Capítulo 1

"Acho que eu vou seguir meu coração:

É um lugar muito bom para começar"

(Madonna – Sky Fits Heaven)


Noite de inverno. John observava da janela de seu quarto as grossas gotas de água da chuva, iluminadas pela luz pálida do poste da rua, caírem rapidamente do céu e se quebrarem no chão. Estava sem sono e sentia-se cansado. Não dormia direito há dias, pois esperava um telefonema importante.

— Sem sono, meu filho?

— Oi, tia... É, tô sim.

— Quer que eu te prepare um chá de camomila?

— Não precisa, obrigado. Pode ir dormir sossegada, eu tô legal.

— Então tá. Boa noite.

— Boa noite.

John vivia com sua tia Elizabeth, uma solteirona de quarenta e poucos anos, irmã de seu finado pai. Pai e mãe morreram de acidente de carro, quando John ainda era um bebê. Então ele ficou aos cuidados de sua tia, que também era sua madrinha e acabou o adotando. Foram ela e, por vezes, os avôs de John os responsáveis por toda sua criação e educação. Beth, como gostava de ser chamada, fez questão de tomar para si os cuidados do sobrinho, pois este sempre fora seu preferido, desde o dia em que nasceu. Portanto, mais do que tia ou madrinha, Beth era a segunda mãe de John, e assim ele a considerava.

John se afastou da janela e fechou a persiana. Deitou-se em sua cama, acendeu o abajur, pegou uma revista e começou a folheá-la desinteressadamente. Qualquer coisa que o fizesse distrair-se e pegar no sono. Ligou a TV para manter seus ouvidos ocupados e suspirou.

Tinha apenas vinte e dois anos, mas desde cedo começara a arquitetar seu futuro. Cultivava a pretensão de estudar Jornalismo e trabalhar para uma grande gazeta, emissora de rádio ou TV, quaisquer que fossem. Depois, ganharia bastante dinheiro com isso e moraria numa casa de campo, encontraria o homem de sua vida e seria feliz ao lado dele. Ainda não fazia a menor ideia de como conseguiria realizar todas essas façanhas, mas sabia que as alcançaria, uma a uma.

Apesar do último tópico desse planejamento, sua vida sentimental estava em recesso. O tempo de colégio e os anos seguintes trouxeram algumas experiências agridoces e, desde então, John preferiu fechar para balanço e esperar que a vida pusesse em seu caminho pessoas menos mesquinhas e que estivessem prontas para um relacionamento maduro, o que ele sempre almejara.

Os cabelos de John eram lisos, castanhos, curtos e arrepiados. Estatura mediana, corpo magro, torneado, e olhos escuros. Deixava, de vez em quando, a barba cerrada, "por fazer", para dar a impressão de que era mais velho e mais sério, responsável. Apesar de carregar consigo um senso de humor que o fazia parecer sempre extrovertido, era relativamente tímido, o que, segundo sua tia, acrescia-lhe charme extra.

Dormiu.

O resultado do teste de admissão chegaria em breve. Caso passasse, John ingressaria na mais renomada faculdade de seu estado: a Universidade Wistworth, na cidade de Taigo. Seria, além da realização de um sonho; resultado de muito estudo e esforço, o primeiro passo de sua futura carreira jornalística. Mas ainda eram apenas planos. O que preenchia seus pensamentos eram as fantasias e vislumbres alimentados por sua tia Beth.

— Aproveite, meu filho. Aproveite bastante porque é na faculdade que você vai começar a conhecer as pessoas mais legais de toda sua vida.

Tia Beth sempre tinha uma história para contar. Sentada à mesa, após o jantar, fumando seu cigarro fedido, confessava sua juventude a John, que ria, ria.

— Foi lá que eu conheci meu primeiro namorado sério. Se aquele desgraçado não tivesse me traído com a maior vadia de toda a faculdade, talvez nós estivéssemos juntos até hoje.

E John ria mais. Tia Beth era a pessoa mais debochada que conhecia, embora esta mantivesse sempre uma postura fina e elegante. Contava suas histórias de forma tão jocosa que pareciam até mentira.

— Então não desanime, querido. Quem sabe você não encontra um brotinho por lá, hã?

John e Beth não tinham segredos. Contavam e dividiam tudo um com o outro. Ela fora a primeira a saber sobre sua homossexualidade, e tudo que disse foi "Ah, eu já sabia, meu amor". Um alívio. Ela dizia ser uma mulher cosmopolita. Era estilista, dona de um ateliê de moda, por isso, para ela, não era novidade alguma lidar com o mundo gay. Ganhava um bom dinheiro; suficiente pra viver com bastante conforto. John trabalhava com ela e, graças a isso, também tinha sua estabilidade financeira. Seus estudos seriam bancados com dinheiro que recebera de herança de seus pais e que ficou sob responsabilidade de sua tia, que o manteve guardado até então.

▪▫▪

Passados dois dias, John recebeu a ligação que esperava. Atendeu ao telefone com o coração na mão, temendo pelo pior, mas esperançoso de que ouviria o que esperava ouvir há semanas. Tia Beth ao lado, com as mãos cruzadas e semblante de expectativa.

— Parabéns, senhor Collins, o senhor foi admitido.

John conteve a felicidade, mas Beth bradou: "Ahhhhhhh! Esse é meu garoto!" e estendeu as mãos ao alto. E continuava dizendo que já sabia, que esse menino era uma joia, que estava orgulhosa demais, enquanto John tentava entender o que a mulher ao telefone dizia.

— Tia, eu tô tentando escutar a moça! — bronqueou.

— O que foi? Eu também estou feliz, não posso?! — reclamou Beth, retirando-se em seguida para deixar John conversar em paz.

John teria um prazo de quinze dias úteis para fazer sua matrícula, o que não seria problema. Iria o quanto antes para evitar o período de trotes. Era vaidoso e não queria ver seu cabelo sendo raspado por gente aloprada. Desligou o telefone.

Foi correndo até a cozinha e abraçou Beth. Rodopiou-a no ar duas vezes e repetiu novamente:

— Eu fui aprovado!

— Eu sei! Estou tão orgulhosa de você!

Sorriram. Mal se continham.

— Por outro lado — continuou Beth —, é uma pena. Você vai ter que abandonar sua tia velha aqui pra ir estudar. E eu vou ficar aqui sozinha, jogada às traças.

— É claro que não! Eu estarei estudando, não estarei preso nem morto. Vou fazer o possível pra vir aqui de vez em quando, aos finais de semana, feriados, sei lá, vou dar um jeito. Além de que a gente vai se falar por telefone.

— Ah, isso não é a mesma coisa — lamentou ela, deslizando a mão pelo rosto de John. — Mas não se preocupa comigo. O que importa é que você foi aprovado e seu futuro brilhante vai começar.

Riram.

— Quando começam as aulas?

— Na segunda semana de fevereiro, daqui a uns vinte e poucos dias.

— Você precisa se mudar logo pra ir se acostumando à cidade, não?

John riu.

— Não, tenho que ficar aqui o maior tempo possível com você. Mas não vamos pensar nisso agora. A gente precisa comemorar.

— Certo, certo. O que você acha de... — pensou um instante — irmos fazer suas compras de despedida no shopping?

— Hahaha! Ótimo. Eu vou trocar de roupa, já venho.

Agora John estava a apenas um passo de uma nova e importante etapa de sua vida. Teria, enfim, a oportunidade de presenciar a realização das fantasias que sua tia lhe contava e de se tornar alguém mais responsável, independente e disciplinado. Tinha a sensação de que coisas boas estavam por vir.

O espírito maternal de Beth insistia em se preocupar com John. Angustiava-a pensar que seu sobrinho estaria em um lugar diferente e desconhecido, onde não haveria ninguém familiar a quem ele pudesse recorrer e que ela estaria a quilômetros de distância, incapaz de fazer qualquer coisa por ele caso precisasse, afinal ela fazia papel de pai e mãe de John há mais de vinte anos, e essa seria a primeira vez que eles se separariam.

▪▫▪

Os dias se passaram e a hora da partida chegou. As malas já estavam prontas, a matrícula já estava feita, o carro já estava abastecido, as lágrimas já brotavam dos cantos dos olhos e a emoção eclodia.

— Eu te ajudo com essas malas.

Beth se aproximou do carro, que já estava com o porta-malas aberto, e pegou uma das malas no chão.

— Céus! Tem um cadáver aqui dentro?

John riu alto.

— Preciso me prevenir. Vou ficar lá por, pelo menos, quatro anos. Meu quarto inteiro precisa caber dentro dessas malas. Dá aqui, eu te ajudo.

John ajudou a carregar a mala e guardou as restantes sozinho. Fechou as portas e suspirou. Olhou sua tia e sorriu.

— Vou sentir sua falta.

— É pra me ligar todas as noite, ouviu bem? — exigiu Beth, apontando o dedo.

— Ouvi — John sorriu. — Não prometo que vou ligar todas as noites, mas pelo menos uma vez por semana eu te ligo. E eu vou passar aqui pra te visitar, não precisa se preocupar.

— Acho bom mesmo. Agora vem cá me dar um abraço porque parece que eu já estou com saudades.

Abraçaram-se.

— Detesto despedidas — murmurou Beth, enxugando uma lágrima que escorria de seu olho direito.

— Não chora, tia. Eu vou voltar.

— Tá bom. Então vai logo senão eu vou acabar chorando.

John sorriu novamente.

— Até mais. Te amo.

— Eu também.

Trocarammais um abraço. John beijou a testa de sua tia e entrou no carro. Deu partida,acelerou e saiu rumo à sua nova vida.

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