Capítulo 14 (parte 1)

"Esta é a parte mais difícil, quando você se sente desaparecendo

Tudo que você teve se torna irreal, arruinado e doloroso"

(Kerli – Love Is Dead)


John bateu três vezes á porta. Percebeu o volume da TV abaixar, permitindo que também ouvisse passos se aproximando.

Então ele surgiu. Alto, forte, sisudo, irresistível.

— Ahm... Oi.

Sem responder ao cumprimento, Steven abriu passagem para que John, a um pedido de licença, entrasse. A porta se fechou e Steven se adiantou, caminhando até o sofá maior, de frente à TV, onde se deitou e voltou a assistir ao noticiário. Constrangido e se sentindo um tanto acuado, John permaneceu no mesmo lugar. Steven o olhou e perguntou:

— Vai ficar parado aí?

Não, claro que não. John caminhou até o outro sofá e se sentou, cruzando os braços apoiados sobre os joelhos. A voz do âncora parecia não preencher o silêncio que havia entre os dois. Na tentativa de quebrá-lo, John iniciou o diálogo:

— Então, como foram as férias?

Sem desviar os olhos para os de John, Steven respondeu:

— Boas.

— O Andrew me disse que você foi pra casa da sua irmã. É a da foto?

— É, sim. É minha única família.

— Hum... Eu também estive em casa por uns dias. Foi ótimo. Também estive na casa do Andrew, conheci os pais dele e tal...

Mais silêncio. Ou era impressão de John ou havia alguma coisa estranha ali.

— Ah! — exclamou John, lembrando-se de um dos motivos que o trouxera ali. — Minha matéria, quer dizer, nossa matéria foi aprovada, deve ser publicada semana que vem, ou na próxima, não sei. Vim contar pessoalmente, fiquei feliz por nós.

— Legal.

Legal. Alguma coisa ali estava muito errada. O silêncio constrangedor e a frieza costumeira de Steven tinham um peso diferente aquele dia, e John podia sentir isso claramente.

— Steven, tá tudo bem? Você me parece um pouco... distante.

— Impressão sua.

— Não é, não. Poxa, não nos vemos há mais de quinze dias, daí eu te vejo na faculdade e você mal fala comigo, depois venho à sua casa te dar uma notícia boa e, ainda assim, você nem conversa comigo! Tem coisa errada aí.

— Você está me vendo e nós estamos conversando.

— Não, não estamos. Você está olhando essa maldita televisão e eu tô falando sozinho — respondeu John, já irritado com aquela situação.

Rudemente, Steven desligou o televisor, sentou-se no sofá e fitou John com um olhar indecifrável.

— Pronto, o que quer que eu faça agora?

John bufou, indignado.

— Caralho! Por que você está me tratando assim?

Caralho! — repetiu Steven ironicamente — Por que você está falando como se fôssemos namorados?

— Porque, ao contrário de você, eu tenho sentimentos, eu gosto de você, eu estava com saudades, afinal nós passamos quase três meses transando feito coelhos.

— Isso não quer dizer nada. Aliás, você não significa nada pra mim.

Então a Terra parou novamente, a gravidade desapareceu novamente e o silêncio esmagou os ouvidos de John. O chão pareceu ter sido aberto, as coisas pareceram ter se tornado tétricas, a figura de Steven pareceu ter se tornado insuportavelmente perturbadora e um torvelinho de sentimentos negativos e destrutivos começou a ebulir dentro de John de uma forma que ele jamais imaginara ser possível. Aquelas palavras o mantiveram cego, surdo e mudo por muitos daqueles segundos infinitos. Tudo e nada, ao mesmo tempo, era o que passava por sua cabeça. Momentos, flashes, imagens, frases, vazio, dor, raiva, tudo ao mesmo tempo.

Ainda assim, tentando desesperadamente se manter incrédulo, John insistiu:

— Como é que é?

— Você está surdo?

— Eu... eu pensei que existisse alguma coisa... algo especial entre nós.

— Nós? Nunca houve nós, sempre houve eu e você. Se você acha mesmo que houve "algo especial entre nós", você é mais patético do que eu imaginei.

Steven ligou a televisão novamente e se deitou, cruzando as mãos sob a cabeça. John não conseguia, ou não queria, acreditar no que acabara de ouvir. Queria, do fundo do coração, que aquilo fosse apenas um pesadelo dos piores e que logo acordasse. Mas não, isso não aconteceria, pois aquilo não era um pesadelo, era a mais pura realidade, uma que, naquele instante, não fazia nenhum sentido.

Sem demonstrar qualquer outra emoção que não fosse a mais pura, embora falaciosa, indiferença, John se levantou calmamente e finalizou:

— Pode ser. Talvez eu seja mesmo muito patético, afinal só uma pessoa inacreditavelmente patética poderia se apaixonar por alguém tão ignóbil quanto você, Steven. Eu posso ter sido fraco, ingênuo, fracassado por ter me deixado envolver por você, mas você, meu caro, fracassou como ser humano, e isso, eu garanto, é muito, muito mais lamentável do que ser patético. Adeus.

John caminhou até a porta devagar e se retirou. Anestesiado, desceu as escadas, atravessou o salão, saiu da academia e voltou para o carro. Ao som da batida da porta fechando, a ficha caiu. Só então John percebeu e entendeu que seu coração fora partido em inúmeros pedaços e que isso doía. Uma dor aguda e contínua, quase sufocante.

Sem saber exatamente o que fazer, John cruzou os braços sobre o volante e deitou a cabeça sobre os punhos. As lágrimas vieram em abundância, sem qualquer aviso, acompanhadas por uma tristeza profunda. O mundo poderia acabar ali mesmo, não faria a menor diferença. A vontade era dormir para nunca mais acordar, ou acordar numa outra realidade, onde os últimos meses não existissem, ou, ainda, onde Steven não existisse. Ledo devaneio.

Dentro daquele carro com as portas e janelas fechadas, John viu e reviu os últimos meses de sua vida com clareza e reviveu aqueles momentos com um misto de dor e angústia. Nada daquilo lhe trazia felicidade ou satisfação. Sentia asco por pensar que Steven o tocara por diversas vezes. Chorava como se suas lágrimas expulsassem de si aquelas lembranças agora atordoantes.

Mas a vida tinha que prosseguir. Nada pararia por causa do sofrimento de John e ele certamente não era o primeiro a ter um coração partido. Era preciso erguer a cabeça e seguir adiante, e o primeiro passo era voltar para casa. Num movimento quase automático, John ergueu a cabeça, suspirou fundo, enxugou os olhos com as pontas dos dedos, deu partida e acelerou, guiando o percurso, já decorado, com os pensamentos em qualquer lugar que não fossem aquelas ruas.

Ao estacionar o carro e descer em Wistworth, o coração ficou um pouco mais leve. O silêncio da noite e seus ruídos característicos trouxeram alguma paz de mente e algo anestésico e um pouco letárgico. Caminhando pela vila, o Aconchego deu boas vindas e tentou afastar a Mágoa tão insistente.

John entrou em casa sem saber exatamente que expressão se fazia presente em seu rosto. Sabia que não era das melhores, mas também não se importava. Trocou cumprimentos casuais com seus conhecidos sem demonstrar qualquer emoção além da ataraxia. Subiu o pequeno lance de escadas que levava ao seu quarto e entrou.

Ao abrir a porta, escuro parcial. Seria assim tão tarde? A TV ligada em volume quase inaudível e, à janela, que recebia a luz opaca da lua, estava escorado Andrew, falando com alguém ao celular.

John não fez barulho. Não entrou nem saiu, apenas escorou o ombro e a cabeça no limiar da porta e observou aquela cena atípica. Não prestou atenção na conversa, esta não era de seu interesse, apenas fixou os olhos em qualquer ponto das costas de Andrew e permaneceu ali, parado. Pensava, pensava. Pensava que, no fundo, Andrew era seu santuário, era o que o fazia esquecer aqueles problemas e sentir certo alívio, paz de espírito. Como John o amava. Queria-o tão bem quanto a si mesmo, ou até mais. Queria protegê-lo, mas, naquele momento, era ele quem precisava de proteção.

— Então tá, depois a gente se fala. Abraço!

Andrew desligou o celular e se virou. Logo se deparou com a imagem de John e exclamou prontamente:

— Porra! O que você tá fazendo aí? Quer me matar de susto, joe?

John despertou. Demorou alguns segundos para digerir a exclamação de Andrew, mas reagiu. Languidamente, adentrou o quarto, fechou a porta e acendeu a luz.

— Desculpa, não quis te assustar.

Antes que Andrew reparasse seu rosto decerto inchado, John foi até o banheiro lavá-lo. Deixou que a água corrente da torneira acabasse de extinguir suas lágrimas e sua apatia. Sem querer encarar o espelho, John saiu do banheiro e viu que Andrew ainda estava encostado à janela, com os ombros apoiados no parapeito.

— Tá tudo bem contigo? Parece que cê tá meio triste...

Aquela pergunta, aquela maldita pergunta, sempre ali para desarmar e render qualquer mortal. A resposta não veio e os olhos de John se desviaram. A expressão de Andrew se tornou levemente desconfiada.

— John?

Então John o encarou. Estavam frente a frente. Os olhos de Andrew explicitavam sua preocupação. Aqueles olhos claros tão íntimos e familiares, cordiais, solidários, amigos. Pareciam adornar o rosto de um anjo, anjo este que era o único porto seguro naquele momento, o único que poderia confortar, o único que poderia oferecer companhia e abrigo.

Ainda sem responder à pergunta, John caminhou até Andrew, que agora lhe parecia uma figura etérea e complacente, e o abraçou, envolvendo-o pela cintura e repousando a cabeça em seu peito.

Sem entender o que se passava, sabendo apenas que havia algo muito errado, Andrew apenas retribuiu o abraço em silêncio. Abraçou John com o corpo todo, com toda a fraternidade que havia em si. Afagou seus cabelos e pressionou seus lábios contra os mesmos. Esperou que as lágrimas de John molhassem sua camiseta, mas isto não aconteceu. Afastando-se alguns centímetros, Andrew perguntou com voz branda:

— Quer me falar o que houve?

Sem se afastar do tronco de Andrew, John meneou a cabeça negativamente. Queria apenas permanecer ali na proteção dos braços de Andrew. E assim foi feito. Sustentaram aquele abraço por longos minutos, até quando John sentiu que poderia, e deveria, erguer a cabeça e continuar. Desvencilhou-se calmamente dos braços de Andrew e olhou-o nos olhos mais uma vez.

— Obrigado — sussurrou.

Afastou-se. Sentou-se em sua cama e começou a se despir. Andrew se deitou e, ainda preocupado, permaneceu vigiando os movimentos de John, tentando imaginar o que acontecera para deixá-lo daquela maneira. Para preencher o vazio do cômodo, Andrew aumentou o volume da TV e sintonizou qualquer coisa engraçada que estivesse passando.

Devagar, John se levantou, pegou suas roupas e colocou-as no cesto. Trancou-se no banheiro e ligou o chuveiro, deixando que a ducha terminasse de lavar sua alma. Seus pensamentos agora lentamente cediam lugar a outros, ainda menos coesos, embora um pouco mais aprazíveis. Ou assustadores.

— Não, não pode ser...

Desligou o chuveiro. Passar uma, duas horas ali não resolveria nada. Enxugou-se dentro do box e voltou ao quarto. Luz apagada, abajur aceso, clima fúnebre. Geralmente John evitava se trocar na frente de Andrew, mas dessa vez não se importou. Colocou seus trajes de dormir e, sentado à beira da cama, enxugou seus cabelos massageando-os incansavelmente. Terminado o processo, levou a toalha molhada de volta ao banheiro e pendurou-a no box.

Um bocejo surgiu, anunciando a exaustão. Quando John se preparava para deitar, Andrew interrompeu o silêncio.

— Ô, John.

— Hum?

— Deita aqui comigo, vai.

Sem precisar pensar muito, John foi. Andrew se afastou, encostando-se na parede, e John se deitou ao seu lado, ajeitando seu corpo naquele pequeno espaço. Andrew o abraçou novamente e beijou seu ombro.

— Boa noite. Qualquer coisa, eu tô aqui, tá?

John apenas assentiu com a cabeça. Exausto, física e psicologicamente, não demorou a que pegasse no sono e logo dormisse profundamente.

Depois do pranto vem o réquiem, merecido e reconfortante. Como se estivesse voltando da própria morte, John acordou ao som do despertador com o coração disparado. Susto. Suas horas de sono foram como horas de coma.

John respirou fundo para se recuperar do susto. Esticou o braço e tocou o despertador, fazendo-o desligar-se. Então percebeu que Andrew não estava em sua cama. Então se lembrou de que estava na cama dele, o que fez a noite anterior toda voltar à mente trazendo consigo uma pontada no coração.

Tentando não se ater a essas recordações dolorosas, John se levantou. Andrew ainda dormia. Mais um dia a ser vivido, um novo recomeço.

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