Capítulo 7


   Sunna sentiu seu feitiço ir ao chão, seu trabalho estava feito e ela não poderia se sentir mais orgulhosa. Mesmo que sentida por infelizmente ter de abandonar sua querida capa vermelha para não levantar suspeitas, ela quase desfez o feitiço quando se lembrou da mamadeira na casa de Demétria. Controlando aquele punhado de terra seca para que se movesse sorrateiramente no ritmo do vento. A profetisa só relaxou momentos depois, quando sentiu a presença de sua magia de volta em seu quintal. Quebrando a magia, Sunna tira as mãos da mesa de pedra e sente o ar ir embora, segue até jardim atras de seu chalé observando a cidade sob a colina onde ficava sua casa, precisamente na direção da praça central, onde o nefilim anteriormente estava. A multidão ainda se fazia visível mesmo a distância, Sunna podia imaginar o que diziam, como espalhavam mais e mais o acontecido.

   Ela custou a virar as costas e seguir até o jardim, seus olhos estavam presos ali enquanto seu coração batia no ritmo das pulsações de dor em seus ombros. Sua mente ainda assimilava tantas informações, o que aconteceu, o que estava acontecendo e o que aconteceria, a dimensão das palavras de Caos e quanta responsabilidade estava sobre ela agora. O medo de falhar congelava os ossos de Sunna, mas ela não se permitia encara-lo, não agora sozinha, talvez ao lado de Demétria, mas não ali. Se forçando a seguir em frente, Sunna finalmente alcança a mamadeira, coberta de areia, e volta para dentro tentando e falhando ao ignorar a nova magnitude de suas ações.

    - Demétria, está tudo bem. Podem descer. - Reverberou ela enquanto trancava a porta e colocava a mamadeira dentro do poço artesiano preso ao balcão. Em questão de segundos, lá estavam as duas, Demétria pálida e Minerva adormecida.

   - O que você fez, Sunna e por que eu sinto que tem a ver com essa menina? - O tom de Demétria parecia o de costume, mas seus olhos inquietos percorrendo todo o arredor sugeriam o contrário.

   - Sente-se, tenho muito a falar. - E assim, Sunna relatou tudo sobre a noite anterior. Contou como repentinamente sentiu a necessidade de caminhar após o eclipse, contou sobre como achou Minerva chorando em um amontoado de galhos em uma árvore baixa, contou sobre os olhos brancos e como os escondeu e durante todo o monologo, Deméria não disse uma palavra, não demonstrou nenhuma reação, ela apenas ouviu. - Eu não sabia nada sobre ela, até essa manhã pouco depois de você chegar. Você pode dizer algo? Estou começando a ficar assustada com sua seriedade.

   Demétria apenas esfregou ambos os olhos, descendo as mãos até o queixo e unindo-as como se fizesse uma oração. Sua boca abria e fechava como se buscasse por palavras diante a confusão de informações, até que enfim, respirou e disse. - Mais cedo, eu havia dito que você tirava bebês de árvores. Juro pelos Deuses, eu estava sendo irônica. - Uma risada saiu dos lábios de Sunna, tanto pelo comentário de Demétria como para disfarçar o desespero de ter que contar o resto da história. Na melhor das possibilidades, Sunna não teria tempo de cometer erros, Demétria a mataria antes que isso acontecesse e ela estava seriamente se perguntando se seria algo ruim.

   - Bom, essa foi parte fácil de explicar, então preciso que fique calma. - A pedido de Sunna, Demétria respirou fundo novamente, recuando no acento acolchoado para ficar longe da ruiva. - Quando desmaiei mais cedo, senti como estivesse entrando em meu próprio corpo e quebrando todos os meus ossos, mas repentinamente parou e eu me vi em um lugar completamente vazio, claro e estático, era literalmente o nada, isto é, até Ele aparecer. Caos estava lá e eu o reconheci mesmo nunca tendo visto- o. Ele tocou meus ombros e de repente tudo fazia sentido. Demétria eu sei que é difícil acreditar, mas essa garota, ela é filha de Apolo, e Caos me escolheu para salva-la. Ele me tornou sua profetisa.

   - Profetisa, Sunna? Eu acredito em você, mas nada na sua história faz sentido. A começar pela filha do rei estar dormindo nos seus braços nesse exato momento, seguido dela ser uma Deusa cujo os olhos brilham constantemente e foi entregue a você por um receptáculo do sacerdote real. Então você é escolhida por Caos, Deus supremo e criador do universo, para cuidar da garota sendo que as leis de Arcade, incluindo aquela sobre bebês com olhos brancos, foram todas inspiradas por Deuses, incluindo o próprio Caos. - Demétria olhava nos olhos de Sunna, desejando que a recém profetisa entendesse suas dúvidas, mas principalmente sua preocupação. - Sei que não está mentindo, você não teria motivos para isso, mas se tudo for como você está dizendo ser. - Um suspiro a escapa os lábios que logo são comprimidos numa linha. - É arriscado demais. Sunna, é quase uma sentença de morte.

   Sunna sabia que Demétria estava certa, tão quanto sabia que não voltaria atras. Em nenhum momento passou por sua cabeça pedir a ela para que participasse, mas estaria mentindo se dissesse que não esperava isso. O risco era alto e a aposta incerta, mas Sunna apostaria todas suas fichas em uma causa perdida, com ou sem sua companheira ela o faria. Com um movimento cuidadoso, Sunna tocou o joelho de Demétria fazendo-a olhar novamente em seus olhos.

   - Eu entendo, juro. Apenas, deixe-me provar, talvez assim você consiga assimilar melhor.

   - Não estou pedindo provas de nada, Sunna, sua palavra me é o suficiente. - Antes que Demétria pudesse concluir seu raciocínio, Sunna a corta, colocando Minerva em seus braços.

   - Estou abusando de sua paciência, querida, deixe-me fazer isso. - Antes que ela pudesse falar qualquer outra coisa, Sunna desabotoara os três primeiros botões da frente de seu vestido cor de pêssego. Demétria se assusta com a atitude repentina, mas não reage, apenas assiste Sunna afastar o tecido leve que cobria um de seus ombros revelando intrincados de gavinhas em espiral que percorriam desde o ombro até a clavícula, os traços finos e delicados lembravam a Demétria um jardim, um jardim sob a pele. - Caos tocou meus ombros antes que eu retornasse, não tinha certeza se estariam aí, mas agora as enxergando, finalmente entendi. -Sunna arrisca ajoelhar-se em frente a Demétria, com um pouco mais de coragem, consegue tocar sua mão. - Eu não sei porque eu ou porque ele me escolheu, estou longe de ser digna desse título. Mas Demétria, eu posso fazer isso, eu consigo fazer isso e sei que será arriscado, mas por favor - Agora eram os olhos de Sunna que imploravam. Mesmo em contextos diferentes, mesmo com objetivos diferentes, ambas imploravam por compreensão e ambas estavam dispostas a oferecer verdadeiramente esse pedido silencioso de olhos firmes, mas internamente desesperados. - Apenas deixe-me tentar.

   Aquelas íris azuis frias, os olhos de Sunna tinham a cor de um lago congelado e Demétria estava a caminhar sobre ele, sua profundidade ameaçava a puxa-la mais e mais para baixo afogando-a na imensidão fria sob a superfície, mas mesmo presa naquele limbo azul, ela ainda estaria aquecida, mesmo que qualquer um no lugar dela congelasse. Assim Demétria enxergava Sunna e seus olhos glaciais, que apenas descongelavam a presença do calor dela, apenas dela. Ela queria oferecer essa chance sem que o medo a assolasse, mas não conseguiria, não sabendo que Sunna morreria por isso e ela teria que assisti-la afundar em seu próprio oceano congelado.

   - A que custo? Sunna, não percebe o risco que estará correndo? - Os olhos de Demétria se fecham e ela gesticula negativamente com a cabeça. - Apolo irá caça-la até o túmulo. Se ainda não notou, acabou de assinar sua sentença de morte e eu me recuso a ser testemunha.

   - Não é apenas sobre mim, tudo que Caos me mostrou, tudo que estou sentindo, nem de longe é apenas intuição. Claro, sempre existirão riscos inevitáveis e eu não terei controle deles, Caos sabia disso e ainda assim trouxe Minerva até mim. - Agora de pé, Sunna gesticulava frenética com as mãos, como se seu dinamismo ajudasse Demétria a entende-la. - Demétria, você sempre foi a pessoa que lutou minhas guerras e confiou em mim a qualquer custo. Hoje, mais uma vez, excedendo os limites que há muito já ultrapassei, peço que confie e lute mais uma vez ao meu lado. - Os olhos da recém profetisa brilhavam ferozes, excitados com toda a adrenalina correndo pelo corpo da mesma e aos poucos, Demétria afundou na profundidade dos olhos de Sunna.

   - Eu espero que saiba que essa tentativa é una. Falhar não é, e nunca será uma opção, mas sempre será uma probabilidade, não pode me garantir que não é, e sabe disso. - Demétria força um sorriso para confortar sua amiga, que sem tirar os olhos dela põe de volta o vestido no lugar. - Saiba que a responsabilidade que está tomando pode destruir muito mais que só eu e você, se essa garota pertence a Caos, você, desde já tem a história em mãos, o que quer que faça, faça pensando no futuro. Por último, saiba que estarei ao seu lado, mas com a condição de que não se sacrifique, em outras palavras, se eu perceber que está arriscando sua vida mais que o necessário, já que tudo isso é um jogo suicida, eu não ficarei para ver.

   - Eu sei disso, de tudo isso, mas Demétria, não posso garantir a segurança total de nenhum de nós. - De volta ao assento do sofá, Sunna encara o sorriso fraco de Demétria se fechar, deixando claro que a condição não era algo negociável. - E como você mesma disse, minhas decisões devem ser baseadas no futuro, por isso, quero adicionar uma condição a sua condição, se é que isso existe. - Por pouco tempo as duas sorriem, mas logo voltam a expressão séria. - Sacrifícios, riscos, ou qualquer coisa desse tipo, só serão permitidas se a vida de Minerva, ou melhor, Selene, estiver correndo risco. Ela é, e sempre será a prioridade. Se você concordar com minha condição extra, eu juro seguir a risca a sua.

   Demétria raciocinava a proposta de Sunna, procurando qualquer brecha contra ou ao seu favor, mas não encontrou.

   - Eu concordo, profetisa Sunna D'luna. - Disse Demétria com um ar de riso, mas seu orgulho e admiração estavam explícitos. Suas palavras saíram leves, mas pesaram dentro dela, mesmo concordando com o termo extra de Sunna, ela era capaz de sentir o tic-tac do relógio dentro de seu inconsciente. Uma contagem regressiva até o momento em que o mundo cairia em pedaços e eles rolariam até seus pés.

   - Não me chame assim, apesar de tudo ainda não sou merecedora de um título como esse. - Os sorrisos voltaram ao rosto de ambas, mesmo que aquela tensão ainda estivesse ali.

   - Bom, Caos discorda. Não sei você, mas eu prefiro concordar com ele. - Com Sunna próxima a ela, Demétria afasta o tecido pêssego revelando as marcas na clavícula de Sunna, deixando o sorriso sarcástico desaparecer. - Elas são lindas. Acha que alguém indigno ganharia marcas tão lindas quanto essas?

   As informações daquele dia ainda não haviam sido digeridas completamente por Sunna que sentia sua cabeça pulsar agora que estava relaxada. Cansada, ela joga cabeça e costas para trás, recostando-se no sofá e encarando o teto e o simples lustre de ferro pendurado nele, também olhou de canto para Demétria e seu cabelo impecável.

   - Eu sabia que mulheres escolhidas pelos Deuses carregavam suas marcas, mas não sabia que essas marcas eram tão literais. - Respondeu seguindo o vai e vem do lustre com os olhos. - No mínimo é intrigante tê-las.

   - Antes de Filgord, quando você ainda era minha mentora e uma das meninas foi marcada por Hades? - A nostalgia se instalou entre elas, Sunna recordava-se bem da memória desenterrada por Demétria, tanto que preguiçosamente ergueu a cabeça para encara-la. - Não são todas as imagen que conseguem essa honra, estou assustada, mas orgulhosa de você. "Binecuvantata fi profetesa Haosului."

   As palavras romenas para "bendita seja a proferisa de Caos" fizeram o interior de Sunna aquecesse. As palavras geralmente utilizadas para conjurações soaram tão poderosas quanto se realmente estivessem sendo ditas durante um ritual e ali, Sunna recebeu todo o apoio que precisava de sua companheira.

   - Binecuvântată este cea care crede în adevărul meu. - As janelas abriram-se uma por uma sutilmente permitindo a entrada do vento Oeste, sendo ele convocado pelas palavras em resposta dadas por Sunna. Instantaneamente traduzida por Demétria, mas a percepção da mesma interpretou-a de um jeito que apenas ela entenderia e Sunna sabia disso, afinal, apenas Demétria era capaz de lê-la com tanta exatidão.

   Quando "Bendita é aquela que crê na minha verdade" tornou-se "Não irei decepciona-la", ambas sorriram genuinamente, aproveitando a calmaria enquanto esperavam a tempestade que já batia a porta.

   - Vou ordenhar leite para Minerva, e espero que assim que eu retornar você tenha um ótimo e seguro plano, senhora profetisa. - Devolvendo Minerva para os braços de sua mãe, Demétria apanha um dos baldes pendurados na cozinha despedindo-se com um aceno de mão antes de virar as costas e sair pelos fundos.

   Com um suspiro, Sunna olha para Minerva que já ostenta uma expressão emburrada de pré choro. - Lá vamos nós novamente.

    A chegada de Demétria não demorou, mas foi o suficiente para Minerva quase deixar Sunna surda de pelo menos um dos ouvidos, mas foi poupada disso assim que a mamadeira chegou a sua boca.

   - Não sei por quanto tempo ainda seremos abençoadas com o silencio, então seja direta. Qual é o plano? - A impaciência de Demétria beirava o desespero, ainda que contido.

   - Um feitiço de memória em formato de poção. - Respondeu Sunna com uma simplicidade que irritou profundamente Demétria.

   - Ignorando o fato de ser extremamente complexo transformar um feitiço em poção, como você pretende fazer toda Filgord beber sua poção? - Os olhos afiados e o sorriso sabichão em seu rosto foram respondidos por Sunna por olhos semicerrados.

   - Sabe, eu não mencionei beber em momento algum. - Sunna estava fazendo questão de testar a pouca paciência de Demétria que já preparava a resposta assim como uma cobra prepara o bote. - Farei chover a poção, uma hora as pessoas acabaram tendo contato com a água e quando isso acontecer, suas memorias serão substituídas. Viu, não é tão difícil.

   - E como pretende transformar poção em chuva? Ninguém nunca ouviu sequer falar em algo parecido Sunna, por acaso enlouqueceu? As convulsões que Caos te deu afetaram sua cabeça muito forte? - Em parte, Demétria estava certa, em outra, apenas estava sendo maldosa. Mas Caos havia presenteado sua recente profetisa com muito mais que lindas tatuagens.

   - Nenhum antes de mim possuía uma druida da água e o privilegio da benção de um Deus primordial. Sabe Demétria, hoje é o dia onde tornaremos o impossível possível, se Caos tornou uma forasteira sua profetisa e a entregou o destino de Arcade, não tem curiosidade de ver até onde isso vai dar? - Os olhos travessos de Sunna lembravam a Demétria um gato, um gato laranja, arisco e preguiçoso.

   - Terá sorte se um raio não cair em sua cabeça. - Com um movimento negativo de cabeça e um suspiro alto e frustrado, Demétria confirma. - O que eu preciso fazer?

   - É isso que eu gosto de ouvir. - Sem obter uma resposta positiva ao seu comentário, Sunna continuou. - Preciso que quando minha poção estiver pronta você a transforme em chuva.

    Lábios contraídos e um olhar fulminante, essa foi a visão de Sunna.

   - Patético, Sunna. Como espera que eu multiplique a sua poção? Não que eu não consiga, mas pela quantidade seria um chapisco ao invés de chuva.

   Sunna observava aquela mania insuportável que Demétria tinha de corrigi-la, mostrar o quão perspicaz era. Em parte, ver aquela enciclopédia ambulante disparar seus conhecimentos era fascinante, fazia sentido a mesma morar em uma biblioteca não aberta ao público. Era fato que Demétria já havia compreendido o plano e modificando-o para que se tornasse infalível, estava apenas esperando que Sunna cedesse o controle do mesmo para ela. Sem saída e sem coragem o suficiente para discutir com a furação perfeccionista, Sunna a dá o gostinho de ouvi-la dizer.

   - E o que você sugere? - Mesmo contra sua vontade, ao perceber aqueles olhos castanhos brilharem em excitação Sunna teve todo seu orgulho reconstruído.

   - É simples. Mesmo que chuva não seja possível, podemos tentar algo que dure mais tempo, as gotas sejam menores que pingos e unirá nossas habilidades, já que a única pessoa protegida aqui e você e não está nos meus planos me arriscar tanto com a magia. - Sinalizando para o bule de chá fervente que ela mesma havia feito, Demétria faz uma pausa dramática na tentativa de tornar sua conclusão um mistério.

   Sunna, por sua vez, pensou o quão maligno e engraçado seria interromper a conclusão do raciocínio de sua amiga.

   - Ótima ideia! você transformará a poção em um nevoeiro denso e seu efeito será por inalação. - Como se acariciasse um filhote, Sunna bagunça o cabelo perfeito de Demétria mantendo um sorriso debochado.

   Os olhos brilhantes se transformaram em uma máscara de ódio, Demétria cerrou os olhos e abriu a boca enquanto milhões de palavrões passavam em sua cabeça, mas foi interrompida novamente por Sunna.

   - Como sei que é uma ótima amiga, deixarei Minerva aos seus cuidados enquanto saio e busco os ingredientes que sei que faltam. - Antes que algum objeto fosse lançado em sua direção, Sunna corre até a porta lutando para segurar uma gargalhada. Assim que a porta bate às suas costas, um grito enraivecido de Demétria chega aos seus ouvidos.

   - Vai ter troco D'luna! - Sem mais qualquer gota de autocontrole, Sunna gargalha enquanto cambaleia em direção a floresta.

   Aquele sorriso ainda estampava seu rosto quando chegou ao fim da trilha rumo a floresta, o vento frio de fim de outono assobiou trazendo memorias e calafrios. Ela odiava admitir, mas ainda odiava sentir aquelas brisas vindas do Oeste. Elas traziam mais e mais memorias, uma atrelada a outra, um rosto responsável por outro onde todos possuíam apenas uma coisa em comum; ele. Já se passaram mais de 30 anos, mas o vento ainda carregava as fraquezas de Sunna, isso a fazia questionar se um dia o passado não seria nada além do passado e ela seria nada além de mais uma pessoa que sobreviveu a ele. Até lá, Sunna estampava um sorriso vivido enquanto há trinta anos ela não se sente nada além de um fantasma.

   Ela tentou agarrar-se novamente a Demétria, as memorias junto a ela ainda eram o suficiente para impedi-la de cair. Entretanto, agora outro sorriso apertava seu coração, Minerva, a sutil lembrança da existência de sua agora filha fizera o coração de Sunna disparar em alegria, Minerva era sua e ninguém no mundo a tiraria dela, não como tiraram o outro, não de novo. Com os olhos novamente gélidos, ela sentia as lagrimas se formarem e sua garganta fechar enquanto sua mente repetia constantemente "não de novo", Sunna enviou uma prece silenciosa aos Deuses desejando de todo coração que Minerva fosse sua cura, independente do preço, pediu que a futura salvadora de Arcade também a salvasse, restaurando aquilo que há muito fora quebrado dentro dela. Em segredo, a profetisa desejou em seu íntimo e egoísta coração Elijah de volta.

   Ainda atordoada pelas memorias que a atingiram como um chute, Sunna caminha floresta adentro até o pequeno córrego após a ponte. Entre as árvores, Sunna caminhava com pressa mesmo com os olhos vidrados na paisagem arrumando qualquer distração que fosse para afastar o peso do vazio e culpa. Mas não passava, a dor parecia cerca-la, engoli-la aos poucos, afundando nas areias de sua memória. Mesmo com as lagrimas ameaçando cair, Sunna se recusava ruir, não de novo, mesmo que seu corpo implorasse para que ela caísse, a profetisa correu até onde desejava, descontou sua frustração em suas pernas correndo o mais rápido que podia, correu até que suas lagrimas secassem e seus pulmões implorando ar fossem tudo que ela era capaz de sentir. Em parte, funcionara, seus pensamentos se calaram, mas agora ela escorava-se em uma das arvores próximas ao córrego quase sem forças para dar um passo. O ar saia condensado de sua boca devido ao frio, frio esse responsável por acalmar um pouco mais rápido a ardência nos pulmões de Sunna.

   Devagar, ela buscava qualquer sinal de musgo colorido, na encosta da água, sob as pedras, entre troncos, qualquer lugar com grande quantidade de umidade, mas nada. Sunna só encontro o que procurava em um buraco entre as raízes de uma arvore velha demais para estar viva, a coloração amarela vibrava e sobre ela pequenos Betelgs descansavam. Betelgs eram pequenas criaturas magicas muito parecidos com salamandras, exceto por sua calda dupla e patas de cor diferente do resto do corpo, eram extremamente escorregadios e famosos por seu mecanismo de defesa alucinógeno. Sunna lembrava-se de um caso de um homem que esquecera o próprio nome após cair em um ninho de betelgs. Protegendo seu corpo com magia proferida por sussurros baixos, ela estende a mão pegando um deles, o pequeno tinha patinhas azuis salpicadas de preto enquanto seu tronco amarelo florescente, a criaturinha de olhos pretos se remexeu entre os dedos de Sunna tentando escapar. De longe parecia indefeso e frágil, mas não era. Outro feitiço sussurrado, desta vez para fazê-lo dormir, a profetisa poderia voltar para casa sossegada graças ao sucesso de sua curta missão, isso é, se o barulho de galho não estalasse alto acima dela que rapidamente recuou erguendo os olhos.

   Se escondendo entre as copas da árvore uma figura masculina pendurava-se acocorado em um dos galhos. Sunna não pensou, agiu por instinto conjurando o ar a seu favor utilizando-o para lança-la até o galho onde o homem se escondia, fazendo que ele caísse de costas no chão e soltando um grunhido assim que Sunna cai sobre ele, o antebraço em seu pescoço, a mão empurrando seu bíceps contra o chão. Sunna se assemelhava a uma fera, dentes expostos, olhos predatórios, enquanto neve começava a cair ao seu redor. Com cuidado a profetisa afasta o capuz que lhe cobria o rosto, deparando-se com impactantes olhos cinza azulados. Aparentemente foi a primeira coisa que conseguiram reparar um no outro já que os longos cabelos ruivos o tapavam a visão de qualquer coisa senão o rosto dela. Cortinas cor de fogo e não importa para onde corresse, ele iria queimar.

   - Magiec. - Sibilou o homem olhando com nojo nos olhos de Sunna. Não havia medo nele.

   - Errado. Nomagic. - Retrucou ela no mesmo tom de desprezo.

   - Imagem. - Não o medo, mas a surpresa chegou a seus olhos, porque? Sunna não sabia, mas assentiu.

   - Que menino esperto. - Aquele homem estava longe de parecer um menino, barba por fazer, ombros largos, maxilar marcado, olheiras profundas e cabelos curtos loiro escuro. A imagem perfeita de um nobre.

   - Pode me soltar?- Disse enquanto a neve cobria sua pele aos poucos.

   - Primeiro seu nome, forasteiro. - Apesar de convencida que o homem não era uma ameaça, Sunna repassou um feitiço de proteção em sua mente.

   - Rence, de Deva'd. - As palavras pareciam ter um gosto ruim na boca do homem que as pronunciou, mas assim que chegaram aos ouvidos de Sunna, seus olhos se arregalaram e sua soberba sumiu. Aquele nome a afetou o suficiente para o vento e neve rodopiarem envolta deles.

   - O rei caído. - As palavras de Sunna saíram por um fio, e Rence sentiu o corpo arrepiar. Encarando um ao outro, ambos sentiram o peso causado por aquele título cruel. 

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