Capítulo 14 (parte 3)

Fosse pela ligação inesperada de Riley ou não, aquela dia todo transcorreu de maneira extremamente serena, como se finalmente todo aquele inferno astral tivesse dado uma trégua; como se, em vez de trevas e demônios, houvesse agora apenas luz e salvaguarda. Um sorriso puro e involuntário estampou o semblante de John por todas aquelas horas.

No dia seguinte, a sensação de tranquilidade permanecia. Tudo parecia mais ameno e até nostálgico, quase como uma redescoberta da felicidade, redescoberta esta que satisfez Melanie, que se preocupava deveras com o estado depressivo em que John se encontrava. Os dias de cão acabaram.

— Ué, você não vai embora? — perguntou Norma, com sua bolsa no ombro, preparando-se para sair.

— Não, ainda não, vou ficar aqui mais um pouco, preciso terminar uma pesquisa.

— Hum... Tá bem, então, amanhã a gente se vê. Boa noite, meu filho. Juízo.

— Tenho de sobra, não se preocupe. Boa noite.

Da mesa quadrada onde estava, John acompanhou os passos de Norma até a saída. Àquela hora, passadas as sete da noite, o movimento da biblioteca era bastante baixo. Algumas pessoas nos computadores do segundo piso, outras sentadas em mesas espalhadas pelo espaço e uma ou duas entre as estantes, procurando algo nas prateleiras.

Com todo aquele silêncio, ficava fácil se concentrar e esquecer da vida. Mas também era fácil se assustar e ter toda a concentração perdida numa fração de segundo. Focado no que fazia e totalmente alheio a qualquer outro acontecimento que não fosse a censura literária no século XVII, John não percebeu que alguém se aproximava.

— Boa noite.

Quando ergueu a cabeça e os olhos para ver quem lhe chamava, veio o frio na espinha, que percorreu de baixo a cima.

Sentado na poltrona de frente a John, Steven cruzou as pernas e esperou por uma resposta, mas John estava sem fala. Steven era tudo o que John não queria ver nem pensar naquele momento, especialmente agora que as coisas estavam voltando para o lugar.

— Boa noite — cumprimentou novamente.

— O que você quer, Steven?

— Não vai responder meu boa noite?

— A noite estava muito boa até você chegar. O que você quer? Como sabia que eu estava aqui?

— O Andrew me contou. Fui até o quarto de vocês te procurar. Tô a fim de levar um papo contigo, pode ser?

— Não, não pode. Se eu não significo nada pra você, então não temos assunto nenhum pra tratar, agora, se você me der licença, tenho um trabalho a fazer aqui.

— Nossa!, você tá nervosinho hoje, hein? Qual é, aqui conversar numa boa e você cheio de pedras pra cima de mim? Calma aí, rapaz.

John respirou. Viu toda sua paz ser desconstruída, tijolo por tijolo, em um piscar de olhos, mas não havia o que pudesse ser feito; nada além de ouvir o que Steven tinha a dizer.

— Vamos pra lá, não curto conversar com todo mundo olhando.

— Steven, fala logo, não tem ninguém olhando.

— Vem comigo.

Steven se levantou calmamente. Puxou John pelo braço, fazendo-o levantar-se. Sem ter escapatória, John não resistiu. Livrando-se da mão de Steven com um movimento brusco, seguiu-o pelos corredores da biblioteca.

Passadas algumas estantes, alcançaram o final do salão, onde ficavam os livros de culinária, náutica e infantis — os menos procurados —, onde havia baixa luminosidade e ninguém circulando pelos arredores.

O coração estava disparado. Batia tão forte que doía. As mãos começaram a suar, a boca secou num segundo e o silêncio parecia piorar ainda mais a situação. John cruzou as mãos para trás e escorou seu corpo na parede, enquanto Steven permaneceu a um passo de distância com os braços cruzados. Desta vez, diferente das demais vezes, não tinha um olhar tão ameaçador ou pretensioso.

— Eu li a sua matéria hoje. Você é bom, tem futuro.

— Obrigado.

Steven meneou a cabeça e, observando desinteressadamente os livros nas prateleiras, caminhando, prosseguiu:

— O Andrew ia puxar muito seu saco por causa disso, mas ele comentou que não ia falar nada por enquanto porque você estava triste — Steven se virou para John. — Eu tenho alguma coisa a ver com isso?

— Tem, tem sim. Você é o motivo de eu ter vivido os dias mais desgraçados da minha vida e, olha, eu já estava até me esquecendo, daí vem você me atormentar novamente e...

— Santo Deus, você tá histérico hoje, hein?! — exclamou Steven com tom de voz irritado. — Eu só quero conversar, porra, já falei!

— Como se "conversar" fosse muito do seu feitio, né? Aliás, muito me admira você estar demonstrando preocupação comigo agora, afinal, pelo pouco que eu te conheço e pelo que você mesmo já insinuou, a única hora em que eu significo alguma coisa é quando seu pau duro está dentro de mim.

Visivelmente irritado, agora com seus olhos brilhantes de mistério e ameaça, Steven se aproximou um passo e disse entre dentes, controlando a raiva:

— John, cale a boca, ok? Para de falar e me escuta. Eu vou ser breve, então fique quietinho e só fale o necessário.

Intimidado e agora um tanto assustado, John encostou ainda mais seu corpo à parede e apenas respondeu:

— Tá — sem querer demonstrar seu pavor e sua intimidação.

Steven recuou novamente. Suspirou fundo, fechou os olhos, abriu-os novamente e disse com voz um pouco mais branda:

— Eu vim aqui me desculpar pelo que eu disse. Naquele dia aconteceu merda atrás de merda, eu estava sem um pingo de humor pra qualquer coisa, você chegou me enchendo o saco, como sempre, e eu acabei dizendo aquilo, mas desconsidere, por favor. Eu não quis te magoar, me desculpe.

Apesar de aquilo estar vindo de quem vinha, John sentiu sinceridade nas palavras. Era uma enorme surpresa, claro, mas dizer que era ruim seria mentira.

— Tá bem, desculpas aceitas.

Steven meneou a cabeça afirmativamente e voltou a olhar as prateleiras para desviar o olhar. John permaneceu parado no mesmo lugar, rezando para que aquela situação acabasse e Steven fosse logo embora.

— Tem mais uma coisa.

O coração pulsou forte mais uma vez. Outro frio percorreu a espinha e a respiração começou a se tornar ofegante. Steven se virou para John pela segunda vez e o encarou.

— Você me disse uma coisa que me deixou... intrigado.

— O quê?

— Você disse que "blá blá blá" para se apaixonar por mim. Você é apaixonado por mim, John? — perguntou Steven com um sorriso curioso esboçado nos lábios.

John não respondeu de imediato. Não pensara que Steven fosse dar atenção àquele detalhe tão reles da discussão. Não sabia também qual era a intenção de tal pergunta, então tentou, inutilmente, evadir.

— Não quero falar sobre isso.

Transformando o esboço num sorriso vitorioso e malicioso, Steven se aproximou lentamente. Logo ele e John estavam cara a cara. Sem aviso, Steven pressionou seu corpo contra o de John e repousou seus lábios em seu pescoço, beijando-o suavemente.

Uma onda de calor invadiu e inundou todo o corpo de John, que fechou os olhos involuntariamente, entreabriu a boca, e sentiu uma fisgada dentro de sua calça.

— Fala, Johny, é verdade ou não é?

Sem domínio de suas emoções e atitudes naquele momento, John apenas concordou com um som nasalado, dando a entender que, de fato, era apaixonado por Steven. Ao ouvir a confirmação, este estreitou ainda mais o espaço entre os corpos de ambos e disse em voz baixa, ao pé do ouvido de John:

— Hum... Há quanto tempo não me dizem isso...

Interrompendo seu próprio movimento, Steven afastou-se alguns centímetros e continuou:

— Mas não era pra você se apaixonar.

— Nem todo mundo tem sua capacidade de anular os próprios sentimentos.

— Ah, você com essa história de sentimentos de novo... — Steven voltou a beijar o pescoço de John e percorrer toda aquela região com os lábios. — Tô louco pra te mostrar vinte centímetros de sentimento.

— E eu tô louco pra que você suma daqui e me deixe em paz — respondeu John, tentando resistir àquela torturante tentação.

— Escuta, nós não precisamos levar isso tão a sério. Você me quer, eu te quero, a gente se encontra, faz um pouco de sexo e pronto, não precisa complicar as coisas.

— Eu não vou continuar sendo seu brinquedo sexual, Steven.

— Ah, mas você não é um brinquedo. Aliás... — Steven afastou seu rosto novamente — Você é bem real.

Repousando suas duas mãos sobre o quadril de John, Steven fitou-o e, em seguida, beijou-o.

John sentiu-se asfixiar. Os lábios de Steven o sufocaram de uma forma intensa e infalível. O misto de sensações tornava aquele momento um verdadeiro caos interno. Mas, no meio de todas aquelas sensações, a que prevalecia era o desejo intrínseco de sentir que Steven se importava. Assim, não durou muito para que John se rendesse.

Após alguma resistência, ambos se abraçaram e se beijaram por um longo tempo, sem pressa, vagarosa e calmamente, como se aquele momento fosse eterno. Beijaram-se com desejo e saudade, talvez até carinho, ou apenas como uma confirmação do pedido de desculpas. O motivo era o de menos. Saborearam-se incansavelmente, depois desaceleraram até que seus lábios estivessem apenas próximos, tocando-se esporadicamente. Ofegante, Steven disse com a voz rouca:

— Eu também senti sua falta. Você me enche o saco, mas é bem gostosinho.

— Vá embora, Steven, por favor. Não faz isso comigo.

— Vou sim — Steven se afastou definitivamente. Andando para trás, finalizou: — Você sabe onde me encontrar. Até logo. E não demore.

Virou-se de costas e seguiu para a saída da biblioteca. John deslizou seu corpo pela parede até se sentar no chão. Inclinou a cabeça e fechou os olhos, soltando um longo suspiro. Seus sentimentos se tornaram cada vez mais confusos e ininteligíveis. Não amava Steven, sabia disso, mas não conseguia controlar aquela erupção de emoções que este lhe provocava. Desejava-o ardentemente, mas de forma exclusivamente física, corporal. O máximo que sentia além disso era um afeto muito grande nascido após consecutivos momentos de intimidade, mas não amor.

— Claro que "não amor", seu amor é do Andrew, espertinho.

A Voz da Razão novamente começou a martelar dentro de John, que se concentrou no que a mesma dizia.

É assim tão difícil admitir isso? Tá tudo bem, tem essa coisa toda com o Steven, mas nós sabemos muito bem que isso não é amor, é tesão, coisa de pele, química, como queira chamar. Seu amor é pelo Andrew e tá demorando pra aceitar isso. É ele que está com você em todos os momentos e que te dá mais amor e carinho do que todos os Steven's da Terra juntos. Falando dos gays, é claro.

Não, John não queria admitir aquela realidade que insistia em ecoar incessantemente em sua cabeça. Não queria, não podia se apaixonar por Andrew, não queria perder o que tinham.

— Apaixonado? Apaixonado você está, questionavelmente, por aquele idiota. O que você sente pelo Andrew é amor da mais pura e imaculada sinceridade. Admita, John, não há como negar a você mesmo. Eu sou você, você sabe disso. Nós somos um só, nós sabemos a verdade, o que falta é coragem.

Como aquilo era difícil. Parecia que John estava travando uma batalha contra si mesmo e estava perdendo. Uma parte de si sabia que o que ocorrera com Steven nos últimos dias serviu apenas para mostrar a magnitude dos sentimentos por Andrew, mas a outra, a parte consciente, não digeria essa possibilidade tão impensável.

Tentando não explodir com tantas ideias difusas, John se levantou e espremeu os olhos. Devagar, caminhou de volta para sua mesa. Sem qualquer ânimo para continuar de onde parara, devolveu o livro que consultava à sua estante, recolheu seus objetos e saiu da biblioteca. Caminhou por entre o verde de Wistworth em passos lentos, medidos, até alcançar a vila do alojamento.

A alguns metros de distância da porta de entrada de sua casa, John viu Andrew descendo os degraus da escada e caminhando de encontro a si. Ao avistá-lo, Andrew abriu um largo sorriso.

— E aí, Johny?

— Oi.

— Como cê tá?

— Bem. E você? Tá indo aonde?

— Comprar nossos convites pra festa de amanhã. Tá de pé ainda, né?

— Tá, sim. Mas eu nem te dei o dinheiro.

— Tsc, tá por minha conta, não esquenta. Depois você me paga uma cerveja e tá tudo certo.

Andrew consultou o relógio.

— Bom, eu vou lá, marquei hora com o pessoal. Devo chegar tarde, não se preocupa. Qualquer coisa, é só ligar que eu venho correndo, tá bom?

— Tá bom, obrigado.

— Então a gente se fala mais tarde, ou amanhã — Andrew beijou a testa de John e se afastou alguns passos. Andando de costas, dirigiu-se novamente a John e, com o braço esticado e o dedo indicador em riste, disse em voz alta:

— Amo você, hein?

John não conseguiu segurar o sorriso de canto. Beijou a palma da própria mão, direcionou-a a Andrew e assoprou. Este, por sua vez, fechou a mão no ar como se apanhasse um punhado de vento e levou-a até o peito, sorrindo. Então se virou para frente e continuou seu trajeto.

— Como eu sou idiota — pensou John em voz alta. — Olha só o que eu acabei de fazer. Mandei beijo pelo ar. Nem pré-adolescente faz isso, meu Deus.

— Isso é coisa de quem ama, meu caro.

— Isso é coisa de gente idiota, isso sim. E eu não acredito que estou discutindo comigo mesmo no meio da vila.

Isso sim é idiota.

Entrou em casa.

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