da Floresta das Almas na noite do equinócio, quando quase virei comida de um leão. Era bem parecido, percebi, o capuz de Nikosoli também estava caído para trás, revelando todos os ângulos e curvas de seu rosto com mais clareza do que nunca antes.
Com exceção do cabelo, todo o resto estava igual à última vez. A cicatriz permanecia no mesmo lugar, intacta. E agora ele contava com novas marcas, algumas bem menos visíveis, outras mais destacadas. No pescoço, linhas pretas estavam amostra.
Meu coração bateu mais rápido, de repente.
Mas não era medo.
Eu sorri.
Estava feliz por vê-lo, finalmente, depois de tantos dias.
— Você apareceu — Está vivo, quis dizer.
E não percebera até aquele momento que andei preocupada com ele todo aquele tempo. Era uma preocupação infantil e ridícula, eu sabia, ele era um assassino. Não existia nada que ele não pudesse resolver, não é? Eu, definitivamente, não precisava me preocupar com Nikosoli. Mas, por algum motivo, lá estava eu, temendo por ele todo aquele tempo, com as palavras de Mikhail ecoando continuamente.
Ele está arriscando tudo por você.
Nikosoli era a pessoa que tinha quebrado as regras por mim, e agora estava ali, na carruagem real, se arriscando outra vez, se doando por uma memória. Mas, independente do que ele alegava dizer sobre eu lembrar sua irmã, não era por ela que ele estava li.
Era por mim.
— É claro. — Nikosoli sorriu, como se fosse loucura eu me preocupar com o contrário. — É seu primeiro dia no castelo. — a careta habitual tinha sido substituída por uma aparência mais ensolarada, alegre. Torci o cenho, suspeita. — Está animada?
Era tão estranho vê-lo de novo, ainda mais quando estava tão diferente. Sentia que haviam se passado anos, e não dias.
Ainda assim, eu estava feliz. Não precisava esconder meus sentimentos, não com ele. Era uma das coisas que me fizeram sentir sua falta. Na presença de Magdalena e minha mãe, eu precisava controlar as palavras, esconder a verdade o tempo todo, medir minha dor e frustração.
Mas Nikosoli sabia meu segredo e não se importava com os pecados que os acompanhava.
— Bom, considerando que em breve precisarei roubar o Rei e trair a confiança do Reino me tornando uma criminosa... Acho que estou ansiosa, mas feliz. — sorri.
E era verdade, especialmente porque, vivendo no castelo, eu poderia fingir que meu mundo não estava ruindo. Trabalhar para o Reino das Estrelas como membro da corte do Rei no castelo era um presente, ainda que eu precisasse me tornar uma ladra no final e tudo acabasse dando errado... se a dívida fosse paga, ficaria satisfeita.
— Nunca com medo — ele ponderou, retribuindo o sorriso. Não era uma pergunta, então não respondi. Que ele continuasse achando que eu era destemida. — Você nunca aparenta ou diz estar com medo. Por algum motivo, não estou surpreso. Ainda assim, tome cuidado quando chegar no castelo e evite andar sozinha durante a noite.
Arqueei a sobrancelha.
Aquele era um pedido muito específico, o que era extremamente estranho.
— Por quê? — indaguei.
— Para não parecer suspeito — respondeu ele, depois de um tempo em silêncio. Murmurei um "Ah..." sem acreditar muito naquela resposta, mas não questionei. — De todo jeito, não se preocupe muito. Ficarei de olho em sua mãe e em Magdalena enquanto estiver no castelo. E levarei notícias até você ocasionalmente.
Não consegui esconder a surpresa.
— O quê? — perguntei, quase gargalhando. — Como vai fazer isso?
Nikosoli ficou pensativo, decidindo se contaria ou não. Por fim, ele apenas deu uma reposta vaga, dando de ombros.
— Tenho meus métodos. — ele olhou para a janela, apontando em direção ao oeste como se pudesse enxergar a montanha dali, o que era impossível. — O Príncipe mais novo está viajando... sua localização ainda não foi confirmada. E o Príncipe Herdeiro não permanece no castelo de ReinLynch por muito tempo, principalmente agora, então poderei visitá-la quando o sol abaixar. Tem poucos membros da corte. — ele suspirou. — Midas está aguardando a sua chegada.
— Métodos?
Ele esboçou um meio sorriso. Entendi que não haveria uma explicação elaborada. Era bem óbvio, na verdade, não sei porque me dei ao trabalho de perguntar. Eu quis dizer outras coisas, mas tudo o que saiu pela minha boca foi:
— Por que os príncipes não estão no castelo?
Não estava realmente curiosa, apenas queria que ele continuasse ali. Mas até onde eu sabia, os príncipes sempre estavam no castelo. Nikosoli hesitou, preocupando-se em dedilhar a borda da janela. Ele afastou as cortinas com o indicador e apontou o dedo para a Floresta dos Alces, à minha direita.
— Fico lisonjeado por pensar que eu sei a resposta para todas as suas perguntas — ele suspirou, quase rindo, mas o som ficou preso. Nikosoli deixou o dedo deslizar pela superfície do vidro da janela, puxando a cortina para os lados. Pisquei quando o sol cortou a cabine ao meio, deixando a poeira visível entre nós.
— Bom, preciso perguntar a alguém...
— Prefiro não dizer nada até ter certeza do que aconteceu, mas, de todo jeito, não é nada de mais, definitivamente, nada com o qual você precise se preocupar. Tirarei você do castelo assim que identificarmos o que realmente está acontecendo e onde está o tal monstro.
Meus olhos quase saltaram para fora. Aquilo era uma surpresa que não sabia considerar se era bom ou ruim. Nikosoli, inconscientemente, continuava pedindo que eu não me preocupasse, o que só fazia eu ter certeza que ele não estava me contando alguma coisa.
— Como assim? Pensei que Midas...
— Pensou que realmente ele daria uma ordem para que você se livrasse do temor que assombra o castelo sem qualquer preparo? — Nikosoli riu. — Ele queria brincar com você, Celine. Não vai por algo tão difícil nas suas mãos, é muito arriscado. Pensei que fosse mais inteligente.
Seus olhos pousaram no meu braço, onde o arranhão do Leão Negro ainda brilhava em vermelho vivo. Magdalena tinha me ajudado a desinfectar o corte e trocamos os curativos nos últimos dias várias vezes para não infeccionar. Naquela manhã, com a chegada da carruagem, esqueci totalmente de cobrir a ferida.
Ele desviou o olhar para meu rosto, mas não perguntou nada.
Eu agradeci.
Ainda não havia tomado uma decisão a respeito daquilo, não tinha certeza se compartilharia com mais alguém o que aconteceu na noite do equinócio e rezava para que Mikhail fosse um Assassino discreto que não fizesse fofocas. Depois daquela reação inesperada no armazém, não me sentia segura em contar em voz alta de novo, muito menos para Nikosoli. Principalmente porque quando olhava para mim, às vezes, ele enxergava eu, Celine, às vezes via o fantasma da irmã. Era difícil saber quem ele enxergava naquele momento.
E não acho que contar a ele faria alguma diferença.
A lembrança do homem encapuzado, a voz fantasmagórica, o vazio nos olhos do Leão faminto me fizeram tremer. Aqueles olhos verdes chamuscando como brasas, espelhando a alma corrompida.
Apenas criaturas envolvidas com rituais profanos, demônios e maldições tinham os olhos daquela cor. Verdes. Ocos. Sem vida.
E eu jamais esqueceria aquela névoa. Aquele frio. Aquela sensação.
— Estamos quase chegando — Nikosoli anunciou após passarmos vários minutos em silêncio.
— Por que veio aqui? — perguntei o que estava me matando por dentro. — Espero que não esteja considerando me transformar em uma assassina também. Prefiro continuar apenas como ladra.
Nikosoli soltou uma risada baixa e colocou uma mecha do cabelo que havia caído para trás da orelha.
— Não. Você conseguiria sem problemas, não tenho dúvidas, mas não desejo que se torne algo como eu. — ele suspirou, e não consegui desviar o olhar. Eu também não queria aquilo, mas não disse nada. Não queria magoá-lo. — Vim porque queria lhe desejar Feliz Primavera.
— Que irmão atencioso, não é? — debochei, e ele fechou a cara, o que me fez rir. — Podia ter trazido alguma coisa para eu comer durante a viagem. Estou faminta
— Por que diria isso? — ralhou ele, mal-humorado. — Não somos irmãos de verdade.
— Fico aliviada.
— Não tenho tanta certeza. — ele rebateu. Eu ri, e Nikosoli bufou, levando a mão até o bolso interno da manta. Depois, esticou o braço em minha direção. Uma adaga fina de prata com uma pedra de rubi no espaço onde se apoiava o dedão repousava entre os dedos. Nikosoli colocou a arma em minhas mãos, a ponta da lâmina virada na direção de seu coração.
— Fique com isso — disse, fitando as próprias mãos. — Considere um presente de Equinócio.
— Obrigada. — foi tudo o que consegui dizer. Estava em choque. Torci para que o pânico não ficasse muito evidente em meu rosto.
Era uma arma linda. Prateada e brilhante, afiada e letal. A pedra era vibrante, vermelha tal qual sangue fresco. Linhas negras envolviam o punhal e eu quis saber empunhá-la com elegância, mas apenas me esforcei para não deixá-la cair.
— Prometa que vai carregá-la sempre com você — ele pediu, quase implorando. — Prometa que vai usá-la se for necessário, contra qualquer coisa, qualquer um.
O cocheiro gritou "ABRAM OS PORTÕES!" do lado de fora e eu me remexi, ansiosa, aguardando a adaga no bolso do vestido. Quando levantei o olhar para encarar Nikosoli outra vez, ele não estava mais lá. Em minha frente, apenas sombras, e um resquício de seu cheiro.
Sangue e sal.
Fiquei me perguntando se ele mirou a lâmina na direção do próprio peito intencionalmente, como um aviso. Fiquei me perguntando se ele quis dizer. Use-a contra mim também, se for necessário. Imaginei se talvez ele estava me ajudando não somente por eu me parecer com sua irmã, mas porque ele também sabia como era estar condenado.
Uma pontada me atingiu em cheio no peito.
Não como garras ou lâminas perfurando a pele, mas como se as sombras ao meu redor estivessem tentando se infiltrar dentro de mim. Como se tentassem abrir um buraco em meu coração.
— Prometo — sussurrei para a escuridão e fechei os olhos. — Feliz equinócio para você também.
O vazio no peito se alastrando mais e mais a cada batida. Não conseguia pensar em outra coisa. Não conseguia respirar. Fechava os olhos e tudo que eu via era a escuridão profunda, olhos verdes e dentes pontiagudos tentando me estraçalhar. Não tinha certeza se acabei desmaiando ou se estava apenas sendo deixada levar pelo pânico e ansiedade.
A única certeza que me assombrava naquele momento era perceber que eu estava sozinha de novo.
E odiei cada segundo.
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