Capítulo 15



Vlaches

   Lowliet não se recordava de um dia que não fosse igual àquele. Desde os pratos de seu café da manhã ao tic-tac de todos os relógios de Amber Hill, esses os quais sua mãe era obcecada ao ponto de ter um em cada cômodo. Apesar da rotina programada, ele não se sentia sufocado por ela, pelo contrário, com isso ele poderia provar sempre aquela falsa sensação de previsão. Por exemplo, Sir Ann viria buscá-lo para seu treino de espadas em pouco menos de dez minutos, e ela o diria como ele deveria já estar esperando por ela no pátio, assim como fazia todos os dias, mas não nesse. Para variar, ou por curiosidade, naquele dia Lowliet decidiu que esperaria por ela.

Amber Hill estava silenciosa aquela "tarde" enquanto o príncipe percorria os corredores da ala norte, onde estava seu quarto, todo ele repleto de tapeçarias, esculturas e janelas as quais ele nunca pode ver através. Com a maldição dos Deuses sobre Arcade, devido ao sequestro da princesa Selene, Vlaches precisou modificar-se para abrigar seus súditos, isso incluía a família real, logo, suas especificações de sangue. Foi uma coincidência infeliz a terra de seres praticamente intolerantes ao sol ser logo aquela mais afetada pelo dia sem fim que recaiu sobre os reinos do Oeste, por sorte, eles já possuíam uma pequena estrutura subterrânea que abrigava os vampiros terciários, mas aumentá-la os custou anos e a vida de muitos inocentes. O príncipe lembrava-se vagamente do fim dessas construções, mas tinha a recordação perfeita de dividir a mesa de jantar com muitos de seus súditos enquanto as obras não eram finalizadas, assim, abrindo Amber Hill para o povo.

As janelas foram tapadas por tábuas e tecidos grossos presos por pregos, o próprio pai de Lowliet as tapou já que era o único vampiro primário, consequentemente imune ao sol. Um suspiro frustrado escapou do príncipe, ele compreendia que não podia olhar por elas e estava fazendo um ótimo trabalho em não pensar sobre isso, já que a última vez em que tocou aquelas barreiras foi no outono passado, mas ainda assim, ele não conseguia não se sentir tentado em descobrir como era aquela tal imensidão azul que os livros da tutora da Victorya tanto descreviam.

O jovem príncipe orgulhava-se de seu sangue, e principalmente do que o ocasionou. Ele conhecia a história de seus pais desde sempre, ele e todos os que já pisaram em Vlaches, a verdade é que a revolução orquestrada por seu pai e sua mãe para destruir as estruturas de consanguinidade e absolutismo, legado de seus ancestrais, era digna de um conto épico. Sua mãe, uma humana que foi transformada por seu pai, lutou ao seu lado, tornou-se rainha e acabou com a fome em todo o território, antes maior, causada por anos de impostos abusivos e escravidão. Seu pai, agora o último vampiro primário em Arcade e o homem que ensina a Lowliet como ser um bom rei. E agora, o legado deles se estende a Lowliet, o primeiro herdeiro que não carrega o sangue puro de seus ancestrais, uma coisa nova que veio entre tantas outras após os feitos de seus pais, agora, ele e Victorya, eram o que restava de linhagem real.

O sangue era algo importante para qualquer realeza, mas para os vampiros era diferente. Não se tratava de sobrenomes ou uma habilidade especial como era para os Eskyer, mas da quantidade de veneno dentro deles diluída. Os primários, a realeza, nasciam com uma enorme quantidade dele, o que tornava sua pele quase impenetrável e os protegia do sol e do fogo, tornando-os a prova de chamas, por esse motivo os casamentos eram realizados entre parentes, para manter o sangue sempre forte. Entretanto, os primários também possuíam a habilidade de transferir esse veneno através de suas presas, tal qual uma cobra, veneno esse, que é completamente letal. Mas ao mesmo tempo que era a causa, esse mesmo veneno podia salvar aquele mordido por um vampiro, mas para isso, o mordido deveria beber do sangue daquele que o infectou e a consequência disso, seria um vampiro transformado, um secundário. Esses, apesar da força, velocidade e resistência específica ao fogo, eram completamente incapazes de ter contato com o sol graças à pouca toxina em seu corpo, mas isso não os tirava a capacidade de transformar outros. A partir disso, criando os terciários, vampiros menores e com pouca ou nenhuma imunidade ao fogo, possuindo apenas os sentidos aguçados e a força e velocidade sobre-humana de todos eles.

Com isso, quanto mais diluído o sangue, mais fraco o vampiro, e ignorando força e sensibilidade, todos compartilhavam de uma única coisa, a quase imortalidade. Doenças não os afetavam, suas peles mal podiam ser fissuradas, o envelhecimento retardava baseado na quantidade de sangue que ingeriam, mas mesmo com tudo isso ainda podiam ser mortos. O veneno em seus sangues matava parte deles, mas a parte humana permanecia intocada até suas mortes literais, a partir daí, o veneno tomava conta de suas mentes e reanimava seus corpos, esse estado era chamado de strigois.

Mas o jovem príncipe e sua prima estavam no meio disso como o maior questionamento de sua espécie em tempos. O que acontece com a prole de um primário e uma secundaria? O tempo os nomeou como quaternários já que seus pais se recusaram a fazer qualquer tipo de teste enquanto são tão jovens, e assim os dias de incerteza se seguiram. O povo geralmente era receptivo, mas ainda sentiam a necessidade de um rei indestrutível que os guiaria para a glória, assim como seu pai, e Lowliet sonhava em corresponder a isso enquanto os mais conservadores o chamavam de mestiço e os mais esperançosos, de milagre.

Os degraus chegaram antes que príncipe pudesse se dar conta, mas ele preferiu escorregar pelo corrimão liso de madeira até o andar inferior. Dali já era possível enxergar o pátio de treino, também totalmente coberto com um telhado improvisado que banhava todo o andar num forte breu, capaz de empertigar até mesmo o garoto. Para sua sorte, o escritório de sua mãe era naquele andar e ao menos era aconchegante e para lá ele seguiu. A porta sempre destrancada, assim como quase todas as outras no castelo, já estava entreaberta quando Lowliet chegou.

Aquele era um dos poucos cômodos iluminados de Amber Hill, as paredes brancas e o piso claro afastavam a penumbra do resto do castelo assim como os incontáveis candelabros e velas a cada mínimo centímetro. As estantes de livros iam do piso ao teto do primeiro ao segundo andar da biblioteca particular da rainha Elizabeth, o andar de baixo comportava apenas suas mesas de estudo repletas de tinta para caneta, xicaras de chá e taças de vinho sujas, e uma bagunça de papeis que apenas ela entendia. O andar de cima guardava seus compromissos quanto rainha, não como pesquisadora, além da estante de livros trancada e completamente proibida para Lowliet, mas com exceção desses, ele tinha acesso a todos os outros exemplares de sua mãe.

— Mãe? — Chamou o jovem príncipe para anunciar sua chegada. Do andar superior, algo pesado caiu.

— Aqui em cima, querido, me dê um segundo. — Lowliet não esperaria para que ela descesse, então pulou os degraus de pedra de dois em dois, mas só até se aproximar do topo para que sua mãe não o repreendesse, novamente.

— Já estou aqui. O que está fazendo hoje? — Elizabeth estava sentada em seu divã, os sapatos lançados ao lado de sua mesa, o penteado quase desfeito e uma resma de papeis ao seu lado, todos com o selo real.

— Procrastinando antes de responder cada um desses papeis e convocar uma reunião. — A rainha afastou uma mecha escura de seu cabelo antes de convidar Lowliet a sentar-se ao seu lado. — Decidiu não testar a paciência de Ann hoje? Está adiantado para seu treino.

— Quero ver a reação dela. Por que Victorya não está tendo aula em seu quarto hoje? — Sua mãe controlava a agenda de ambos, então não era surpresa que ela sempre estivesse ciente de onde estavam a cada período do dia. Ao longe, o relógio da biblioteca badalou quatro vezes.

— Ela precisou usar a cozinha hoje e falando em cozinha, o jantar logo será servido. Precisei adiantá-lo hoje pelas reuniões. — Lowliet não sentia dificuldade em diferenciar a "rainha" da "mãe", geralmente a mãe o acordava com beijos e lia histórias para ele, a rainha o entregava horários e o ensinava como usar arco e flecha, além de ajudá-lo a decorar o nome de cada um de seus súditos, o que ainda é uma tarefa difícil com todos os nascimentos e mortes todos os dias. Mas na maioria do tempo ela era os dois, assim como seu pai. Entre eles, Lowliet se assemelhava muito mais a ele, o cabelo castanho escuro ondulado até os ombros, o queixo marcado, o nariz anguloso, mas os olhos sem dúvida eram como os de sua mãe, o mesmo âmbar dourado como chamas incessantes.

— Vou poder participar dessa?

— Se conseguir ficar acordado, não vejo porquê não, mas precisa ficar quieto. — A mão repleta de anéis de sua mãe o afagou o cabelo antes de se levantar e ir direto ao guarda corpo, recostando os cotovelos sobre ele e encarando a porta. — Um... dois... e...

Pela porta, um amontoado de metais de armaduras e espadas tilintava.

— Minha rainha, não encontrei o príncipe em seu quarto e o rei também não sabe onde ele está, devo alertar os outros para procurá-lo? — Ann era uma mulher baixa de cabelos loiros cacheados e bochechas vermelhas, mas seu pai confiava a ela o título de sua melhor espadachim.

— Acho que não será preciso, Sir Ann. — Elizabeth gesticulou para ela, parecendo novamente muito mais como a rainha que era. Mesmo com os pés descalços e o vestido amarrotado era nítida a força que exalava. Os longos cabelos pretos mal presos em tranças se desfazendo, o vestido simples de cor magenta sem qualquer detalhe além do espartilho bordado com dentes-de-leão, mas era sua pele levemente escura acobreada que brilhava naquela luz amarela de tantas velas que a tornava tão imponente, isso e os olhos dourados em chamas. — Al, vá com ela. Vejo você no jantar.

Elizabeth puxou seu filho para um abraço antes de empurrá-lo sorridente até as escadas.

— Você sabe que não gosto quando me chama assim. — Sua mãe não o incentivava a usar seu nome sem abreviações, nem ela nem ninguém no palácio, mas isso não queria dizer que ele não iria continuar tentando.

— Mil perdões, Alucard Lowliet Tepes Dracul. — Disse por fim. — E não desobedeça a Ann, ou serei eu a ser sua professora nas próximas aulas.

— Não será necessário, majestade, o príncipe é mal-humorado, mas é um bom aluno. — Ann riu com sua mãe, mas Lowliet não achou graça. — Vamos lá, Al.

Os treinos com Ann não eram fáceis, mas ele estava pegando jeito. Apesar de ela ser uma espadachim, ele nunca tocou em uma espada enquanto estava sob o comando dela, já que ela acreditava que ele ainda não aguentaria o peso de uma e porque, também segundo ela, não era preciso estar com uma espada em mãos para saber manusear uma. Lowliet discordava, mas não é como se Ann não estivesse segura de seus métodos, logo, ela as substituiu por facas de caça ou filetes, raramente filetes, e com isso, desde o ano passado ele coleciona cortes finos por seu corpo. Cortes esses que ele faz questão de esconder, já que vampiros primários nascem com a pele impenetrável, com uma das capas de inverno antigas de seu pai. Sua mãe e governanta já tentaram diversas vezes escondê-la em dias exaustivamente quentes, mas ele de fato não desgrudava dela.

Não queria dizer que ele estava confortável, apesar de o tecido de couro não ser pesado, ela ainda era muito maior que ele, com mangas arregaçadas e bainha arrastando no chão, além de cheirar a madeira molhada, mas ainda assim lá estava ele, usando-a enquanto desviava dos golpes de Ann. E então, antes mesmo que Lowliet notasse o tempo passar o relógio do pátio anunciou o jantar.

Sir Ann, frente a ele, com o rosto suado e o cabelo claro completamente despenteado, desviando de seu golpe direcionado ao seu joelho fraco, parou assim que ouviu o badalar e ele também.

— Muito bem, alteza. — Entre um suspiro e um alongamento breve ela tirou a arma de sua mão. — Seus reflexos estão melhorando com o tempo, mas gostaria que você lutasse com mais nobreza.

— Nobreza? Eu sou literalmente um príncipe, Ann. — Lowliet forçava-se a não ceder ao desejo de desabar sobre as próprias pernas em cansaço, mas a observação de Ann o fez tirar energia de onde não tinha para endireitar sua coluna, como vira a mãe fazer diversas vezes.

— Deixe-me explicar melhor. Você luta como se vencer valesse tudo, é inteligente da sua parte descobrir meus pontos fracos e usá-los contra mim, mas não estou te ensinando a sobreviver, Al. Quero que respeite seu oponente, enxergue-o como igual e aprenda que vencer porque é mais habilidoso é muito mais gratificante que vencer porque tirou vantagem.

— Não tirei vantagem de você por nenhum segundo, Sir Ann. — Lowliet compreendia o raciocínio de sua mentora, mas não concordava com ela.

— Como não? Todas as suas investidas eram praticamente golpes baixos e blefes. — Ela odiava quando ele a olhava daquela forma, com os olhos de sua mãe, o príncipe parecia tão incisivo quanto a rainha encarando-a como se conhecesse cada pedaço da mente dela.

— Você tem anos de treinamento a mais que eu, é uma peça fundamental no exército de Vlaches, tem mais habilidade que todos os nossos espadachins mais velhos. Não posso lutar contra você como um igual, porque não somos iguais.

— Isso não é desculpa, príncipe Alucard. Nada justifica trapaça. — Ann lutou com o sorriso que queria aparecer em seus lábios tanto quanto lutou com os pelos arrepiados por baixo do tecido fino de sua blusa.

— Não é trapaça, você tem a vantagem. — Orgulhoso de não ter sido ferido hoje, ele se despede de Ann com um aceno simples. — Eu só nivelei as coisas. Agora vamos jantar.

Ann permaneceu muda assistindo seu pupilo se afastar do pátio, incrédula com a possibilidade de quase estar concordando com ele.

O jovem príncipe estava ansioso pelo jantar de hoje, havia descoberto com seu tio que teriam biscoitos de limão para a sobremesa, e logo após ele assistiria à reunião de seus pais, mas até lá, se ocuparia com um banho e roupas limpas.

Entre os corredores de costume da Ala Norte até o seu quarto, o príncipe é surpreendido por passos rápidos e um gritinho finíssimo.

— Al! — Victorya o surpreendeu abraçando-o por trás, quase sufocando o príncipe por seu enorme vestido armado. — Ah! Dessa vez você não me viu chegar.

— Senhorita, já conversamos sobre isso. Essa atitude não condiz com o comportamento de uma dama. — Atras de sua prima vinha sua tutora, tão velha quanto uma múmia aos olhos de Lowliet, e pelo que ouviu seu pai dizer, ela ensinou sua avó. Ainda assim, madame Monreal não parecia ter mais que sessenta.

— Não preciso ser uma dama com esse ranzinza. — Respondeu ainda roubando o ar dos pulmões dele e consequentemente seu direito de resposta.

— Em relação a isso você não pode ser simplesmente seletiva. — Para sua sorte, madame Monreal afastou dele o amontoado de saias azul ciano. — Sinto muito por ela, sua alteza, não vai se repetir.

— Não sou ranzinza, e já te mandei parar de me chamar assim. — Victorya nasceu um ano após ele, é filha de seu tio Victor e da antiga pretendente de seu pai, Helena, mas as informações aprofundadas sobre a morte da antiga lady ou sobre o seu futuro noivado com Victorya deveriam ser um segredo para o jovem príncipe, entretanto, ele adquirira cedo demais o hábito de ouvir por trás das portas e a habilidade não ser ouvido por vampiros. Lowliet sabia que era jovem, mas também sabia que seu sangue era a única coisa capaz de torná-lo um rei menor do que esperavam dele, e apesar de acreditar que seus pais quebrarem a linhagem não foi um erro, alguém teria que uni-la novamente e assim ele faria. Ele precisava compensar o que faltava em si.

— Vou chamá-lo como eu quiser, você não pode me dar ordens. — O olhar de madame Monreal cortou-a de sua birra e até mesmo o príncipe prendeu o ar.

— Já estudamos as maneiras adequadas de se dirigir à família real, mocinha. Agora vão os dois se preparar para o jantar. — Os olhos verdes da tutora encontraram pendulo do relógio de chão no início do corredor, a distância era surpreendente para que enxergasse com tanta facilidade, surpreendendo Lowliet que jamais esperou essa facilidade de uma vampira terciaria. — Vocês têm pouco mais que dez minutos. Vou acompanhar a senhorita Victorya para ajudá-la a se vestir, mas não hesite em chamar se precisar de mim, sua alteza.

— Vejo vocês em dez minutos então, e obrigado madame Monreal, mas não vou precisar. — Victorya abriu a boca algumas vezes para protestar, mas não fez nada além de olhar para os próprios pés. Lowliet não concordava com a educação que era dada a ela, embora ele também fosse obrigado a compartilhar algumas aulas, mas se eles pretendem fazer dela rainha um dia deveriam entregá-la uma espada e não tecido em um bastidor e agulha para bordar.

Amber Hill era sempre quente, então ele era grato pelas horas de banho. Como sempre, a banheira já estava pronta quando ele chegava, assim como a toalha e suas roupas, Lowliet não sabia quem as escolhia, mas não via motivo em não usar. Quando terminou estava exatamente igual a sempre, com cores diferentes no máximo, o mesmo cabelo preto cumprido penteado para trás que logo estaria assanhado pelos cachos pouco definidos, o mesmo modelo de roupa que parecia sempre apertada demais em seu pescoço apesar de folgada nos braços, geralmente cor de nada com coisa alguma, sua calça era vermelha, justa e estava por dentro das botas, mas o tecido era horrivelmente crespo por fora.

O seu reflexo no espelho nunca parecia seu, mas a capa de seu pai parecia devolvê-lo a si, então a colocou por cima dos ombros e desceu até a sala de jantar.

Para o jovem príncipe, era nos jantares que sua família era ela mesma, toda a sua família. A sala de jantar contava com três enormes mesas com lugares para todos os funcionários do castelo, dos cozinheiros às governantas e guardas, todos se juntavam à mesa para jantar. Os lugares não eram marcados, mas Lowliet se recusava a sair do lado de Victorya, o que era um desafio quando ela se atrasava como hoje.

— Está com cheiro de limão de novo, alteza. — Henri, tesoureiro de seus pais, era seu favorito dentre os membros do concelho, era o mais novo entre aqueles velhos também.

— Ajudei Tânia com o café da manhã hoje e ela me fez uma limonada, mas caiu na capa, de novo. —Suas bochechas coraram com as risadas de Henri, mas Lowliet não sentiu humilhação vindo dele.

— Não me canso de você garoto, espero que fique acordado para a reunião.

O príncipe estava prestes a responder, mas a sala caiu em um silencio repentino roubando-o a fala. À porta, seu pai flanqueado por dois outros soldados trajando armaduras de obsidiana atraiam os olhares ansiosos por novidades dos reinos além de Vlaches, um dos homens com uma caixa em mãos.

— Leve os documentos para a sala do conselho e seja rápido, estamos atrasados. — O tom de voz sério de seu pai não condizia com o sorriso em seu rosto para os presentes. — Desculpem a entrada dramática, como estão todos?

E assim a enxurrada de cumprimentos e conversas paralelas voltou aos poucos. Seu pai vinha em sua direção, mas acenou para Henri antes dele.

— Ann me contou o que fez, não estou bravo, só grato por ela te dar aulas ao invés de mim. — Seu pai sorria para ele, os olhos espremidos pelas maçãs do rosto altas.

— Não pode me dar bronca se não estou errado. — Vlad era tudo que Lowliet desejava ser, era forte, gentil, um guerreiro habilidoso, inteligente, basicamente tudo que um rei deveria ser. Mas apesar da aparência praticamente idêntica à do filho, o jovem príncipe sabia que era apenas nisso que se assemelhavam.

— Não decidi se está errado ou não ainda, então espere até amanhã. — Logo atrás dele, sua mãe surge como uma nuvem carregada. Trajando um vestido bordô que deixava seus ombros livres e nenhuma joia além de seu anel de casamento.

— O que você fez dessa vez, Al? E você, pare de ser tão espalhafatoso, assustou a todos com essa mania de entradas triunfais. — E agora a rainha agia como mãe dos dois, mas dessa vez foi Lowliet que caiu na risada. Seu pai apenas assentiu com um sorriso doce antes de beijá-la na resta.

— Você está linda, Liz. — O rosto sereno de sua mãe parecia ficar anos mais jovem quando ela estava com seu pai, Lowliet achava particularmente adorável. — E há a possibilidade de Al estar trapaceando no treino, mas é uma zona cinzenta.

— Lido com isso amanhã, hoje estou de bom humor.

Todos já estavam tomando seus lugares, a maior parte das louças postas. À cabeceira da mesa central, madame Monreal conversava com Victorya.

— Vamos, vamos nos sentar. — Sem avisar, Lowliet puxa sua mãe pelo pulso contando que seu pai os seguiria e assim aconteceu. Madame Monreal na ponta, Victorya à sua esquerda com Lowliet ao seu lado e Victor em sua frente. Vlad e Elizabeth sentaram-se um de frente para o outro após Henri ocupar o lugar ao lado de Victor, e aos poucos todos assumiram seus lugares.

Eles não rezavam, com exceção de seu tio Victor, ele parecia comprometido com o papel de sacerdote que o foi dado, talvez fosse o único em silencio enquanto todos comiam e conversavam sobre as novidades cotidianas. Seus pais mal mastigavam com a enxurrada de conversas paralelas em que estavam envolvidos, poucos comentários se estendiam a Lowliet, que tentava não cuspir farofa sempre que respondia alguém, ele já estava em risco de vida falando de boca cheia tão perto de madame Monreal.

O jantar passou tão rápido quanto o resto do dia e em nenhum segundo que fosse, Victorya o dirigiu a palavra. Lowliet chegou a sentir o peso de sua atenção algumas vezes à mesa, mas não sabia o que dizer então permaneceu quieto. Todos já começavam a se despedir e deixar a mesa, as badaladas do relógio ditando a hora de recolher-se aos seus respectivos aposentos, dentro, fora ou abaixo do castelo. Mesmo que essas badaladas não tivessem o mesmo significado para Lowliet, ele fez questão de assim como eles deixar a mesa, a diferença era que antes que os pés dele tocassem o chão seu prato já havia sido recolhido.

O Mesmo acontecia com seus pais, isso não o incomodaria se Victorya não fosse a única obrigada a fazer isso por si só, por insistência de Victor, ele imaginava. Mas sua prima já estava chateada com ele, que embora não soubesse como iniciar uma conversa poderia muito bem oferecer um tratado de paz. Lowliet não se intimidou pelo olhar de seu tio quando ele pegou o prato e talheres de Victorya. Sua mãe o olhando de canto com um sorriso escondido pela taça de vinho.

O menino não olhou para a prima, nem precisava, ele sabia exatamente como estava o seu rosto, os olhos arregalados por um segundo antes de disfarçar, lábios comprimidos, um rubor sutil em suas bochechas magras.

— Alucard, o que acha que está fazendo? — A voz rouca de seu tio quase destruiu seu impulso de coragem, mas ele acelerou o passo até Tânia antes de fraquejar.

— Tânia, pode levar mais esse, por favor? E avisar que o Tio Victor revogou suas proibições relacionadas à lady Victorya. — A cozinheira sorriu para ele, provavelmente sabia que era uma mentira, mas ainda assim assentiu.

— Fico contente que ele tenha mudado de ideia. Vou avisar a todos que eu conseguir, mas vou precisar de uma ajudinha sua para espalhar a notícia, combinado? — A piscadela discreta de Tânia foi tudo que Lowliet precisou.

— Obrigado, você é incrível, Tânia.

O menino voltou para mesa, seus pais conversando com Victor e madame Monreal enquanto Victorya olhava para seus pés, ou tentava, já que o vestido amarelo os cobria completamente. Ele não estava acostumado com aquela estranha dificuldade de respirar e o nó em seu estomago, mas acontecia sempre em que não seguia sua "função" ou desobedecia a ordens.

— Alucard, espero que esteja arrependido de passar por cima das minhas... atribuições. — Seu tio ignorou seu pai e veio em sua direção, poucos passos apenas. Céus, ele estava acabado, sua participação na reunião estava praticamente cancelada naquele momento.

— Sinto muito por ir contra suas ordens, tio. Mas quero que entenda que não me arrependo do resto. Victorya é tão parte da nobreza quanto qualquer um de nós e deveria ser tratada como quem é. — Lowliet pode ouvir os ossos de madame Monreal estalarem quando ela apertou a própria mão, ele não olhou para ela, já estava assustado demais com como seu tio reagiria, mas um suspiro em busca de paciência não parecia tão ruim. Seus pais se entreolhavam com uma expressão ilegível para o pequeno. — Se estamos falando de "justiça" ela tem tanto direito aos privilégios na corte quanto o senhor. Nada mais justo que se ela não puder exercê-los, você também não possa.

— Aprecio o seu crescimento pessoal, Alucard, mas tem tanto poder de decisão nessa situação quanto o jardineiro, por exemplo, não seja arrogante. — Lowliet sentiu as bochechas corarem, ele não queria soar dessa forma. — É bom que se envergonhe, é o primeiro passo para redenção. — Seu tio obviamente não deixou a fragilidade de seu sobrinho passar despercebida.

— Acha que foi arrogante, filho? — Seu pai interveio, Vlad ainda sem qualquer emoção aparente em sua fala ou expressões, nada além dos olhos profundamente escuros com um brilho diferente do comum. O príncipe desejava aquela máscara impassível para si, copiou-a como pode.

— Desculpe interrompê-lo, Vlad, mas receio que quando se trata da educação da minha filha nem você, nem a minha irmã e nem qualquer outro membro da família real tem direito de intervir. — O brilho sumiu dos olhos de seu pai quando ele voltou sua atenção para Victor.

— Mas não fui rude, como meu pai disse. E ele também não disse nada relacionado à educação de Victorya, com todo o respeito, tio, ele sequer dirigiu a palavra ao senhor. — As palavras dele atropelaram seus pensamentos, ele só percebeu o que havia dito quando o silencio consumiu seu tio ao ponto de Lowliet ser capaz de ouvir os batimentos de Victorya acelerarem.

— Cuidado com a boca, alteza. Sei o quanto está ciente do lugar que ocupa nessa corte, mas ainda é um moleque como qualquer outro sob o solo de Vlaches. Quer mesmo honrar seus títulos? Seja bonzinho, obediente e siga as ordens de seus superiores. — Victor desviou o olhar de Lowliet para encarar o vazio profundo dos olhos de seu pai, o rei trancou a mandíbula. — Com todo o respeito.

O calor da vergonha correu por todo o rosto de príncipe que agora não conseguia olhar para nada além de seus pés, ele imaginava a decepção e constrangimento que havia causado mesmo que não intencional. Sua autopiedade desapareceu quando notou seu pai inflar os pulmões e preparar uma resposta para só então ser interrompido por sua mãe que se colocou em frente a ambos.

— Acho que podemos encerrar essa picuinha, não podemos? Ou vão insistir em estragar um jantar tão agradável? — A voz da rainha parecia ridiculamente casual, mas ele tinha certeza de que ninguém ali iria contrariá-la. — Victor, não esqueça que está lidando com uma criança, não espere que ele vá cumprir e compreender suas exigências cegamente apenas por ser indiscutivelmente obediente. Sinto muito que a atitude dele o tenha deixado desconfortável, lidarei com isso, tem a minha palavra, mas esteja ciente. — A vergonha quase fez lagrimas escorrerem dos olhos de Lowliet, céus, como ele se sentia patético. — Da próxima vez que tratar meu filho como "qualquer outro pirralho sob Vlaches" eu mesma o arrancarei a língua. Entendido?

Os dedos de Lowliet não pararam de arranhar o tecido da manga sobrando de seu casaco para se acalmar, mas ele se permitiu uma espiada sob os cílios, encontrando um sorriso de canto discreto no rosto de seu pai, Victor engolindo em seco com olhar afiado, porém temeroso.

— Faça como quiser, Liz. Apenas eduque seu filho corretamente. — O tom carinhoso de seu tio não parecia próprio para a situação, mas pareceu acalmar sua mãe.

— Não se preocupe. Agora, para a reunião, todos vocês, preciso de uma palavrinha com o meu filho. — Victor pareceu satisfeito já que tomou seu rumo para longe da sala de jantar, sozinho, ele deixou que madame Monreal levasse sua prima para seus aposentos, sequer se despediu dela. Victorya o deu um olhar marejado antes de ser repreendida pela tutora e seguir para fora, o que quer que o olhar significava ele não sabia.

— Não acha que ele precisa realmente ser punido por isso, não acha? — Lowliet quase esqueceu a presença de seu pai, distraído com os próprios pensamentos.

— Você me conhece, querido. De fato, eu só preciso de uns minutinhos com ele, pode ir na frente e esperar por nós. — Com seu tio longe, ele se permitiu olhar para cima, seus pais se encaravam como se pudessem ler os pensamentos um do outro, ele não duvidava que pudessem, mas não demorou para que seu pai cedesse. Vlad sorriu para ambos, bagunçou o cabelo de Lowliet e o ofereceu sua segunda piscadela do dia antes de sair.

A sala de jantar estava praticamente vazia naquele momento. Ele precisou que seu pai estivesse fora de seu campo de visão para perceber que ainda não havia encarado sua mãe desde que deixou a sala de jantar. Um medo racional gelou seu estomago quando ela virou para ele, mais mãe do que rainha e suspirou.

— Venha, vamos por este caminho, é um pouco mais longo e menos pessoas podem acabar nos ouvindo. — Não "ninguém vai nos ouvir", não existia tal coisa num covil de vampiros, mesmo que a maioria terciários.

— Estou com problemas, não é? — O calor da vergonha voltou, dessa vez, limitando-se às suas orelhas.

— Você fez algo errado? — Elizabeth livrou-se da presilha em seu cabelo, desfazendo boa parte do penteado complexo.

— Desobedeci. — Confusão se juntou ao embaraço, sua mãe estava tentando ensiná-lo autocritica? Se fosse isso, talvez ele devesse a alertar para otimizar tempo, ele sabia muito bem como fazê-lo.

— De fato. Por quê? — Sua mãe o guiou pelos fundos da sala de jantar, se continuassem por esse caminho logo passariam pelo escritório de seu pai e a sala de artes. Cada passo acompanhado pelo irritante "tic-tac" de relógios.

— Porque ela estava triste, Victorya. Porque tio Victor não tem direito de tratá-la como algo tão pequeno e insignificante, tirando seus direitos de nascença, muito mais direitos que ele, até. Não quando ela é... — Suas explicações saíram rápido demais, sua raiva muito mais rápida que o seu raciocínio. Ele meteu os pés pelas mãos, sua mãe não sabia de seu conhecimento sobre o futuro casamento arranjado entre eles. O príncipe deixou as palavras morrerem em sua boca rápido demais para não ser notado.

— Ela o que, Alucard? — De canto, ele sentiu o olhar de sua mãe cair sobre ele, mas não conseguiu dizer uma única palavra. Sua mãe suspirou longa e profundamente. — Você acha mesmo que não sei que você espia pelas portas? Ou que se esconde entre as estantes e cortinas? Você saiu de dentro de mim, literalmente, acha que não noto o seu cheiro mesmo que tente escondê-lo usando os meus perfumes?

Como era não sentir vergonha? Lowliet já estava se esquecendo àquela altura. O menino achava que seu coração iria saltar da garganta de tanto que batia e quando caísse ele não conseguiria segurá-lo, suas mãos estavam suadas demais para que conseguisse firmar aperto em qualquer coisa. Elizabeth perceberia mesmo sem a audição apurada, ouvia o engolir em seco involuntário de seu filho, os batimentos acelerados dele.

— Ainda vou poder assistir à reunião? — O que lhe restava de coragem foi reunido em uma pergunta quase inaudível, será que deveria pedir desculpas agora ou depois de ouvir sua mãe?

— Depende, você fez algo errado? — A iluminação apontava no fim do corredor, mas eles subiriam as escadas antes de chegar à área.

— Eu não entendo, porque precisa que eu repita. — Sua mãe tinha uma didática confusa, principalmente quando não estava sendo "a rainha".

— Céus, Al. Não preciso que repita nada, quero que defenda suas convicções. — Elizabeth massageou as têmporas com força, não impaciente, mas cansada. — Você se arrepende do que fez ou de ser descoberto?

— Não acho que me arrependo de nenhum dos dois. — Ele não tinha tanta certeza disso, muito menos tinha certeza de suas motivações ou de suas inclinações a esconder o que queria além de "agir como esperam".

— Mas está disposto a desculpar-se e ser punido mesmo assim? — O sim nos olhos de Lowliet geraram uma careta discreta em sua mãe.

— Acho que sim. — Assim que chegaram ao andar de cima, a voz de sua mãe se tornou mais baixa.

Outro suspiro longo demais veio da rainha.

— Você é um bom garoto, meu bem. Mas não pode ser só isso o tempo todo. Particularmente não discordo da sua atitude de hoje, também não chego a me importar com sua curiosidade incontrolável, mas sabe o que realmente me preocupa? Você saber que está de casamento marcado, a vida destinada, definida, sua liberdade praticamente sendo tirada de você e ainda assim não se importar, aceitando algo assim de bom grado, sem pensar duas vezes. Não vou dizer o que deve ou não fazer, isso iria contra o meu discurso anterior, mas pense nisso, que você tem escolha. Lembre como agiu com Ann hoje, como debateu, enfrentou as ordens dela e finja que o mundo é a sua arena de treino, porque ele é.

Algo nas palavras de sua mãe mexeram com ele, a forma como ela se sentia impotente, mas não demonstrava ou dizia. A verdade é que ser rainha não a dava poder absoluto, não quando o restante do concelho tinha tanto poder quanto ela e seu pai, a majestade só estava presente como símbolo. Provavelmente não foi decisão dela o casamento arranjado, mas o concelho vivia para concertar a quebra da dinastia e o sangue puro sendo ameaçado e achavam que podiam fazer isso usando Lowliet.

— Eu não deveria fazer o que é certo?

— Certo e errado mudam o tempo todo, Al, a única coisa que mantem a balança pendendo é a convicção. A sua convicção. É claro que existem exceções, mas você vai ter que aprender os limites dessa ambiguidade sozinho, e acreditar nisso. Sinceramente? Tenho medo de que passe a vida inteira fazendo o que esperam de você, mas só você pode me dizer se isso é algo bom ou ruim. — A voz de Elizabeth ficava cada vez mais baixa conforme se aproximavam, nesse momento já era pouco mais que um sussurro.

As portas da sala de reunião já estavam a poucos passos deles quando sua mãe os parou.

— Vem, vamos entrar. — As mãos de sua mãe estavam frias quando ela tocou seu rosto, afastando os cachos bagunçados de seus olhos. Ela o puxou para perto e encaixou a boca a milímetros de sua orelha, ainda assim sussurrou, muito, muito baixo. Eles não poderiam ouvi-la. — Eu e seu pai não tínhamos escolha, mas fizemos o que para nós era certo, mesmo que para isso precisássemos fazer muitas coisas erradas. O que estou tentando dizer, Al, é que você tem escolha, e se tiver convicção nela e precisar de mim, encontrou uma aliada.

Ela o abraçou, algo rápido, mas cheio de afeto, Lowliet sentiu sua respiração normalizar sem o peso do desconforto e vergonha. Céus, como ele queria ter entendido o que sua mãe queria dizer nas entrelinhas, como ele queria poder oferecer algo que a confortasse e a deixasse orgulhosa dele. Pobre menino, não entendia que nunca precisou de nada disso para ter a total adoração de Elizabeth, só a simples lembrança de sua existência era o suficiente para que todas as suas perguntas fossem respondidas, pois ele era sua convicção.

Lowliet assistiu a mãe se tornar a rainha em poucos segundos, era como vê-la vestir a pele de outra pessoa. Ela abriu a porta para eles, todos já estavam sentados em seus respectivos lugares do lado de dentro, mas levantaram assim que a rainha entrou. Eles já sabiam de suas presenças no corredor, mas aguardaram sua chegada para isso.

— Perdoem o meu atraso, senhores, agradeço a paciência. — A maioria apenas assentiu com a cabeça e voltou aos assentos respectivos enquanto Vlad puxava uma cadeira ao seu lado para Elizabeth, deixando-a ocupar a cabeceira. Lowliet desvencilhou-se do centro, contentando-se com um amontoado bagunçado de almofadas num canto, o canto de leitura de costume dele. Os olhos do príncipe encontraram as costas de seu tio que sequer o ofereceu sua atenção desde sua chegada, ótimo, ele pensou.

Papeis passavam de mão em mão sem que ninguém dissesse uma única palavra, isso é, até um dos senhores à esquerda de seu pai, um lorde antigo que servia à família desde o governo de seu avô, Lowliet não lembrava seu cargo, pigarreou.

— Antes de tudo agradeço a presença de nosso estimado general de forças externas, é uma honra tê-lo conosco general Ambrósius. — O homem de barba enorme, certamente o general, reverenciou o lorde respeitosamente. — E não posso me esquecer da presença do príncipe, obrigado pela sua atenção majestade. — De repente ele estava de volta ao centro da mesa, mesmo distante os olhares caíram sobre ele, que espelhou o comportamento de Ambrósius oferecendo uma reverencia respeitosa, mas nunca muito baixa. — Com os convidados apresentados, gostaria de rapidamente assumir a reunião antes das pautas de segurança e prevenção de riscos virem a mesa, serei breve.

As reações não passaram de sobrancelhas expressivas ou suspiros discretos. O lorde não pareceu se importar, o silencio de todos era o consentimento de que precisava, mas ele só continuou quando Vlad o permitiu com um gesto simples de mão. Erguendo-se do assento, ele reuniu seus próprios papeis. A pele cinzenta que não se decidia entre viva ou morta assustava Lowliet, seus olhos eram escuros como o de seu pai, mas estranhamente amarelados, isso parecia ainda mais evidente com os cabelos completamente brancos à altura do pescoço emoldurando seu rosto. As roupas exageradamente formais era a coisa menos feia nele, mas a grande necessidade de mostrar tanta riqueza só podia significar que estava se sentindo ameaçado, ele estava se reafirmando demais para parecer natural, principalmente quando Lowliet claramente lembrava de sua presença no castelo meses atras.

— Como sabem, as reformas subterrâneas foram finalizadas há pouco mais de dois anos, mas desde então a rainha Haven vem diminuindo o custeamento de nossa parceria. Não temos mais agricultura, toda nossa comida é comprada de reinos vizinhos e temos muito mais bocas que incentivo para alimentá-las, não se continuarmos abrigando outros demônios, não se Haven não aumentar o financiamento de um acordo proposto por ela mesma. — Haven Bartels, rainha dos infernais. Lowliet lembrava-se muito bem dela. Pouco após a maldição de Apolo e a morte de milhares de vampiros ela exigiu uma reunião com Vlachs e assim eles se tornaram um, ou quase. Eles precisavam cuidar dos seus, todos aqueles abençoados ou amaldiçoados como noturnos, os demônios de Arcade, magiecs que tinham a noite como um aspecto vital em suas vidas licantropos, sirenas, metamorfos, espectros, infernais, quimeras e é claro, vampiros. Os únicos realmente afetados fatalmente pela luz do sol eram os vampiros e espectros, mas todos os outros eram enfraquecidos por ela, por isso a expansão subterrânea, abrigar tantas espécies peculiares exigia muito mais esforços e dinheiro que um único reino pode oferecer.

A maldição de Apolo sobre eles destruiu praticamente todos os reinos noturnos menores, mesmo que os únicos demônios organizados em monarquias fossem os infernais, licans e vampiros. No fim, Vlachs teve que abrir as suas portas para os seus, qualquer noturno incapaz de permanecer em sua terra natal era bem-vindo.

— Redija um pedido formal com todas essas informações, lorde Andrei. Em caso de recusa eu desço ao interno e a faço aceitar. — O tom cômico de sua mãe quebrou a seriedade da reunião, mesmo que por pouco tempo.

— Sinto muito em estragar a sua proposta, Andrei. — Disse o Henri com um sorriso nervoso, parecia tudo menos feliz. — Mas talvez não precisemos de seu pedido formal redigido.

— O que quer dizer com isso? — Lorde Andrei o lançou um olhar de canto. Henri fez sinal para o general Ambrósius que o entregou uma resma de papeis.

— Apolo dizimou três dos últimos reinos licans, Pytuna, Kuluene e Montes Roxos. Os jovens Kamaiurés de Kuluene nos enviaram uma mensagem há uma semana atras, mas apenas a recebemos hoje, as notícias sobre a quedada de Pytuna também só chegaram hoje, o que significa que todos os nossos esforços para fortalecer esses reinos foram inúteis. O prejuízo é quase incontável. Não sei vocês, companheiros, mas estou muito grato de minha condição de vampiro, caso contrário esses filhos da puta me matariam de estresse. — Toda a casualidade de Henri caia por terra quando seu olho repuxava involuntariamente. Lowliet não duvidava de sua declaração.

— Tiveram sorte de terem enviados seus herdeiros para cá. Caso contrário seria o fim de um império que sequer teve oportunidade de crescer. — Victor pensou alto.

— Por que a Legião Dourada os atacou? — A voz de Vlad pareceu alta demais, ele estava pálido como papel. Elizabeth passava os olhos pela papelada, frenética.

— Veja por você mesmo. — Disse a rainha, entregando a Vlad o papel.

Dentro do envelope com a carta de alerta de Kuluene, um contrato repleto de especificações encheu os olhos de Vlad e de todos os outros curiosos demais para esperar para que outra pessoa lesse.

— Isso é um absurdo, o fato de mandarem uma declaração de guerra em forma de tratado é no mínimo uma ofensa. É ridículo. — Victor praguejou, logo em seguida olhou para a irmã que ainda não havia tirado os olhos do papel.

— Nós recebemos esse... projeto de intimação? — Desdenhou senhor Stevan, emissário de relações externas. Finalmente se posicionando agora que sua área foi solicitada.

— Não. — Disse Vlad.

— Sim. — Disse Darius ao mesmo tempo. Um frio atingiu a sala de reuniões, gelando a espinha de todos os presentes, a de Lowliet inclusa.

— Quando recebemos o aviso? — Elizabeth permaneceu quieta, mas a pergunta de Ambrósius a fez erguer o olhar.

— Hoje, senhor. — Darius pigarreou. — O rei veio conosco buscar a correspondência.

— Qual a data de envio da carta? Comparem-na com a de Kuluene e estime quanto tempo temos. — A ordem do emissário foi direta.

— Uma semana. Na melhor das hipóteses. — A voz da rainha os atingiu como uma faca. Alguém havia entregado justamente a ela a carta com a intimação de Vlachs, mas ninguém sequer viu seu rosto tremular entre qualquer emoção além de serenidade e confiança. Elizabeth lera todo o documento, de ambos os reinos, não abriu a boca até ter total entendimento da situação. Algo dentro dela gritava negação. — A intimação não deixa aberto negociação, não é um acordo é literalmente um aviso, está nos fazendo escolher entre nosso império ou nosso povo. Vamos escolher entre os entregar nossas coroas ou nossos cidadões.

— O que acontece se escolhermos nossas coroas? — A pergunta de lorde Andrei atraiu olhares de desaprovação.

— Vão matar a nós e ao nosso povo. Todos, sem exceção. Se escolhermos nosso povo, eles prometem deixá-los viver, o que eu duvido muito, mas todos os líderes, nobres ou qualquer um com uma gota de sangue real deve se entregar de boa vontade à prisão. — Elizabeth ignorou o elitismo borbulhante no sangue do lorde, mas Vlad não conteve o revirar de olhos ao compreender a visão de Estado de Apolo e sua corte.

— Certamente vão nos enforcar na capital, na melhor das hipóteses pendurarão nossas cabeças nos muros de Amber Hill, certamente não nos atearão fogo. — O rei estalava o pescoço, enojado com a ideia de não ter seus ritos funerários respeitados.

— Eles querem enfraquecer nosso povo, odeio admitir, mas ainda somos um reino que depende da imagem de família real forte, abençoada e indestrutível. Apolo sabe que mesmo que só um rumor sobre a existência de um outro primário vivo, ou um príncipe sobrevivente é o suficiente para reunir a fé de um povo, eles sempre esperam por um salvador ou escolhido para salvá-los. Patético. — Victor parecia cuspir palavras, Lowliet se surpreendeu ao concordar com ele.

As vozes se juntaram, todas discutindo motivações, tecendo teorias complexas, estrategias de fuga e realocação, mas nunca cogitando resistência. O "tratado" exigia claramente o reconhecimento de Apolo como único soberano do território que eles conquistaram na Segunda Guerra mágica, desdenhava dos títulos de seus antepassados, os obrigava a escolher entre se render ou morrer como se fossem incapazes de lutar. Lowlit cresceu com as histórias das batalhas impossíveis que seus antepassados venceram, ele foi ensinado que vampiros como ele nascem invencíveis, que o exército de Vlaches já foi tão grande quando o da rainha Haven. Agora, ele olha nos olhos dos homens mais poderosos de seu reino e vê o medo consumi-los, de fato cogitando entregar-se ao maldito sádico assassino de bebês. Cogitando entregá-lo, entregar seus pais, Victorya. Bile subiu até sua garganta, ele a engoliu com o desespero que marejava seus olhos. Eles eram tão poderosos quanto infernais, eles tinham... eles precisavam...

O peso de ser observado o atingiu, levando-o de volta à mesa de reunião, os olhos atentos de sua mãe refletiam as engrenagens em sua mente, ela o via. Os lábios do príncipe se abriram, mas fecharam em seguida, com um mínimo aceno de cabeça, ela o incentivou a prosseguir.

— Não...— Sua voz falhou, forçando-o a limpar a garganta. — Não é uma opção resistir?

Os olhares incrédulos o encontraram, silenciosos, não cogitando sua sugestão, mas buscando maneiras não rudes de se dirigir ao príncipe.

— Acha essa uma alternativa viável, príncipe Alucard? — A rainha no corpo de sua mãe atraiu a atenção dos cavalheiros de volta à mesa, Lowliet foi grato a isso.

— Sim, mã...jestade. — Tentando ignorar o próprio erro, ele se aproximou da mesa. — Nossos soldados são fortes, temos mais armaduras ígneas que nunca, podemos vestir quase todos, também há outros noturnos experientes, quimeras principalmente. Se não for o suficiente podemos recorrer à rainha Haven, infernais são os únicos capazes de matar um nefilin, não exatamente os únicos, mas não temos primários além do meu pai.

Um sorriso discreto tomou lugar no rosto de sua mãe, os outros silenciosos demais ainda.

— Nunca fomos conhecidos pela nossa diplomacia, senhores. — Comentou Vlad. — Assim como nunca recusamos uma guerra.

— Antes nós não precisávamos, tínhamos luas cheias a torto e a direita, uma família de primários e um exército imenso. Agora estamos presos dentro de um castelo e rastejando sob a superfície como toupeiras, o sol não vai se pôr, meu rei. Já não somos os mesmos. — A surpresa veio por tais palavras virem justamente de Ambrósius.

— Sinto em dizer, mas não há como discordar do general. Não aguentaríamos muito tempo de batalha. — Concordou lorde Andrei.

— Nem mesmo com o apoio de Haven? — Victor realmente parecia cogitar a sugestão do príncipe, provavelmente temendo de mais por sua cabeça para preocupar-se com o próprio orgulho.

— Ela jamais interferiu em qualquer ação de Apolo, mesmo contra os dela, não desde...— Henri finalmente se pronunciou.

— Pelos Deuses, o filho dela morreu faz anos, não precisa de tanto. — Stevan desdenhou. — Mas é inevitável, se quisermos realmente cogitar a ideia de revidar precisamos dela.

Com um olhar de "venha aqui" Elizabeth trouxe seu filho para o lado de seu assento, e então limpou a garganta.

— Mesmo com os homens de Haven e os nossos não teremos o suficiente. A Legião Dourada virá com dois nefilins para cada vampiro, vocês sabem como aqueles filhos da puta gostam de se exibir, mesmo que só precisem uma dúzia deles para acabar com a maioria dos reinos. A questão é, não vou me curvar para Apolo, e espero que nenhum de vocês faça o mesmo. Porém, não vou deixar meu povo morrer. Se não somos capazes de lutar e muito menos vamos nos render, o que nos resta? — "Morrer" passou pela cabeça de Lowliet, não só a dele, mas o olhar de sua mãe revelava o contrário. — Poder de troca, vamos forçar uma negociação, troca talvez.

— Mil perdões, meu amor, mas do que raios você está falando? — Vlad a olhava tão confuso quanto o resto.

— Diga-me, querido. Quem ousou desafiar nefilins e saiu vivo?

— Já cogitamos infernais, minha rainha... — Lorde Andrei foi cortado antes mesmo que pudesse terminar

— Estou falando da profetisa vermelha. — Se a proposta de Lowliet calou os membros do concelho, a de sua mãe os tirou o folego por um tempo interminável. Em suas memórias, ele procurou pelo título até lembra-se da infame D'luna descendente da traidora, suposta líder de um covil de bandidos organizados, nada surpreendente, isso é, ignorando sua parceria com Caos, Selene e sabe-se lá com mais qual divindade.

— Ainda assim, minha rainha, Sunna D'luna pode ser um grande alvo de fofocas, mas não está na mira dos nefilins, ela não se esconde, eles já teriam ido até ela se a quisessem de fato. Além disso, a rainha Haven odiaria estar vinculada aos delinquentes que ela lidera.

— Você é perspicaz em tudo o que diz, Henri. Mas está equivocado em seu julgamento. Já recebemos diversos pedidos da infame "Lótus Negra" e os ignoramos, tal qual Haven ignora sua própria covardia ao não se levantar contra Apolo, tal qual o próprio Apolo ignora a força crescente dos rebeldes contra ele, mas eu não vou ignorar a oportunidade de colocá-los um contra o outro até que esqueçam de nós. De fato, Sunna D'luna não é um alvo deles, mas a partir do momento em que firmarmos parceria com eles aumentará sua credibilidade, mas se parecer que não só nós, como Haven também o fez, será como uma declaração de guerra descarada. Apolo não poderá negar a força da Lótus após recrutar os maiores reinos noturnos, e a quem atribuirá culpa?

— Sunna D'luna. — Disse Henri incrédulo.

— E onde ela estará quando a batalha acontecer? — Instigou a rainha. Lowliet a observou, não havia prazer em suas palavras ou olhar, o sorriso em seu rosto não passava de falsa confiança.

— Aqui, se exigirmos sua presença. — Dessa vez, seu pai foi quem concluiu. — Sunna D'luna, seus companheiros e quem mais estiver com eles pagarão nossa conta, pelo menos por tempo suficiente até nos prepararmos para a próxima, porque acreditem, haverá próximas. — Vlad concluiu o raciocínio por sua rainha, surpresa brilhava em seus olhos. — Nós temos um plano...

— Não até convencermos Haven Bartels e contatarmos a profetisa. — Tão atônito quanto seu pai, Henri os lembrou.

— Não se preocupem com Haven, eu mesma irei ao encontro dela. Quanto à Lótus, achem um de seus meninos de recado, ou qualquer coisa que usarem para se comunicar, e enviem uma proposta irrecusável. — À esta altura da reunião ninguém se preocuparia com formalidades ao se despedir, mas todos fizeram questão de curvar-se aos seus pais e a ele antes de saírem para colocar suas ordens em prática. Lowliet sentia a própria cabeça latejar, mas não sabia se era sono ou a dissipação da euforia da notícia, ele escolheu acreditar no sono quando começou a caminhar até a saída vagarosamente.

— Al. — Chamou seu pai. — Está tudo bem?

— Estou bem, só cansado. — Mentiu.

— Venha, vou colocá-lo na cama. — O menino assentiu com a cabeça, evitando contato visual. Vlad e Elizabeth se encararam por meio minuto antes de um suspiro pesado do rei, o qual fora o primeiro a quebrar o contato visual e estender a mão para o filho parado à porta.

O silencio até os aposentos de príncipe foi constrangedor. Vlad sempre parecia querer dizer algo, mas estava entalado em sua garganta e Lowliet mal tinha forças nas pernas para caminhar sem que elas falhassem, imagine começar um assunto que sequer seu pai sabia como conduzir. A porta de seu quarto despontou no fim do corredor e o príncipe realmente acreditou que essa noite ele conseguiria dormir tranquilamente, isso é, se o mundo em sua cabeça permanecesse silencioso.

Ao entrar no quarto, seu pai o ajudou com os nós de seus sapatos, mas ele vestiu sua roupa de dormir sozinho. Estava quente no quarto, mas mesmo assim Vlad cobriu seu filho com uma manta fina e fechou as cortinas do dossel de sua cama, ele podia ir embora, Lowliet esperava que ele fosse, mas antes que pudesse deixar o quarto, o rei parou a porta.

— O que você acha disso tudo? — Instintivamente, o príncipe sabia que seu pai se referia à reunião, mas algo em seu tom dava a entender que significava algo além.

— Eu não sei. — Sua voz saiu um sussurro inseguro, para ambos os sentidos da pergunta de Vlad, sua resposta era a mesma.

— Quando souber pode me dizer? — Lowliet cantarolou em resposta arrancando um suspiro de seu pai. — Certo, durma bem, Al.

A porta fechava em uma lentidão desnecessária, mas quando o baque mudo chegou aos seus ouvidos ele desejou que não tivesse vindo, pensou em chamar seu pai que certamente ainda estava no corredor, mas a voz morreu e ele não soube o que a impedia de sair. A respiração ofegante antecedeu o choro silencioso que parecia sincronizado ao tic-tac insuportável daquele maldito relógio de chão. 

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