⚔ Capítulo 15
Magdalena rodopiava sozinha, embalada pela música do desfile que tomava a praça principal. Minha irmã costumava adorar sentir a brisa fria em contato com o calor que envolvia o corpo agitado, dava para perceber em seu rosto, o sorriso de orelha a orelha.
Eu estava a poucos metros de distância, mas ela ainda não tinha me visto. Quase senti vontade de dar um prêmio a ela por ter conseguido controlar a animação e esperar no portão do cemitério, quietinha, durante todo aquele tempo que um leão mágico maligno tentou me comer viva.
Magdalena lançou um olhar rápido para a trilha pouco movimentada atrás das barracas de doce e vinho, procurando por alguma coisa. Senti vontade de rir quando notei a mão esfregando a barriga e o olhar caído encarando o velho restaurante do Makei. Ela estava com fome.
Magdalena estava tão distraída que não percebeu quando me aproximei. Pulou, assustada, quando toquei seu ombro.
— Ah, é você! — disparou ela, abrindo um sorriso. — Fiquei aqui o tempo todo, estou congelando e com fome... Podemos comer alguma coisa antes de voltarmos para casa? — perguntou, puxando meu braço e fazendo beiço.
Estava prestes a responder, invocando minha melhor postura de irmã alegre, mas hesitei, e Magdalena levantou a cabeça, analisando-me tão atentamente que senti vontade de me esconder.
Eu não queria sequer pensar em como estava minha aparência, a única coisa que eu sabia era que meu tornozelo queimava como se tivesse sido gravado com ferro quente.
Imaginei que meu cabelo estivesse um completo caos, pois Magdalena arregalou os olhos e puxou uma folha verde-amarelada intercalada entre um fio e outro. Depois ela fitou meu braço, onde um arranhão se estendia desde o pulso até o cotovelo.
— Céus! — exclamou ela, tocando a linha vermelha. O corte era profundo, mas a adrenalina ainda corria no meu corpo e eu só conseguia sentir dor no tornozelo. — O que aconteceu? Parece que uma matilha de lobos passou por cima de você! — Magdalena me encarou, e naquele momento quase esqueci que eu era a irmã mais velha.
— Quase isso — tentei rir, mas ela apertou meu braço e soltei um grunhido. — Não faça isso.
— Você está bem?
Balancei a cabeça.
— Um cão raivoso apareceu e precisei... subir numa árvore — menti, e ela assentiu, murmurando um "Oh, entendi".
Respirei fundo e puxei-a para um abraço. Odiava mentir, principalmente para ela. Soltei um suspiro aliviado por ela ter permanecido ali, em segurança, e espantei os pensamentos ruins.
Magdalena continuava espantada, com ambos os braços caídos ao lado do corpo, mas me abraçou de volta.
— Está com fome? — perguntei, já sabendo a resposta, e Magdalena se afastou dos meus braços, balançando a cabeça positivamente. — Vamos, então! — disse, empurrando a mais nova para frente, costurando o caminho por entre ombros e braços de todos os tamanhos que se postaram em nossa frente.
Durante todo o percurso até o restaurante de Makei, evitei olhar para trás.
Não gostaria de pensar no que teria acontecido caso aquele homem dos cabelos vermelhos não tivesse aparecido do nada para me salvar. Ainda era estranho, mas estava agradecida. Ninguém em sã consciência entraria na Floresta das Almas na noite do equinócio de primavera, ainda mais se ouvissem gritos desesperados.
Era agouro.
E mesmo que eu não acreditasse nas superstições e nos mitos do Reino das Estrelas, muitas criaturas aterrorizantes viviam naquela floresta. Com certeza eu teria morrido se a Deusa não tivesse enviado aquele cavaleiro.
Talvez ela realmente ouvisse nossas orações, afinal. Se aquele homem não tivesse aparecido, eu teria virado comida de leão.
Um calafrio percorreu minha espinha e engoli em seco ao me lembrar dos olhos verdes do monstro, era como encarar o vazio. Refletido neles, vi a própria morte.
Mas os protestos de Magdalena me tiraram do transe e logo percebi que já estávamos de frente para o restaurante.
Assim que nos acomodamos em uma das mesas, a esposa de Makei, Sra. Carlota, se aproximou e anotou os pedidos de Magdalena. Minha irmã estava faminta, então abusou um pouco mais do que deveria. Sucos, pães, sopa de couve e ervilha, um pote de mel acompanharam pedaços cortados de costela.
Magdalena encarou, boquiaberta, a quantidade de comida, salivando como um cachorro esfomeado. Eu teria achado engraçado se não estivesse tão destruída. Observei em silêncio enquanto minha irmã devorava a comida, alternando a atenção entre uma bandeja e outra. Mal conseguia manter os olhos abertos, senti o estômago revirar e reprimi a vontade de vomitar ao me deparar com a quantidade de sangue escorrendo do pedaço de carne assada.
Aqueles pedaços de carne só me lembravam de que, por muito pouco, eu não tinha me tornado a refeição de um animal. Ao desviar a atenção para as outras mesas ao fundo do restaurante, identifiquei um rosto familiar atrás da multidão. Encostado na parede, distante de todos, alerta como um falcão, estava Mikhail.
Murmurei alguma desculpa à Magdalena e me afastei, deslizando entre as mesas até o canto afastado do restaurante. Mikhail usava uma bandana diferente daquela vez, era um tecido preto, bem fino e sem qualquer outra cor ou arabesco decorando. Um casaco pesado caía sobre os ombros cobrindo as outras vestes. As mãos estavam escondidas no bolso do casaco.
Ele deslizou para os fundos do estabelecimento, abrindo uma porta que dava acesso ao cômodo de mantimentos. A lâmpada piscou algumas vezes e, então, a luz firmou bem no meio do teto. A porta se fechou atrás de mim quando passei sem emitir qualquer som.
— Por onde andava? — ele perguntou, e orei para conseguir ter contido minha surpresa. Era a primeira vez que eu ouvia a voz de Mikhail. Era suave, jovem, muito diferente da amargura e perigo mortal estampada no rosto liso.
Mikhail estava parado na minha frente com uma faca apontada na minha direção. Ali, sob a luz silenciosa e pouca agitação, conseguia perceber detalhes que não reparara antes. Ele usava argolas penduradas no lóbulo da orelha, uma tatuagem cobria o pescoço, os olhos eram castanhos, dóceis, mas a expressão estava bem longe daquela doçura inocente.
O que ele estava esperando de mim? O quanto será que ele sabia sobre os planos de Nikosoli? Será que o assassino confidenciara a Mikhail alguma coisa?
Encarei a ponta da lâmina e suspirei. Não valia a pena arriscar.
— Eu estava no cemitério, fazendo uma visita — dei ênfase, tentando parecer estar ofendida com o olhar acusatório.
— Não minta. — Ele aproximou a faca do meu rosto, e cambaleei para trás. Mikhail não era Nikosoli. Mikhail servia a Midas. — Deixou sua irmã sozinha e desapareceu, eu estava lá. Vi tudo, não minta ou piorará as coisas para as duas.
Foi a primeira vez que ousei encará-lo. Mikhail empunhava uma faca na minha direção.
— Viu tudo o quê? — estreitei os olhos. — Diga, então! O que viu? Estava lá, não? — bufei — Parece que ser bom assassino não significa ser um bom mentiroso. Se você estava lá e viu tudo, por que essa interrogação? — apontei para os arranhões no meu braço. — Onde estava você quando aquele maldito invocou aquele leão para me devorar inteira?
Eu gritava, avançando em sua direção. Mikhail abaixou a faca e girou a cabeça para o lado, como um cão confuso.
— Leão? — Mikhail guardou a faca no casaco e levou a mão direita até a minha. Hesitei, mas seu aperto era firme, então acabei cedendo. Ele puxou e girou meu braço, examinando o estrago. — Você foi atacada?
Ele parecia chocado.
— Não acha que eu fiz isso em mim mesma, não é? — rebati, já estava sem paciência. Mikhail balançava a cabeça.
— Ele me pediu que ficasse de olho em vocês essa noite, por precaução. — explicou, soltando-me logo em seguida. Mikhail levantou a cabeça, encarando-me e deixei soltar um "Ah..." — Sim. Ele mesmo.
— Nikosoli? — indaguei, exasperada. Mikhail assentiu. — Então, ele confia em você. — Mikhail concordou com a cabeça outra vez. — Se ele pediu para me proteger, por que chegou me crucificando?
Ele arqueou a sobrancelha.
— Não estou... acredite, estou do seu lado. Precisei apenas confirmar que não havia fugido. Aconteceu um... problema e precisei deixar meu posto por alguns minutos — ele confessou, guardando as mãos outra vez nos bolsos. Ele estivera vigiando à mim e minha irmã durante todo aquele tempo? — Quando voltei, não apenas você tinha desaparecido, mas sua irmã também. O que eu deveria pensar?
Mikhail bufou.
— Pensou que eu fugiria? Não faria...
— Ah, mas você irá — interrompeu ele, e os olhos castanhos ficaram escuros. — Ao menos, deveria. E Nikosoli está arriscando tudo por você, apenas... — Mikhail parou, fechou os olhos e respirou como se tentasse expulsar uma memória terrível para bem longe dali. — Bom, eu não podia simplesmente não vir até aqui conferir. Precisava checar se estavam bem... Não por ordens de Midas ou por sua segurança. — Não poderia me importar menos com você. — ele pausou ao notar minha careta. Mas senti certo alívio, ao menos ele era sincero. — Ora, não leve a mal.
— Não se preocupe, o sentimento é recíproco. — Aquela noite, definitivamente, não poderia ficar pior. — Por que está aqui, afinal? Se não se importa. Mikhail bufou, como se eu tivesse dito que elefantes podem voar ou que o sol é feito de gelo, encarando-me com aquele olhar incrédulo, como se eu fosse burra.
— Por ele, é claro! — disparou Mikhail. — Nikosoli é minha família. E ele se importa com você. Por isso estou aqui. — ele sorriu, os olhos tristes. — Mas não acho que ele deixaria eu viver se algo tivesse realmente acontecido sob minha supervisão.
Mikhail falava com leveza e humor perverso em seu tom de voz, como se estivesse aliviado, mas ao mesmo tempo, contemplasse aquela ideia de uma tragédia acontecer. Mas a expressão facial permanecia a mesma, como uma máscara. Talvez fosse realmente mais fácil. Eles eram uma equipe, uma família, ou o mais perto que podiam chegar de construir uma. Eu era a invasora causando problemas, eu era uma lembrança de um fantasma do passado.
Você me lembra alguém com quem falhei muitos anos atrás. A voz de Nikosoli invadiu minha mente. Minha irmã.
Era verdade, então.
— Ela morreu? — Indaguei. — A irmã dele.
Mikhail dedilhou a estante de suprimento. Poeira e sujeira acumulada grudaram em seus dedos, mas ele continuou, totalmente despreocupado, sem se incomodar com a minha pergunta. Mikhail apanhou um pedaço de queijo e carne de cordeiro curada, enfiando-as no bolso interno do casaco. Pude ver uma corrente dourada com pingente de cruz caída ao redor do pescoço.
— O destino deles sempre foi pior que a morte, acho — declarou por fim, arrancando a rolha da garrafa de vinho com o dente. Ele cuspiu-a no chão e virou a botija na boca, sem qualquer cerimônia. — Mas não sei se ela está viva, morrendo ou morta. Arrisco dizer que ele não faz ideia também.
Mikhail devolveu a garrafa de vinho à estante, deitada junto das outras. O recipiente, antes cheio, agora preenchido somente até a metade. Revirei os olhos. Os terríveis e cruéis Assassinos de Bear, grande merda eles eram. Beberrões Inglórios seria um título mais apropriado.
— Parece estar com fome — comentei ao observá-lo furtar mais um pedaço de queijo.
Mikhail abanou as mãos, limpando-as no casaco em seguida.
— Faminto — confessou ele, mordendo um pedaço de pão velho, que roubou da cesta coberta alguns centímetros atrás dele. Mikhail continuou avaliando os potes e tigelas de geleia e mel, empilhando pastéis de codorna entre azeitonas coloridas em conserva dentro de uma jarra vazia. — Não me julgue. — ele disparou e pisquei algumas vezes, corrigindo minha expressão facial. — Graças a você e sua irmã, não tive tempo para comer.
— Não me importo — disse, e era verdade. A sombra de um sorriso despontou na ponta da boca, mas ele não cedeu totalmente. — Já posso ir embora?
Mikhail assentiu.
— Espera, espera. — pediu ele, quando minha mão já estava tocando na maçaneta. Bastava um giro, um único movimento rápido. Suspirei, derrotada e me virei em sua direção. — Disse que te atacaram... Um leão? — ele ainda comia o pedaço de pão, mastigando entre uma palavra e outra. — Como ele era?
— Preto — contei, tentando afastar a lembrança. A vozes, as fumaças, os rugidos e as garras que apreciam lâminas. — Todo preto, como a Noite Sem Fim. Exceto os olhos, eram diferentes... eram...
— Verdes? — ele indagou, o olhar arregalado. O pão caiu de sua mão quando concordei, ele avançou até mim. — Preciso ir. Leve-a para casa e não faça nada idiota. — ele parou na metade do caminho e me encarou. — Por favor.
— Está certo.
Ele sorriu. E parecia uma criança de doze anos.
— Se serve de alguma coisa, não acho que ele o vê como uma irmã. — Mikhail piscou e eu engoli em seco. Não era uma informação que eu conseguiria digerir ainda.
Pensei que Mikhail fosse chamar as sombras, como Nikosoli fazia, e desaparecer com estilo na bruma de escuridão. Mas não foi isso que aconteceu. O Assassino de Bear apenas me empurrou para o lado, abrindo a porta do armazém. A música e o falatório nos cumprimentou. Ele não se incomodou em levantar o capuz ou se misturar na multidão para não ser notado, apenas correu e desapareceu porta afora do restaurante como um raio em movimento.
Refiz meus passos até Magdalena, que ainda se empanturrava com a carne de cordeiro e, notei, uma nova bandeja de pães foi entregue na mesa durante minha ausência. Magdalena levantou a cabeça, mostrando os beiços sujos de molho e onde uma camada fina de bigode se formou entre a boca e a ponta do nariz. Não pude deixar de rir.
Ao menos, mesmo enquanto tudo parecia ruir, ainda conseguíamos ter momentos como aquele; momentos onde as cores não eram tão sombrias, os medos não sufocavam, a esperança ainda ecoava e onde o sol estava prestes a surgir.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top