CAPÍTULO - 12


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Entre todas as coisas que eu vi naquele ano protegendo o Flávio e ele estando longe de Samuel a que mais me impressionava era o quanto sua alma sofria, durante o sono a coitada vagava pelo quarto e pelas dimensões soltando ruídos de choro sofrido e doloroso. Eu tentava lhe fazer melhorar, pois assim estaria ajudando a continuar bem nessa encarnação na terra, mas era muito difícil. Havia em sua alma as dores que a vida impõe sem que possamos nos desviar. As dores da perda, da solidão, da baixa autoestima e principalmente a dor maior que era a da separação.

Para ele foi como perder uma parte de si. Logo que chegaram a Nova York, Flávio se viu um pouco empolgado, afinal ali era a capital do mundo. Entraram em um grande prédio de apartamentos enormes, no momento estava sozinho com a mãe e tentava se ambientar àquele frio que fazia.

- Venha querido, vou lhe mostrar o seu quarto! – Ela falou empolgada e risonha. Flávio a acompanhou mancando, entraram em um quarto muito bem decorado, mas que não tinha nada a ver com ele, era uma decoração padrão como a que se usa em quartos de hóspedes, tudo muito funcional, mas sem a menos personalidade.

- Legal. – Ele falou tentando agradar.

- Ai que bom que você gostou! – Ela sorria e eu tinha que perguntar à Maria, por que aquela mulher não pensava em nada. Elisa ajudou o filho a guardar as coisas no closet, falou um pouco sobre as funcionalidades dos aparelhos do quarto, dos arredores do apartamento cheio de restaurantes, padarias, lojas e acontecimentos culturais de toda natureza. Apesar de bonita a cidade tinha um ar opressor ou talvez fosse só a situação em que ele se encontrava.

Logo ela saiu e ele foi até o banheiro, olhou tudo lá dentro e ao se olhar no espelho não se reconheceu, ainda era ele, mas estava enterrado embaixo de uma camada tão grossa de culpa e saudade que duvidou de sua melhora. Armand chegou dois dias depois e foi bom perceber que apesar de o homem ser igualmente emplastificado e bronzeado como a sua mãe, ao menos ele era um pouco mais carinhoso. Tirava tempo do seu dia para conversar com o garoto, tentava entender suas dores e foi ele que arranjou um professor de guitarra para o menino. Flávio falava inglês fluente desde criança, então tirando algumas gírias ele não teve dificuldade em se adaptar com a língua.

Nos primeiros dias eu o acompanhava a aula de canto e via vários protetores ao redor das pessoas, eles pareciam estar até bem cansados, parece que a vida ali é mais acelerada até mesmo para quem não vive mais. Lá dentro o Flávio aprendeu a entonação correta para cantar, técnicas de respiração e teve várias aulas de instrumentos, mas os que mais amava eram a guitarra e o violoncelo. Passava horas praticando em sua guitarra e em seu primeiro aniversário ganhou um violoncelo, como as aulas aconteciam apenas no período da tarde, pela manhã ele acompanhava a mãe para uma academia onde ele começou a fazer aulas de natação e durante a noite ele lia vários livros clássicos que ficavam apenas tomando poeira na biblioteca daquele apartamento.

Por mais que se ocupasse diariamente de várias coisas, antes de dormir seu último pensamento sempre era lançado para o meu neto. Todos os dias quando acordava era em Sam que pensava e em como a recusa em vê-lo antes de partir lhe dilacerou. Entre todas as dores que sentiu, e olhe que foram muitas, aquela foi a maior e mais desesperadora. Conheceu pessoas do círculo de amizade da mãe e do padrasto, rapazes e moças interessantes, mas não se interessou verdadeiramente por nenhum deles. Vivia sozinho e em tempos de desespero, sentia falta até de Juninho e Gabriel, mas sabia que aqueles garotos jamais aceitariam o novo Flávio que estava aparecendo.

No fim do primeiro ano ele havia se tornado um rapaz elegante, esguio e delgado, muito alto, com aqueles músculos que se formam a partir de um exercício físico constante e boa alimentação, seu guarda roupas estava mudado e ele seria considerado um "Hipster" no Brasil, mas ali naquela megalópole o meu protegido era só mais um rapaz bonito que andava com sua guitarra pelas ruas e pelos metrôs. Decidiu então tentar uma faculdade de música, pois o curso apesar de ser profissionalizante, não era o suficiente.

Tentou de várias formas, mas seu currículo não era bom o suficiente ou impressionante para entrar naquelas universidades que queriam candidatos que ao mesmo tempo fosse capazes de montar um módulo na NASA alcançassem notas agudas e graves e ainda tivessem tempo para fazer caridade. Flávio decidiu então tentar tocar na noite e isso sim ele conseguiu. Tocava duas vezes na semana, sempre músicas brasileiras em um café que a noite servia drinques variados, em outro ele tocava durante a tarde e recebia algumas gorjetas além de um valor por cada apresentação. Como sua família arcava com a maioria dos gastos ele acabava guardando ou comprando coisas como roupas, sapatos e cases para sua guitarra.

Foi por essa época que ele conheceu o Héctor, um garçom do café onde ele trabalhava, tinha ascendência mexicana e era um rapaz bastante sorridente e simpático, era ele que ganhava mais gorjetas e foi com ele que Flávio tentou algo. O garoto se apaixonou, mas Flávio não. Na primeira vez em que dormiram juntos, por mais que eu tentasse ficar afastado os pensamentos de Flávio corriam em direção a mim como se suplicassem pelo Samuel, seu corpo reagia apenas ao lembrar do corpo do amado e eu senti pena de meu protegido mais uma vez. Mas sei que em algum momento os dois vão ficar juntos, nessa vida ou na outra.

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Eu fui até a cidade comprar algumas coisas para continuar a costurar, agora sim aquelas coisas que eu fazia começavam a dar um lucro real e eu estava um pouco mais empolgado, fui numa moto preta que minha avó comprou pra mim, andava devagar pela estrada de terra que levava a outras fazendas da região quando o pneu furou. Me desequilibrei e caí na terra quente machucando o meu joelho. Estava no meio do caminho, longe demais da cidade assim como da fazenda, então consegui tirar a moto do meio da estrada, deixei-a travada e fui arrastando a minha perninha machucada em direção a fazenda. Cada minuto que passava eu ficava mais cansado pelo esforço de não me equilibrar direito, andei mais ou menos uns vinte minutos assim e cansado me encostei a uma arvore. Naquele horário não passava ninguém por aqueles rincões.

Ao longe eu ouvi o barulho de um motor de trator, era bem potente e eu fiquei na esperança de que quem viesse nele pudesse me prestar ajuda, fui andando com certa dificuldade até a estrada e vi que um rapaz bem robusto o dirigia e passei a acenar com as duas mãos para que ele parasse e me ajudasse. Quando ele parou, me arrependi amargamente de ver quem era ele. Afonso era um garoto que eu odiava na época da escola, mas justamente por que ele sempre implicou comigo de todas as maneiras possíveis, se eu falava algo ele ria de minha voz, se eu ficava calado ele mexia comigo até que eu perdesse a paciência e agora ele estava ali, me olhando e com certeza me reconhecendo.

- Ora, mas vejam se não é o Samuelzinho... – Disse com um tom de voz estranho. Ele vestia uma camisa de malha, uma bermuda e um boné. Parecia um trabalhador da roça, mas até onde me lembro nossos avós competiam em questão de posses na região.

- Oi Afonso! – Falei fechando a cara e amaldiçoando a minha falta de sorte.

- Caiu? – Ele me olhou preocupado.

- Estava de moto e furou o pneu...

- Mas só por isso você caiu? – Perguntou já rindo.

- Você não estava indo a algum lugar? – Perguntei já lhe dando as costas.

- Eita, tá bravinho! – Falou jocoso. - Vem, sobe aqui nesse possante, vamos buscar a tua moto e depois eu te deixo na fazenda. – Disse e nem me esperou responder, já foi me puxando.

- Calma, minha perna dói! – Falei tentando fazer com que aquele ogro andasse mais devagar.

- Deixa de frescura Samuelzinho! – Ele riu de novo e fiquei com ódio por precisar da ajuda daquele cara.

- Não é frescura Afonso, é...

- É frescura sim, sobe logo. – O trator era alto e tive dificuldades de subir por causa da perna (pra falar a verdade acho que teria mesmo que não estivesse ferido). Ele me ajudou a subir e pelo outro lado ligou o bicho que era super barulhento, encontramos a moto e ele como se não fosse nada a encaixou na traseira do trator, depois deu a volta e me foi me deixar na fazenda.

- Você voltou a morar por aqui quando? – Tentei puxar assunto.

- Tem um tempinho, me formei em agronomia e voltei. Não nasci pra viver em cidade grande, depois o meu pai está mal de saúde. – Ele parou de falar como se lembrasse de alguma coisa – E eu vim ajuda-lo.

- Hum, entendi. – Nós nunca conversamos muito, na minha sala o primo dele me infernizava e ele sempre dava um jeito de fazê-lo também, mesmo sendo mais velho que eu. Na época do colégio ele era gordinho, usava óculos, tinha muitos pelos e as sobrancelhas juntas. Agora ele estava mais musculoso, mesmo conservando o tamanho grande no corpo, ainda era peludo pelo que se via pela camiseta, só as sobrancelhas que não eram mais tão juntas, mas mesmo assim eram muito grossas.

- E você, soube que foi estudar em Fortaleza...

- É, fui. Não deu certo e voltei! – Falei lembrando de Flávio e uma saudade bateu naquele momento.

- Por quê? – Ele quis saber.

- Motivos pessoais! – Falei sem lhe olhar, vi que ele ia falar uma brincadeirinha qualquer como era de costume, mas parou antes de dizer qualquer coisa vendo a minha feição triste.

- Entendo... Mas e aí, tem saído por aqui? Ou fica só na fazenda? – Perguntou prestando atenção na estrada de terra a nossa frente, próximo da fazenda havia uma pedra lisa e esbranquiçada que servia de referência para a entrada da estrada que levava à fazenda, todo mundo chamava aquele marco de "Pedra da Lua".

- Tu passou pela pedra da lua! – Eu disse vendo que ele havia ultrapassado a entrada.

- Ah nossa, verdade! – Ele me olhou e sorriu. – Quer sair sexta? – Ele perguntou de supetão.

- Hã? – Nem acreditei que ele perguntou aquilo pra mim.

- É, ué. Sair cara ou tu vai passar quinze dias deitado por causa desse arranhão aí? – Ele falou rindo e eu sorri também, ele era um chato, mas era engraçado.

- Tá, pra onde? – Respondi sem lhe olhar.

- Vai ter uma super festa de forró...

- Não mesmo! – Cortei o convite na hora, não rola festa de forró que o povo vai só pra beber e arranjar brigas.

- E pra onde você quer ir? – Realmente eu não fazia ideia de onde poderíamos ir, desde que voltei e mesmo na época que morava por aqui eu não costumava sair.

- Na verdade faz tempo que eu não saio pra lugar nenhum Afonso... – Falei envergonhado.

- Então se veste que amanhã eu passo na tua casa pra te buscar, e sexta eu deixo você escolher o lugar! – Falou maroto.

- Mas pra onde a gente vai amanhã? – Quando perguntei já conseguia ver a fazenda.

- Se arruma e me espera às 19hs. Passo pra te pegar. – Ele sorriu de lado.

- Mas como eu devo me vestir? – Perguntei confuso.

- Deixa de ser fresco Samuel, de qualquer jeito! – Eu sorri, bobagem minha achar que aquele ogro estaria querendo um encontro comigo.

- Tá bom. – Falei mais tímido por perceber que eu queria que fosse um encontro, que merda é essa? Eu detesto esse menino. Ele me ajudou a descer e não teve nada de me pegar e ficar me olhando quando me ajudou, foi rapidinho e depois colocou a moto no pátio da fazenda, saiu gritando:

- Amanhã às 19hs! – Sorriu e desapareceu na poeira que o trator levantava.

Devo estar muito carente pra pensar no Afonso dessa forma!

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