⚔ Capítulo 10

           — Obrigada — disse, assim que surgimos sob as sombras da árvore de pinheiro. A área ampla atrás do chalé abrigava dezenas de árvores altas como aquela e outras mais frondosas, com copas largas e troncos bem mais cumpridos. Havia também flores silvestres de cores variadas, como amarelo, lilás e vermelho, pequenos brotos de feijão e líquens aos montes. Um rastro imenso de escuridão projetava-se sobre o gramado, delimitando o começo da floresta e o fim da clareira.

A lua brilhava intensamente naquela noite, deixando o céu um pouco menos sombrio do que de costume para aquela época do ano, um aviso que em poucos dias o inverno se despediria e a primavera viria nos cumprimentar pelos próximos meses. Era um alívio estar de volta, sentir os aromas familiares e o calor emanando da chaminé a poucos metros de mim, mas estar ali era, de alguma forma, empertigante, de um jeito que não conseguia entender.

Nikosoli combinava com as cores desse lugar, pensei. Verde-misterioso. Preto-assustador. Azul-esperança. Estas eram, definitivamente, suas principais definições e as cores harmonizam por completo, não que fosse importante observar isso naquele momento, ou em qualquer outro.

— Sinto muito. — ele pediu, cabisbaixo. Um pânico diferente tomou conta de mim ao ouvir aquilo, e Nikosoli levantou a cabeça. Era difícil vê-lo como o assassino cruel que ele era sob aquela aura cinzenta de arrependimento e preocupação, impossível ainda era temê-lo. Ainda mais porque aquele título também cabia à mim.

— Do que está falando? — indaguei, a confusão surgindo lentamente em meu semblante. — Pensei que ficaria orgulhoso por eu conseguir.

Nikosoli riu, não de um jeito que eu gostara de ter ouvido.

— Suponho que sim, e por isso estou me desculpando — ele disse, e eu movi a cabeça, ainda sem entender. Nikosoli bufou. Ver a expressão torcida dele de desconforto fazia uma pontinha de alegria despontar dentro de mim. Acho que nunca perderia a graça. — Você não deveria ter de escolher entre condenar a si mesmo ou condenar outro alguém. Não me traz orgulho que tenha algo semelhante à mim.

Segurei a risada. Por algum motivo, aquilo me irritou. Ele realmente achava que eu precisava de seu selo de aprovação?

— Ora, poupe-me! — disparei, indignada. Nikosli optou pelo silêncio. — Está assim tão preocupado com minha alma e virtude? Eu não escolhi por isso e acho que a Deusa sabe! Se está assim tão ressentido, por que não me impediu? Por que não interviu antes que eu roubasse a vida daquele homem? Por que não...

— Acha que eu não tentei? — Nikosoli se exaltou, avançando os passos em minha direção, a raiva queimando em seus olhos. Os dedos afundaram em meu braço, impedindo-me de fugir ou afastá-lo enquanto falava. — Acha que eu não tentei intervir? — mirou o céu e riu, amargo. — Tentei de todas as formas que pude, venho implorando a Midas que poupasse a sua alma, que desistisse de envolvê-la em tudo isso! Mas ele gosta de se entreter com o meu martírio. E se eu tivesse me ajoelhado aos seus pés, ele saberia o quanto... — Nikosli bufou, seus dedos afrouxaram o toque em minha pele. Ele não mais me segurava, ainda assim, não conseguia me mover.

— O quê? — insisti. Seu olhar brilhava em um misto de medo e devoção. Uma tortura. Era uma tortura não conseguir desvendar o que ele pensava, ou o que teria dito. Senti meu corpo desmanchar, porque a escuridão abissal que me fitava de volta devorava cada centímetro da minha alma.

Ele recuou.

— Não posso condená-la ainda mais... — seu halito quente em meu rosto fez uma onda eletrizante dominar meu corpo. — E não ousaria arrancar aquela adaga de suas mãos se não me deixasse. — absorto em pensamentos, Nikosoli se afastou, cabisbaixo. Encolhi-me, não entendendo o fino traço de arrependimento que despontou em meu peito. — Jamais arrancarei isso de você... — ele murmurou, balançando a cabeça.

— Isso o quê?

— O seu poder de escolher, de decidir até onde está disposta a ir... —ele lançou a mim um olhar cheio de compaixão, e também havia ali um pouco de tristeza. Talvez ele queira me oferecer um pouco do que não tivera, talvez fosse o seu jeito de se redimir por também ser um monstro.

Suspirei.

— Midas disse que precisa de mim. Da minha ajuda. — encarava-o firmemente, os olhos penetrantes não piscavam ao fitar-me de volta. Nikosoli continuou a me ouvir em silêncio. Senti uma ponte entre nós, então dei um passo na sua direção. — Não entendo o porquê e não vejo como posso ser relevante, mas não me importa! Tudo que sei é que preciso seguir ordens ou não poderei proteger minha família. Isso nunca foi sobre mim.

— Está enganada quanto a isso — um meio sorriso apareceu em seus lábios tão rápido quanto se desfez.

— Obrigada — forcei meu melhor tom de seriedade, que acabou soando muito menos real do que eu desejei. Nikosoli torceu a sobrancelha, confuso, e eu puxei um relógio e um anel do bolso do vestido.

— Você assaltou um cadáver? — ele parecia mais chocado do que satisfeito, mas tentei não me ofender.

— Bom, tecnicamente, ele ainda estava vivo... — guardei meus primeiros itens roubados novamente no bolso do vestido. Senti algo me invadindo, crescendo dentro de mim, mas espantei a sensação para longe. — Pensei colocar em prática o que ensinou sobre "como se mover silenciosamente sem chamar atenção". Até aquele momento eu não sabia que teria coragem de tirar a vida daquele homem, então não pareceu tão mórbido a ideia de afanar alguns acessórios.

Nikosoli fitou os próprios pés.

Não conseguia captar qualquer sentimento ou intenção. Percebi que ele conseguia mascarar bem seus sentimentos quando queria. E era tão estranho vê-lo daquele jeito, para não dizer desesperador e extremamente desconfortável. Quase irreconhecível! Pensando bem, Nikosoli acabava seguindo a tendência preocupante de vagar constantemente entre aqueles dois estados de espírito: estupido-previsível, e fantasmagórico-misterioso.

Por fim, ele exibiu um sorriso.

— Acho que ele está certo sobre você — Nikosoli ergeu a cabeça, diversão pairava em seu semblante. Pude, enfim, relaxar.

— Sobre o que exatamente? — torci o cenho, cruzando os braços. — Sobre minha moral duvidosa?

— Não contarei, terá que descobrir sozinha. — Touché. Aquilo acertou minha curiosidade em cheio. Conhecia-o por tempo o suficiente para saber que Nikosoli não abriria a boca sobre aquele assunto tão cedo. Talvez, nem mesmo em um milhão de anos. Talvez, nem mesmo depois que nossos corpos se transformassem em pó.

Revirei os olhos, insatisfeita.

— Por que fez aquilo? — mudei de assunto, perguntando, finalmente, o que me atormentava desde que deixamos o Valkirian. Ele hesitou um pouco, fingindo não entender minha pergunta. — Vamos embora. — eu repeti suas palavras, Nikosoli levantou a cabeça com os olhos arregalados. — Por que criou uma cena no meio de todo mundo? Achei que o objetivo era não atrair atenção, entendi que fazia parte da atuação, mas...

E parei, arrependendo-me no momento em que as palavras deixaram minha boca. Os olhos dele pareciam menos sombrios, e mais tristes.

— Não foi parte da atuação — confessou, soltando o ar que prendia. Parecia confuso, desolado e sozinho. Quando foi que comecei a prestar tanta atenção nele assim? — Eu estava bebendo, batendo os pés ao som da música e decidi checar se estava se saindo bem. Quando olhei, você parecia assustada. Vi as mãos dele te tocando e o desconforto em seus olhos. Por um momento, apenas um, acabei me esquecendo de... — ele forçou um sorriso. — Me esqueci do meu lugar — corrigiu, e meu coração se contorceu.

Nikosoli me esticou um papel-cartão amarelado em minha direção, um símbolo real marcado no topo da folha.

— O que é isso?

— É um convite oficial da corte do rei Valkran — ele explicou, e peguei a carta, boquiaberta. Meus dedos jamais haviam tocado um papel tão macio e suave ao toque. — Você tem um parente que trabalha para a corte do Rei, não é?

Balancei a cabeça.

— Sim... Meu primo é um alto membro do exército. Mas faz anos que não o vejo, Eugênio fez mamãe se afastar de toda a família para que ninguém soubesse de seus vícios e más condutas — respondi, sem entender porque aquilo era relevante. — Como sabe disso?

— Andei fazendo algumas perguntas por aí. — Nikosoli deu de ombros, como se não fosse importante, como se investigar a vida de alguém fosse o mesmo que inquirir sobre o tempo. Ele usava aquele tom para a maioria dos assuntos, aparentemente, nada era tão importante, nada valia a pena o esforço. — Não acha que eu quebraria todas as regras por você sem saber nada a seu respeito, não é?

Todas.

As.

Regras.

O quê?!

— Quatro regras! — eu ainda fitava o papel-cartão amarelado. O brasão de Reinlynch era uma coroa prateada de cinco pontas com uma estrela vermelha em cada uma delas. Não tive coragem de erguer o olhar em sua direção. — Você disse que só quebrara quatro regras! Como assim "todas as regras"?! Po que faria isso?! — tentei não me exaltar, mas as últimas palavras saíram bem mais altas do que planejei.

Esperava que Magdalena ou minha mãe estivessem distraídas demais para se atentarem aos barulhos que vinham do lado de fora. Estávamos a poucos metros do chalé e, mesmo que tivesse visitado-as na noite anterior, elas não esperavam meu retorno. Mas o pânico me invadiu de todo o jeito. Girei a cabeça, aflita, observando as luzes do interior pela janela. Nenhum movimento. Suspirei. Meu pequeno acesso de euforia não atraíra atenção.

— Sim. — ele riu. Era ótimo saber que pelo menos um de nós estava se divertindo. — Bom, só temos quatro regras, Celine. Não faz muito sentido para um grupo de monstros e assassinos ter um código de conduta muito extenso, não é? Muitas regras geram muitas exceções, dizia um velho amigo, e então criamos apenas quatro. Uma para cada.

— E você conseguiu quebrar a sua e a dos outros também — constatei, e Nikosoli assentiu. Por algum motivo, aquilo não me deixava aliviada. — Então só existem quatro Assassinos de Bear? — ele semicerrou os olhos, encarando-me profundamente.

— Cinco, agora. — ele sorriu, e eu engoli em seco. Era verdade. Eu havia esquecido de alguém importante: eu mesma.

— O que este convite significa?

— Que deve acompanhar Midas em sua estadia no castelo de Reinlynch.

—Sim, mas por quê? — perguntei, os braços caindo ao lado do corpo. — Por que Midas enviaria alguém inexperiente como eu? Miroslav e você seriam opções muito melhores, garanto.

Ele entendia muito bem minhas preocupações, mas permaneceu calado por alguns segundos.

— A recepção deve acontecer da forma mais natural possível. O rei não sabe que temos informações sobre o que vem acontecendo nas cortes, sobre a ameaça mortal que recai sobre o reino entre os muros de seu castelo. Há alguém agindo por debaixo dos panos que sabe que podemos ajudar... Ao menos é o que Midas pensa. — ele pausou e levantou o braço. Por um instante, pensei que fosse acariciar minha cabeça como se eu fosse um filhote, mas ele hesitou e recolheu a mão. — O rei não aprova relacionamentos modernos e aparecer com uma dupla de homens mal-encarados seria suspeito ou terrivelmente mal-interpretado. Midas deseja cair nas graças do rei e precisa de uma mulher ao seu lado para isso.

— O quê? Precisarei fingir que sou uma concubina? — indaguei, ele assentiu com a cabeça. Uma risada escapou. — Miserável! — disparei, lembrando-me da frase que eu dissera, a mesma que Midas usara contra mim. Mulheres conseguem o que homens apenas sonham em possuir. — É claro que os objetivos dele eram sórdidos!

Com toda a certeza, querida — ecoou um sussurro em meu ouvido, e congelei. O ar se tornou ainda mais frio e, assutada, olhei ao redor sentindo uma pressão no estômago. Nikosoli fitava-me como se não tivesse ouvido nada além de meus resmungos. Não era a voz de alguém que eu conhecia.

— A lição de hoje não foi apenas sobre conseguir assassinar alguém, foi sobre sua habilidade de se transformar em algo que não é. — atenuou, gesticulando preguiçosamente. — Tudo que precisará fazer é atuar como se fossem um casal por algumas semanas. E quando o monstro e o rei estiverem mortos, ele vai te libertar do acordo.

Ele estava louco. Nikosoli não podia estar falando sério. Aquilo era uma piada, totalmente sem graça e um pouco cruel, na verdade. Matar o rei! Como eu poderia ajudá-los a matar o rei?! Talvez eu realmente morresse antes de conseguir cumprir meu acordo com Midas. Sim. Estaria morta, não por Nikosoli ou Midas, mas sob as ordens do próprio Valkran, rei de todas aquelas terras. Seria trancafiada e depois enforcada por traição em praça pública. Seria perseguida por cães e javalis selvagens enquanto os príncipes atiram flechas nas minhas costas por esporte.

Não.

NÃO MESMO.

— Não tomarei parte em nada que envolva matar o rei! — disparei, atirando o papel no gramado. Nikosoli se abaixou para pegar, bufando. — O que houve com aquele papo furado de eu lembrar sua irmã e querer me proteger? — arrisquei. Ele não podia estar falando sério. Aquele era um péssimo plano. Um péssimo plano. Não importava o que dissessem. Ainda que a minha participação se resumisse a andar bela ao lado de Midas no castelo, assim ele caísse, usaria meu corpo de tapete para amortecer a sua queda. — Não acha que isso aceleraria a minha morte? Matar o rei é um absurdo! Nós estaríamos todos condenados! Não estava preocupado com minha condenação e alma a poucos instantes? Acha que matar um rei é menos pior do que matar um homem qualquer?

Os cantos da boca dele se curvaram para cima.

— Eu nunca disse isso, Celine. — ele parecia querer rir de minha reação, mas notei seu esforço em permanecer com a postura intacta. 

— Isso o quê?

— Seu jeito me fez lembrar de minha irmã, sim, num primeiro momento, mas apenas isso. Não a vejo desse jeito. Você não é uma irmãzinha para mim e eu não poderei estar perto para te proteger sempre. — ao dizer a última frase, senti o peso aumentar em sua voz. Era quase como se Nikosoli possuísse um interruptor interno, ligando e desligando os sentimentos quando lhe convinha. — Ainda precisamos seguir ordens de Midas, ou ele...

— E acha que se o Rei descobrir, ou mesmo suspeitar, dessa pequena emboscada...  não acha que isso será mil vezes pior?

— No castelo você vai estar segura. — Nikosoli respirou profundamente. Aquilo não respondia minha perrgunta. —  Acredite em mim, Celine. Midas não é tolo e está disposto a protegê-la tanto quanto eu. — tanto quanto eu. E porque saber disso me dava mais aflição do que conforto? Nikosoli ignorou minhas caretas e se dispôs a continuar —  Lá dentro, será comos e tivesse um título perante ao rei, estaria protegida até mesmo dos caprichos dele, de todos nós! O rei pode ser um tolo em muitos quesitos, mas não admite que as mulheres sofram abusos em sua corte. — assegurou. — Você não vai ser jogada aos lobos, não está nos planos de Midas trair o acordo entre vocês.

Nikosoli se prolongou no discurso, mas minha mente ficou presa ao "nós". Ele se incluiu na soma de perigos. Nikosoli ainda se via como um deles, ainda se via como uma lâmina pesada em meu pescoço, empunhada por outro alguém. E pude ouvir sua voz ecoar: não ganhamos muito isso por aqui, a opção de escolher. Ele também estava sujeito às ordens, às vezes esquecia-me disso. Embora agisse como se tivesse liberdade, ele também não podia escolher.

 Não me surpreendia que este fosse um assunto tão sensível para ele. A liberdade.  Nikosoli ainda se via como uma ameaça, porque de fato era. Qual seria o acordo que ele fizera? O que estava disposo a proteger ou sacrificar? 

Isso é perigoso, eu quis dizer em voz alta, mas meu corpo falhou. Era terrivelmente perigoso, um dos piores planos que já ouvira em toda a vida, o pior de todos os piores. Uma piada. Não. Aquilo seria uma cova, a minha cova, que eu mesma estava cavando. Mas ele estava certo sobre algumas coisas que eu não podia continuar ignorando. Assim como Nikosoli, eu não podia dizer não. Minha palavra não tinha valor. Porque eu deveria responder a Midas, seguir suas ordens e não dar um passo sem que ele saiba quando eu respiro. 

Minha palavra será lei, ele dissera. E seu único objetivo de vida é ter a certeza de que minha lei será mantida. Isso está claro?

O peso de minha promessa me fez abaixar a cabeça, dando me por vencida.

— Está certo — concordei. — Farei o que ele mandar.

Nikosoli, assentiu, em silêncio. Lançou-me um sorriso triste e desapareceu, as sombras dissipando no ar, carregando-o pela escuridão. Continuei no mesmo lugar por alguns minutos, encarando minhas mãos trêmulas. Estavam limpas dessa vez. Mas por quanto tempo?

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