⚔ Capítulo 16




AURIEL

         Calaon lia em voz alta a lista de compromissos, escondendo o nariz pontudo atrás das folhas amareladas. Eu bufei, e o conselheiro endireitou a postura, lançando um olhar curioso na minha direção por cima do papel entre uma frase e outra.

Se Calaon reparou nas marcas vermelhas no meu rosto, nada disse. E aquilo facilitava em muito meus desejos de manter os acontecimentos da noite anterior apenas para mim. Com certeza, Talius não seria tão discreto e não se limitaria a dar olhadas furtivas. Ele perguntaria diretamente ou faria uma piada sobre uma noite selvagem com alguma mulher, que estava bem longe ser meu conceito de noite ideal, então estava guardando minhas energias para esse momento.

Desde a primeira noite do equinócio, quando matei um Leão Negro e salvei aquela jovem de cabelos dourados, não voltei a esbarrar com Talius no castelo. Ele não me esperou para retornarmos juntos, o que me deixou um pouco irritado, é claro, mas eu entendia. Ele era um supervisor-mor agora e estava atarefado, ajudando a Sra. Dorthie a encaminhar os serviçais para o castelo de Prysen.

E eu, bom... Calaon estava tentando decidir se me matava de tédio ou de sono. Mas tentei me concentrar na minha tarefa.

Havia uma enorme quantidade de livros amontoados sobre a escrivaninha, formando uma pilha tão alta que quase alcançava a minha testa. Posicionei o último livro no topo e levantei da cadeira subitamente.

— Algo o incomoda, alteza? — perguntou Calaon. Ele era não apenas o conselheiro real, mas braço direito do Rei Valkran e cuidava pessoalmente da agenda de todos os membros reais da corte. Confiável e prestativo, como deveria ser. Mas muito intrometido, e infinitamente irritante.

Eu estava desesperado, realmente muito ansioso, para que o conselheiro também partisse logo para Prysen e deixasse que eu cuidasse de minhas tarefas e dos problemas de ReinLynch sozinho.

Abanei as mãos e lancei a Calaon o que foi uma tentativa de uma careta amigável. Não havia motivos para destratá-lo apenas por ser chato, eu não era tão ranzinza como meu irmão — na maior parte das vezes.

— Apenas preocupado com o que vi em Salden — não era uma mentira. Talius havia repassado as informações necessárias ao Rei e membros distintos da corte e, ainda que eu não soubesse exatamente o quanto meu amigo compartilhara com eles, todos já sabiam que havia um problema. Um bem grande.

— É realmente preocupante, alteza — Calaon suspirou, adicionando mais alguns comentários lamuriosos em concordância, seguindo meus passos até o corredor.

Caminhei, distraído, não notando a presença do conselheiro poucos metros atrás. Detestava aquela parte do castelo mais do que qualquer outra, principalmente depois da redução dos serviçais. As janelas eram mantidas fechadas constantemente, as grossas cortinas cobriam qualquer luz que ousasse entrar e eu sentia dificuldade em respirar durante todo o percurso.

Aquele era o corredor que ligava a maior parte das diferentes alas e torres do castelo, a Linha Mãe. Um longo tapete vermelho cobria todo o piso de lá a cá.

Eu me sentia preso em um labirinto infinito.

Ao dobrar a direita, virando o último corredor, uma escada larga de mármore e pedra surgiu e meu campo de visão. Arabescos e linhas pontilhadas enfeitavam o corrimão. Ao pisar no último degrau, suspirei, aliviado como se aquele fosse meu primeiro sopro de ar em duas décadas.

À frente, colunas de pedra enfileiradas substituíam as paredes em ambos os lados do corredor, criando vãos amplos entre um pilar e outro, por onde era possível ver os jardins, campos e colinas ao leste e oeste. O vento atravessava as aberturas sem precisar de convite, fazendo meu cabelo se debater.

Aproximando-se pela outra extremidade, vinha Talius. Eu parei, imediatamente, e girei o corpo para o lado, fechando os olhos ao sentir a luz do sol bater em suas bochechas.

— Devo me retirar, alteza? — perguntou Calaon ao notar a presença do supervisor. O príncipe confirmou com a cabeça. — Mais uma coisa, alteza. — continuou Calaon, chamando minha atenção. — O Príncipe Demetrius — abri os olhos ao ouvir o nome de meu irmão — ainda não deu notícias. Uma carta do Reino de Areia nos informou que a vossa alteza real, o Príncipe Demetrius, partiu de Shir há cinco dias.

— Obrigado, Calaon — respondi, voltando a fechar os olhos. O conselheiro se curvou em respeito e se afastou. Agradeci mentalmente por aquilo.

Suspirei, perdido em devaneios. Cabelos dourados e olhos pretos eram tudo o que eu via quando a escuridão vinha. E quando abri os olhos, não pude evitar sorrir ao vê-los sob a luz do dia.

— Sonhando acordado, alteza? — perguntou Talius, batendo em meu ombro com um sorriso debochado nos lábios. Evitei encará-lo. — Imagino que a noite tenha sido boa...

Olhos verdes, dentes afiados, gritos e sangue vieram à mente.

A noite do equinócio havia sido um completo caos, mas não era o que me assolava nas minhas noites de pesadelos. Não era o Leão Negro que me atormentava. Remexi-me, desconfortável, como sempre me sentia quando nós dois ficávamos sozinhos daquele jeito. Sentia-me caminhando sobre cacos de vidro.

— Sim — respondi, brevemente, despertando de meu transe —, foi bem... animada.

— O que é isto? — Talius apontou para o arranhão no alto de minha bochecha. Esquivei, correndo para a outra extremidade do corredor. Eu não gostava de deixá-lo me tocar, porque sabia que seria infinitamente doloroso, e nada teria a ver com o machucado no rosto.

— Caí da cama algumas vezes... — respondeu, evitando olhá-lo nos olhos.

Talius conseguia interceptar uma mentira a quilômetros de distância. Principalmente quando eu mentia. Apenas desejei que aqueles poucos metros entre nós fossem o suficiente para impedi-lo de me questionar. Ao menos por enquanto.

Talius balançou a cabeça, ainda suspeito.

— Haverá uma reunião com os membros do conselho hoje, às dezesseis horas, o Rei Valkran pediu que eu o informasse. — disse Talius, e não pude evitar os grunhidos de protestos. — A reunião será em Prysen.

— Ele espera que eu chegue em Prysen em duas horas? Por acaso Vossa Majestade sabe que eu ainda estou no castelo de Reinlynch? — ralhei, a fúria subindo minha colina e estalando meus ossos — Que fiquei para trás fazendo o trabalho dele?

Talius suspirou, cansado.

— O Rei não quer que você compareça na reunião, Auriel. Apenas pediu que eu o notificasse. — disse Talius, o tom de voz neutro, os olhos evitavam me encarar. Estava fixado no horizonte, bem longe dali. O rosto dele virado para o lado.

Talius estava bem mais magro do que me lembrava, as maçãs do rosto mais proeminentes, olhos fundos e cansados. Ainda assim, era tão belo quanto os raios do sol ao alvorecer.

Ele não tem culpa. Não desconte nele a sua raiva.

Levei as mãos até a cabeça, massageando as têmporas e gemi de dor ao mexer a coluna rápido demais. Talius me encarou fixamente, as sobrancelhas arqueadas.

— O tombo deve ter sido horrível... ele deu um tapa em minhas costas, fazendo-me arquear o corpo para trás e soltar um grito abafado. — Imagino que deve ter batido contra o mezanino mais de dez vezes...

Revirei os olhos, tentando disfarçar o arrepio que me percorreu.

— Algo parecido — respondi, sem emoção.— Calaon disse que não ouviu notícias de Dimitri ainda, e estou começando a ficar preocupado. Você soube de alguma coisa? — tentei mudar de assunto, fazendo Talius balançar a cabeça para os lados. — Meu pai o notificou da reunião? Alguém entrou em contato com ele?

— Não. — disse Talius, com pesar na voz. Sabíamos, nós dois, o que aquilo podia significar.

— Uma reunião. Às dezesseis horas? — repeti, desejando que não fosse verdade. Por que convocar uma reunião em Prysen? E não apenas convocá-la em um horário impossível de atender, mas me notificar apenas para que eu soubesse que estava sendo deliberadamente deixado de fora quando tudo que estive fazendo todos aqueles meses...

— Não faça isso — Talius riu. E eu murmurei um "O quê?" — Essa careta! Parece que acabei de roubar seu doce favorito.

Eu bufei, mas algo em seu tom de voz me fez relaxar um pouco mais. Estava com raiva do Rei Valkran, meu pai. Talius não tinha nada a ver com nada daquilo.

— Não podem mover a reunião para às vinte? — sugeri. — Ou para amanhã?

— Não — parecia que ele estava começando a gostar de dizer não para mim, percebi. — Aparentemente, não foi seu pai que convocou a reunião, Auriel.

Aquilo não fez minha raiva desaparecer.

— E onde você estará durante a reunião? — ralhei. Talius torceu o cenho. — Por que não está em Prysen agora?

— Tenho um... compromisso — ele respondeu, agitado. Senti algo me beliscar, como víbora peçonhenta e vingativa. Claro que tinha. — Além disso, o Rei pediu que eu ficasse com você.

— Não está fazendo um bom trabalho, não é? — disparei, com rispidez. Não medi o tom autoritário em minha voz, o que foi um erro, pois as palavras seguintes que ele disse feriram bem mais do que as garras do Leão Negro.

— Perdoe-me, alteza — ele disse, curvando-se. Meu coração despencou. — Posso cancelar meu compromisso e...

— Não. Não se incomode. — apressei-me em dizer, bufando em seguida. Nada estava saindo como o planejado. — Mas leve-me com você. Não há nada para fazer aqui — emendei, o tom de súplica, deixando claro que eu não estava impondo uma ordem real, e sim pedindo um favor.

Talius abriu a boca, pronto para protestar.

— Ontem não foi o suficiente? — Ele girou e me encarou, os olhos pretos cintilantes como pedras de carvão.

Ainda não decidira se contaria sobre O Leão Negro e em como a noite do Equinócio não fora exatamente como eu havia planejado. Neguei, cabisbaixo, em silêncio. Por mais que suspeitasse e tentasse se colocar no meu lugar sempre que podia, Talius não sabia como eu me sentia, não sabia o que significava ser um príncipe. Mas ele reconhecia um olhar desesperado quando via um.

Talius bufou.

— Está bem, mandarei prepararem Princesa... — ele disse, e eu sorri. — Partiremos dentro de três horas.

Começamos a caminhar lado a lado na passarela quando Calaon veio correndo em nossa direção, balançando um papel-cartão amarelado. Uma notificação oficial. Um pedido de ajuda. Eu não pensei que seria possível ver Calaon correr ou sequer flagrá-lo tão desesperado. Bastou um olhar rápido na direção de Talius para eu ter certeza que nosso plano para as próximas horas tinha saltado de um desfiladeiro em direção ao oblívio absoluto.

— O que houve? — perguntei, os olhos arregalados. Talius aguardava em silêncio ao meu lado, os braços colados nas costas, postura impecável. Calaon mirou-o com o cenho franzido e depois entregou a carta em minhas mãos.

— O Palácio de Guilea foi atacado. — ele disse, ofegante. — O mensageiro está em péssimo estado e já ordenei a Tiramus que preparasse seus cavalos. Os outros membros da Guarda já foram enviados a Prysen devido à reunião e não...

Levantei a mão, obrigando-o a parar de falar.

— Acalme-se, Calaon. Respire. — Abri a carta e li a caligrafia corrida. Era verdade. O Palácio de Verão do Reino das Estrelas havia sido atacado, um prisioneiro fugiu e os soldados que não morreram em batalha estavam em péssimas condições.

— O que fará, alteza? — Calaon tremia. Aquilo era um sinal, um mau sinal. Calaon era uma das pessoas mais seguras e inabaláveis que conhecia, era uma rocha impenetrável. Se o conselheiro estava abalado daquele jeito, estávamos realmente perto da ruína, talvez bem mais do que estaria disposto a admitir.

Bem mais do que conseguiria lidar.

Talius levantou a cabeça em minha direção, trocamos olhares que não soube ao certo como interpretar. Era minha decisão. Eu era o príncipe. E desejei não ser.

— Dimitri ainda não retornou e os demais serviçais foram dispensados — declarei, mais para reorganizar meus pensamentos em voz alta. — O Rei e a Rainha estão seguros em Prysen, cercados com os melhores guardas que o Reino das Estrelas tem a oferecer.

— Sim, alteza. — concordou Calaon, como se precisasse dar a última palavra, ainda que para assentir ao óbvio. Talius permaneceu quieto, aguardando, sem tirar os olhos de mim.

Não podia negar que adorei a última parte.

— O castelo de ReinLynch ficará vazio, não há motivos para deixarmos cavaleiros para trás. — olhei para Calaon, entregando-lhe a carta de volta. — Avise aos outros, todos eles, que preparem seus cavalos e aguardem nos portões.

— Sim, alteza. — concordou Calaon.

— Iremos para Guilea — disse, e Talius sorriu.

— Para Guilea, então.

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