⚔ Capítulo 12

     


         As luzes, os tecidos coloridos e a cacofonia familiar da praça davam vida à multidão caótica que fluía na cidade como tempestade em mar aberto.

A quietude da noite, que costumava ser uma anfitriã constante na cidadela durante os dias comuns, havia sido substituída pelas risadas, gritos animados e música. As notas das canções populares davam ritmo ao desfile enquanto palhaços, bailarinas e fantasias animalescas eram exibidas nas ruas. O povo trocava suas roupas habituais por vestidos brilhantes e calças espalhafatosas. Alguns golins se fantasiavam de ferreiros, fadas guardavam as asinhas e colocavam narizes falsos e pontudos enquanto os humanos abusavam do pó de arroz e pasta brilhante de ostras para tingir o rosto sem graça.

Afinal, aquela era uma noite especial, de alegria e celebração.

O primeiro dia do festival da primavera costumava ser o mais alegre dentre os três, pois todos ficavam ansiosos para ver a queima de fogos de artifícios. No penúltimo, a música ainda tomava as esquinas, mas as fantasias eram limitadas aos artistas do desfile. No último dia, a celebração perdia a força quase totalmente, e apenas as crianças aproveitavam a música e a dança. As barracas de comida, no entanto, continuavam sempre lotadas.

A cordialidade dos habitantes da cidadela permanecia viva até a manhã de domingo, quando o bater dos sinos da capela soava por toda a cidade. Mas, gradualmente, ao final das orações, conforme o sol frio da manhã se despedia, os sorrisos e gestos de generosidade também começavam a ir embora.

Eu não me importava muito com a queima de fogos ou com as fantasias. Meu interesse em sair do chalé naquela noite residia em outro lugar.

Mal havia dado dois passos para fora do chalé quando bati os olhos nos espetinhos de frango e tortinhas de damasco nas mãos de algumas crianças que corriam e gritavam enquanto brincavam com suas fitas coloridas. E aquilo me fez sorrir.

Acordei naquela manhã decidida a deixar todos os problemas e dramas que me assolaram durante os últimos dias para trás. Uma noite. Era tudo que eu queria e precisava. Uma noite sem precisar fingir ser alguém que eu não era, uma noite sem pensa em Midas, Eugênio ou Nikosoli. Uma única noite em que eu não era uma condenada pelas mãos do destino.

Era tudo o que eu queria.

A trilha de pedras que conectava o chalé ao centro da Cidadela estava entupida. Carroças, burros, goblins e outras criaturas de várias formas e tamanho cercavam todo o caminho. O chalé não ficava a uma distância tão longa da praça principal, onde as grandes apresentações realmente aconteciam durante a passagem do circo pela cidade, mas aquela era a rota mais rápida. Virei à esquerda, satisfeita pela trilha do bosque selvagem estar deserta. Eu não estava indo até o centro, de todo o jeito, então preferi evitar seguir pelo caminho menos óbvio.

Totalmente pronta, bati as mãos sobre o pano da roupa e disparei entre os cascalhos, grama e galhos. Exibi meu melhor sorriso enquanto corria. No fundo, torcia a cada batida de meu coração para que pudesse ter aquela noite inteira para mim, para que Nikosoli continuasse escondido nas sombras, que Midas não me intimasse ao palácio de surpresa, e que Eugênio cumprisse a sua palavra de sumir para sempre. Torcia para que, naquela noite, ao menos, nada nem ninguém além das estrelas e flores da primavera respirassem.

O vestido verde de tule e renda branca balançava para os lados conforme eu corria. Sob a saia plissada, o forro de algodão se escondia. Era um vestido bonito, sim, mas não chamava atenção no meio de tantas outras vestimentas mais extravagantes. Os machucados do treinamento pesado já tinham desaparecido quase totalmente, e minhas pernas não doíam mais. Algumas semanas haviam se passado desde o incidente no Valkirian, e desde então, nenhuma ordem me fora dada, nenhum Assassino de Bear retornara à cabana com novas instruções e consegui viver como Celine.

Era quase um milagre. Toda aquela história de acordo, mortes, reis e sangue desapareceram. Era como acordar e perceber que tudo não passara de um pesadelo. Mas eu sabia a verdade. Sabia que Midas estava apenas aguardando, e que em breve eu teria que me juntar a eles outra vez. Ofegante, tentei expulsar esse pensamento para longe. Fiquei feliz por conseguir correr sem sentir os ossos rangerem ou os músculos reclamarem. Ao menos, o treinamento com Nikosoli foi útil em tornar meu corpo mais resistente.

Estava me sentindo bonita, livre, selvagem. Para o festival, escolhi prender o cabelo em um coque elegante que minha mãe costumava fazer em Magdalena — com a habilidade que jamais possuíra. Mas alguns fios teimosos insistiam em se eriçar, levando a elegância para bem longe.

Eu não tinha o dom de me embelezar e ficar verdadeiramente satisfeita com o resultado igual às outras de minha idade. Por mais que tentasse, jamais conseguiria ficar elegante com as roupas velhas e furadas que normalmente costumava usar, mas o festival de equinócio era uma data importante e meu coração doía um pouco só de pensar o quão bom seria poder esbarrar em Abel no meio da multidão.

Ele costumava ansiar pela chegada da primavera como um louco, todos os anos, passava os trezentos dias comparando o equinócio com o solstício e o quão superior o primeiro era em relação ao segundo. Era uma cultura forte no Reino das Estrelas, comemorar a virada das estações. E Abel levava isso ainda mais a sério.

Mas eu sabia que jamais poderia ver seu sorriso ou olhos brilhantes outra vez do jeito que eu desejava. De todo jeito, com ou sem Abel, eu queria me sentir bonita naquela noite. Ainda que não pudesse me encontrar com ele como nós dois esperávamos, já tinha decidido lhe fazer uma visita rápida há bastante tempo.

— CELINE! — alguém gritou assim que, finalmente, consegui avistar a praça. Eu continuava um pouco longe da comemoração, mas, de onde estava, era possível ver as bandeiras do Reino das Estrelas balançando no topo das pilastras que rodeavam a fonte de pedras.

Tijolos quebrados espetavam meus pés quando girei em direção a voz conhecida. As sapatilhas já eram gastas e conseguia sentir todas as irregularidades do chão conforme pisava. Tentei não fazer careta quando encontrei Magdalena ao meu lado.

— Mamãe não sabe que fugi — disparou, antes que eu pudesse me atrever a dizer qualquer coisa. Minha irmã ofegava e a pose cansada sugeria que viera correndo até ali —, mas agora que estou aqui... — ela mostrou os dentes. — Por favor, por favor... Leve-me com você ou...

— Não!

— Por favor, Celine! Por favor! Por favor! — ela agarrou a barra do meu vestido, como uma criança de cinco anos. — Por favorzinho!

Está bem! — interrompi, quase rangendo os dentes. Magdalena se encolheu, hesitante, e me arrependi. Em seus olhos brilhantes pude ver a animação queimando como os fogos de artifício que em poucas horas explodiriam nos céus.

Ela não deveria estar ali. Ainda era perigoso. A voz dizia. Eugênio pode estar aprontando alguma coisa e depois sobrará para ela! Suspirei. Por quanto mais tempo ela e minha mãe continuariam reféns do medo? Nikosoli estava tentando me ajudar, mas nada sabia sobre os outros problemas que meu pai causava na cidade, Midas me dera um acordo. Outros não seriam tão misericordiosos. Limpei a garganta, acariciando o topo da cabeça de minha irmã. Ela estava tão empolgada, as bochechas rosadas pareciam duas maçãs suculentas. Bufei, derrotada. Não poderia obrigá-la a voltar, pois sabia que ela não me obedeceria.

E também não queria ter que arrastá-la até o chalé e perder a chance de visitar Abel. Já tínhamos desgraças colecionadas pelo resto do ano, talvez devesse levá-la comigo e depois poderíamos aproveitar aquela noite de equinócio juntas.

Uma noite. Como uma família.

Eu sorri.

— Vamos logo, então — declarei, e ela comemorou batendo palmas.

Magdalena envolveu minhas mãos em seus dedos pequenos e me puxou, saltitando a cada passo. Os olhos arregalados e curiosos de minha irmã não conseguiam pousar em uma só atração. Era a primeira vez que ela vinha ao festival da primavera, pois mamãe insistia em comemorarmos em casa todos os outros anos, bem longe do caos da celebração das ruas de Reinlynch.

Magdalena vibrava a cada passo, admirando os palhaços, malabaristas e dançarinas das trupes de circo que só visitavam a cidade nessa única noite especial. Ela evitava piscar a qualquer custo, como se cada segundo daquele momento necessitasse de sua fiel observância, guardando as luzes e movimentos como um tesouro mágico precioso.

Era engraçado e adorável.

Deixei de reparar na alegria de minha irmã assim que me deparei com a tenda de petiscos do Makei. O delicioso cheiro de carneiro assado preenchia a esquina, cobrindo o odor pungente de sujeira e álcool que tomava todo o perímetro.

— Celine! — ele gritou ao me ver. — A joia mais rara do continente! — O cozinheiro abriu um largo sorriso, as bochechas rosadas brilhando com o suor que escorria da testa.

Atrás do balcão improvisado de madeira, o homem acenou. O avental sujo por cima da barriga saliente, o rosto redondo e familiar fizeram um calor confortável se acender dentro de mim. Era uma imagem que trazia conforto. Eu me aproximei e cumprimentei o homem com um abraço rápido por cima do balcão.

Makei servia o melhor carneiro assado de toda a região, era o único que deixava a carne suculenta, saborosa e macia todas às vezes, sem exceção. Uma receita secreta de família, dissera uma vez. E, por esse motivo — mas não somente —, era uma das minhas pessoas favoritas de toda a cidadela. Claro que, o bigode esquisito e a personalidade admirável também entravam na conta, mas a comida... só de pensar, minha boca já salivava.

— Entrem — disse Makei, batendo o pano úmido, que carregava por cima do ombro, em cima da tábua de madeira.

Atrás dele, a porta para o restaurante estava semiaberta e um falatório concentrado em temas variados preenchia o lugar.

Balancei a cabeça lentamente.

— Estou indo encontrar um amigo. — respondi, sustentando o sorriso mais cordial que conseguia. Pelo canto do olho, percebi, Magdalena lançou-me um olhar curioso, quase assustado. — Passarei aqui mais tarde... Mande lembranças à Carlota por mim — desejei, por fim, antes de me afastar.

O homem assentiu com a cabeça e eu me virei, deixando ele, a tenda e o restaurante desaparecerem no meio da multidão enquanto nos afastávamos.

— Encontrar um amigo? — minha irmã perguntou. — Você não tem amigos.

Aquilo poderia ter soado cruel vindo da boca de outra pessoa, mas Magdalena não era uma criança que via maldade em seus comentários.

— Tenho amigos — menti, então ela arreganhou os olhos.

— Nós vamos naquele lugar? — indagou, apertando minha mão com toda a força, pude senti-la vibrar quando o calafrio percorreu seu corpo. — Não gosto de ir lá, Celine. Seu amigo...

— Não se preocupe, estarei ao seu lado o tempo todo. Não precisa ficar com medo, vamos voltar bem rápido — respondi, e continuamos em frente.

Durante todo o caminho, Magdalena permaneceu em silêncio, seguindo meu encalço quase como uma segunda sombra. Não se desvencilhou de mim em nenhum momento. Andamos bem rápido, evitando o calor da multidão. Magdalena percorreu o trajeto com os olhos grudados no chão e somente percebeu que havíamos chegado quando parei em frente às grades do portão de ferro.

— Estou com frio — resmungou ela, assim que soltei sua mão para empurrar o portão, o rangido ecoando como se mil correntes metálicas se arrastassem umas nas outras.

— Venha, logo o frio vai passar.

Andei na frente, oferecendo-lhe a mão para ela segurar outra vez. A minha irmã era inteligente, e bem mais corajosa do que eu, conseguia facilmente pôr o medo de lado quando significava atender as necessidades de algo ou alguém mais importante. Então ela veio até mim sem reclamar, arrastando os pés a cada passo. Ela segurou-me pelo tecido da saia quando se aproximou o suficiente.

Árvores de copas largas e troncos cumpridos cercavam todo o perímetro do terreno, rochas cobertas por líquens e arbustos se amontoavam entre as lápides de granito que surgiam a cada meio metro. Não havia luz alguma para iluminar o caminho, mas alguns vaga-lumes sobrevoavam as árvores na entrada da floresta um pouco atrás.

As sombras regiam o cemitério com autoridade, egoístas, ofuscando o brilho das estrelas e da lua acima. Suspirei e continuei marchando sem me dar ao trabalho de responder minha irmã ou olhar para trás.

Não era para ela estar ali.

Poucos passos depois, parei, imóvel, encarando a terra com o peso de um mundo inteiro de lágrimas sufocando a garganta. Magdalena manteve-se afastada — em parte por consideração, em parte por detestar a ideia de se aproximar ainda mais de corpos em putrefação soterrados.

Ela odiava cemitérios. E eu não podia culpá-la.

Magdalena manteve uma careta pendurada no rosto durante todo o tempo que fiquei estagnada ali, soube disso porque girava a cabeça o tempo todo em sua direção, preocupada que pudesse sair correndo para longe a qualquer minuto. Mas ela continuou lá. Parada. Ela ainda não entendia a dor do luto e mesmo assim tentou, esforçou-se para colocar meus sentimentos em primeiro lugar mesmo que desejasse estar ali.

Eu não queria desperdiçar a sua única chance de aproveitar o festival prendendo-a ali comigo, obrigando-a a secar minhas lágrimas, não mesmo.

— Quer me esperar do lado de fora? — perguntei, virando-me em sua direção.

Ela balançou a cabeça, assentindo, ainda hesitante. Eu sabia que Magdalena não queria ficar sozinha, mas odiava ainda mais a ideia de continuar ali no cemitério.

— Tem certeza? — ela torceu o cenho.

Enfatizei que sim, assentindo.

— Não vou demorar, pode ir... — incentivei. — Se alguém tentar se aproximar de você, corra de volta para cá imediatamente, mesmo que sinta medo.

— Está bem — concordou, correndo até o portão de ferro, em direção às cores, dança e vida que tangenciavam o perímetro escuro e sombrio do cemitério. Suspirei quando ela desapareceu entre as árvores e sombras, fechando os olhos diante do silêncio, embalada pela dor e lágrimas.

Encarar o nome de Abel cravado na lápide era como receber um soco no estômago. Ele era apenas um ano mais novo do que eu quando caíra do penhasco e fora levado pela correnteza do rio Caluen até o mar. A lápide e a cova eram meramente alegóricos, o corpo dele não estava ali. Eu estava prestes a começar uma oração quando um estalo agudo e uma sequência de sussurros chamou minha a atenção. Já tinha visitado aquele túmulo vezes o suficiente para saber que aquele barulho não era comum. Mas, na calada da noite, o menor dos ruídos acabava soando como as trovoadas enlouquecidas de uma tempestade. Limpei as lágrimas e olhei em volta, assustada.

Magdalena? — chamei, girando o corpo para os lados. Apenas o vento gélido e o céu faziam-me companhia. — Nikosoli? — Arrisquei. Fazia um tempo que ele não aparecia, talvez estivesse nos seguindo, mantendo certa distância devido à presença de minha irmã. — É você?

Desejei que fosse.

Clamei pelo perigo conhecido. Por encontrar o rosto dele saindo das sombras, atrás das pilastras de pedra e mausoléus de mármore, porque seria mais fácil... mais fácil do que enfrentar um terror incógnito. Mas não houve nenhuma resposta. A voz cresceu no silêncio, ecoando ainda mais alto. Reconheci na entonação estranha das palavras sussurradas os dizeres de uma língua antiga, que só existiam nos livros esquecidos da Antiga Lymurian, bem antes de os Reinos serem divididos.

Tracei um caminho pelas sombras, seguindo o som arrastado, interrompendo meus passos no instante em que um segundo estalo soou perto de meu ouvido. Senti uma energia me puxar em direção a luz flutuante que tomava forma. Um brilho esverdeado iluminou uma das lápides alguns metros à frente. Foi então que eu vi. Não era Nikosoli, tão pouco Midas ou os Assassinos de Bear.

Era algo pior.

Reprimi o grito e me agachei antes que a criatura pudesse me ver.

Uma figura comprida e encapuzada segurava uma espada de cabo curto e lâmina longa na mão direita, apontando-a para o céu noturno. A arma era tão prateada quanto a lua e a lâmina, fina tal qual a de um punhal cigano. Os ombros largos e a postura indicavam que, sob as vestes negras, escondia-se, sobretudo, um homem. Uma máscara prateada cobria-lhe o rosto e ele não estava sozinho. Ao seu lado, um homem de estatura mais baixa, com semblante gélido, trajando vestes pretas, conjurava uma centelha esverdeada sobre a palma das mãos.

Um brilho incomum reluzia em seus olhos, como chamas incandescentes de um fogo recém aceso, exceto pela cor: eram verdes. Havia uma bruma sutil que embaçava a vista ao redor da dupla misteriosa. A fumaça densa e preta se misturava ao verde brilhante, como serpentes vivas, sibilando. Dei um salto para trás e depois me inclinei, quase rastejando no chão entre os arbustos, contendo o instinto de correr para não ser vista. Eu conhecia aquelas coisas, eram sombras.

Iguais as de Nikosoli.

Olhos verdes como aquele, reluzindo como o fogo do inferno, chamuscando e vibrando entre as sombras, aquilo definitivamente não era um bom sinal. Preto era a cor do vazio. Representava o luto, sobretudo, a dor da perda. A ausência. Era algo frio, sem sentimentos. Mas o verde, esta era a cor da morte.

Talfryn. — disse a mesma voz rouca e arrastada, com o sotaque carregado. Ele definitivamente não era de ReinLynch, tão pouco de algum outro Reino em Lymurian, mas falava com uma naturalidade atemporal. O homem mascarado abaixou o braço que empunhava a lâmina e voltou-se para o jovem à sua esquerda. — Acho que não estamos sozinhos

— Ouvi também — o segundo respondeu —, deve ser alguém comemorando o equinócio.

Estiquei o pescoço, espiando por entre os arbustos. Torcia para continuar escondida, torcia para que as sombras conseguissem me camuflar.

— Cuide disso, não temos tempo a perder — murmurou, fechando os olhos, deixando uma interrogação pairando no ar. O homem mascarado estalou os dedos e inspirou profundamente, os ombros subindo e descendo. As sombras o envolveram e ele desapareceu.

O segundo homem ficou sozinho. O brilho verde havia se dissipado junto às sombras expurgadas, levando sua aparência a um estado comum outra vez. Ele não aparentava ser muito mais velho do que eu, não havia linhas de expressões em seus olhos, a pele era lisa e branca como mármore; o cabelo prateado reluzia sob o luar; o nariz era cumprido e os ângulos pontudos do rosto davam-lhe um charme e elegância mórbida. O homem fez as sombras desaparecerem. Seus traços se tornaram menos turvos e pude observar melhor enquanto ele caminhava ao redor dos túmulos.

De repente, ele parou. Inspirou profundamente, arregalou os olhos, mirando o indicador na direção dos arbustos. Para o meu arbusto, onde eu estava escondida.

— Te achei.

Prendi a respiração, tampando a boca e o nariz com as mãos, e engatinhei em direção às árvores. Não foi uma boa ideia. Percebi um pouco tarde demais que estava cada vez mais longe do portão do cemitério, infiltrando-me entre os troncos largos das árvores da floresta.

Rezei para que o esconderijo temporário fosse o suficiente, rezei para que aquilo me mantivesse segura. Não tinha como ele me rastrear, não é? Mas quando um rugido animalesco cortou o silêncio, não tive mais coragem para rezar. Só consegui sentir pânico.

— Saia — ordenou a voz, soando bem mais etérea e ameaçadora do que antes. — Por que está se escondendo?

Continuei em silêncio, escondida. Sabia muito bem que não seria nada inteligente responder. O urro de um animal preencheu o cemitério. Arrisquei olhar, apenas para ver o homem se transformar em uma criatura de quatro patas envolvido por sombras verdes. Talfryn, como o mascarado o havia chamado, rugiu, tão alto e grotesco que as folhas das árvores se balançavam conforme os pássaros se agitaram.

Empalideci. Aquele não era um som agradável. Eu precisava sair dali rápido, ou acabaria morrendo no cemitério, que irônico. Um terceiro estalo ecoou. Meu sangue começou a gelar. Murmurei um último pedido aos deuses antes de lançar uma olhada rápida outra vez para a figura monstruosa a poucos metros de mim. Arrependi-me assim que nossos olhos encontraram. A criatura se transformara em um felino preparado para o bote, uma criatura peluda de dois metros e meio, quatro patas e olhos verdes brilhantes respirava irregularmente.

Assim que meu olhar caiu sobre a fera, o terror tomou conta de meu corpo e a adrenalina subiu em meu sangue. Perdi o controle dos pés. Não conseguia pensar. Só correr. Disparei na direção oposta à criatura, fogo correndo em minhas veias. Não me incomodei em levantar a barra do vestido, tão pouco com os rasgos que surgiram no tecido conforme alguns galhos raspavam na roupa.

É você. Uma voz dizia. Você! Ele consegue sentir o seu cheiro. Acelerando as passadas, aumentando espaço entre uma perna e outra, zigue-zagando por entre as árvores, o coração quase saltando para fora, continuei correndo. Ofegando, correndo, gritando, correndo. Inevitavelmente, a cada passo, adentrava cada vez mais a floresta escura. Não em qualquer floresta, não em qualquer lugar. Aquela era a Floresta das Almas, e eu não fazia a mínima ideia se adentrar naquele território mágico era uma boa ideia.

Mas era o único lugar para onde eu podia fugir e, com certeza, não poderia ser muito pior do que continuar onde estava e virar jantar de uma criatura das trevas.

— Não adianta fugir. — pude ouvir a voz de Talfryn misturada ao urro animalesco, homem e animal, era um som agonizante. Disparei como um raio para onde seus olhos não podiam mais alcançar. — Posso senti-la nas sombras.

O animal se sacudiu e soltou um grunhido, correndo ainda mais rápido. Ouvi as patas traseiras batendo na terra, ouvi os rugidos se aproximando enquanto eu avançava floresta adentro.

O monstro salivava enquanto corria atrás de sua caça.

Atrás de mim.

⚠ PERSONAGEM ⚠


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