CAPÍTULO III
Sofia ainda estava em choque com o estado de Keyla quando um empurrão brusco a chamou de volta para a realidade. Era Carmem que surgiu de sabe-se lá onde e a afastou da maca onde Keyla ainda repousava inconsciente, repreendendo e gritando com a morena por não estar a escutando.
─ Se você não for ajudar, não atrapalhe o caminho! ─ Carmem esbravejou, furiosa. ─ Levem ela para fazer uma tomografia e um raio-x.
─ Eu vou junto. Eu sou amiga da vítima. ─ Sofia se interpôs no caminho, se recusando a sair de perto de Keyla.
─ Você sabe muito bem o procedimento do hospital, Sofia. ─ Carmem rosnou, fazendo um gesto para que Amanda e outro enfermeiro levassem Keyla para realizar os exames solicitados. ─ Se você tem algum tipo de relação com a paciente, não pode participar dos procedimentos. Preciso te lembrar disso?
─ Eu entendo, Carmem. ─ Sofia respirou fundo, tentando controlar a vontade de gritar com Carmem. ─ Mas por favor, me mantenha informada sobre o estado dela. Preciso saber como ela está. Ela é a minha melhor amiga.
Carmem lançou um olhar duro para Sofia, se contendo para não revirar os olhos e dar uma resposta atravessada para a morena. Por mais que detestasse a jovem, ela também sabia ser profissional e ter consciência de que ali não era hora e nem momento para retomar a implicância rotineira que tinha com Sofia.
─ Eu farei o possível. ─ Carmem respondeu ainda seca. ─ E se você conhece ela, imagino que deve conhecer a família dela também. Entre em contato com eles para avisar sobre a situação e o estado da sua amiga.
Sofia soltou um suspiro pesado vendo Carmem se afastar para acompanhar Keyla. Ela pegou o celular, lembrando que tinha que avisar Joana e Gabriela que Keyla apareceu, mas ao mesmo tempo, estava preocupada com a reação de Joana.
Com o coração ainda apertado, Sofia discou o número de Joana e esperou ansiosamente enquanto o telefone chamava. Finalmente, após alguns toques, Joana atendeu.
─ Alô? ─ A voz de Joana soou do outro lado da linha, carregada de preocupação.
─ Oi madrinha. Sou eu, a Sofia. ─ Sofia falou rapidamente, tentando controlar a própria voz que ameaçava falhar a qualquer momento. ─ A Keyla apareceu... Ela está aqui no hospital.
Do outro lado, Joana arregalou os olhos enquanto levava uma das mãos à boca. Gabriela estava terminando de fechar a loja quando viu o estado em que a mãe se encontrava e se aproximou preocupada.
─ Mãe, o que houve? Acharam a Keyla? ─ Gabriela indagou aflita.
─ Como assim, Sofi? O que aconteceu? Ela está bem? ─ Joana fez um gesto para Gabriela esperar, enchendo Sofia de perguntas.
Sofia engoliu em seco tentando pensar em uma resposta. Joana estava nervosa e qualquer coisa que ela dissesse apenas serviria para deixar a mulher ainda mais angustiada.
─ Eu não sei, madrinha. ─ Sofia respondeu com um suspiro. ─ Ela acabou de ser levada para fazer uma tomografia e um raio-X. A minha chefe pediu para que eu ligasse para a família da Keyla para avisar sobre o estado dela, mas se bobear, o seu Joel deve estar bêbado demais para se preocupar com ela agora.
─ Meu Deus! ─ Joana passou a mão pelos cabelos. ─ Vou tentar ligar para o Joel e avisar ele. Obrigada por me avisar, querida. Por favor, me mantenha informada sobre qualquer novidade.
─ Não se preocupe, madrinha. Vou informar vocês pelo WhatsApp. E se você puder tentar falar com o seu Joel, seria bom também.
─ Claro. Eu e a Gabi já estamos indo para casa. Assim que chegarmos no bairro vou direto na casa dele.
Sofia se despediu de Joana e desligou a chamada. Por alguns segundos ela se desligou da situação, até lembrar que sua melhor amiga estava precisando dela naquele momento. Sem se importar se Carmem acharia ruim ou não, a morena decidiu ir contra as regras impostas pela mulher e marchou a caminho da sala de tomografia. A ética poderia ser deixada de lado um pouco, pois o que importava para ela naquele instante, era saber e ter certeza de que Keyla ficaria bem.
O ônibus demorou mais do que o previsto e estava lotado, mas para Gabriela e Joana, aquilo não era opção. Apertadas no meio de tantas pessoas, Joana contava para a filha o que Sofia lhe disse na ligação e assim como ela, Gabriela não deixava de se perguntar como Keyla parou no hospital.
─ Eu também ainda estou querendo entender, Gabi. E não é possível que nenhum vizinho, nem sequer o Joel tenha ficado sabendo que a Keyla foi parar no hospital. Como é que a Yara não viu nada e nem o imprestável do Zé Roberto escutou alguma coisa?
─ Mãe, a tia Yara só sai daquele quarto para comer e tomar banho. ─ Gabriela fez uma careta ao sentir alguém esbarrando nela. ─ Fora isso, ela fica o dia todo trancada lá. E o Zé Roberto eu nem preciso dizer nada, né?
─ O que me deixa preocupada mesmo é que o Joel, que é o pai da Keyla, não notou o sumiço da própria filha. ─ Joana balançou a cabeça. ─ Infelizmente a Sofi pode estar certa. Ele deve ter enchido a cara de cachaça outra vez. Não sei nem se vai adiantar falar com ele agora.
─ Mãe, você conhece ele e a tia Yara há muito tempo. Então você deve saber porquê ele bebe tanto.
Joana mordeu os lábios. Ela não apenas sabia como também tinha uma pequena participação naquela história, mas Gabriela não precisava saber disso. Tinha perdido as contas de quantas vezes alertou Joel sobre a ex-mulher, mas o homem era tão cego por ela que sempre ignorou os alertas da amiga e vizinha sobre o comportamento estranho da esposa após nove anos de casamento.
─ É uma história bem longa, Gabi. ─ Joana desconversou, desviando o olhar. ─ E muito delicada também. Outro dia eu conto tudo com mais calma. O importante agora é falarmos com o Joel e também esperar notícias da Keyla.
Gabriela observou a mãe intrigada com o seu comportamento. Joana aparentava nervosismo e Gabriela queria acreditar que era por conta da situação hospitalar de Keyla e agora o repentino sumiço de Joel. Porém, a maneira como Joana estava desconfortável e evitando falar sobre o assunto, dizia para ela que havia caroço naquele angu.
As horas se passaram e a noite foi dando lugar para a madrugada. No hospital, Sofia ia de leito em leito para trocar os soros dos pacientes internados naquela noite, verificar a temperatura ou aplicar os remédios que eles precisavam tomar. Ela caminhava exausta pelos corredores, segurando uma prancheta com as fichas médicas enquanto seguia para a recepção para receber outros pacientes e levá-los para a triagem.
A morena jogou a prancheta sobre o balcão com certa força, mostrando o quão exausta estava se sentindo. Seus pensamentos ainda estavam em Keyla, preocupada com a amiga. Já fazia algumas horas que a loira tinha feito os exames solicitados e ido para o quarto após ter recebido os cuidados necessários.
─ Que noite difícil, né, Sofia? Em duas horas já temos três pacientes com os sintomas da dengue, uma com o apêndice estourado e outra com suspeita de pneumonia. Parece que não vai dar trégua tão cedo. ─ Sandra, a responsável pela recepção no plantão no turno daquele dia, desabafou com Sofia.
─ Nem me fale, Sandra. ─ Sofia encostou no balcão, cruzando os braços. ─ Olha, eu pensei que o plantão da semana passada tinha sido ruim, mas eu retiro o que eu disse. A Carmem apareceu por aqui?
─ Só para gritar e xingar que somos incompetentes como ela sempre faz.
Sofia bufou, revirando os olhos.
─ Eu vou ficar calada porque se eu falar tudo o que eu penso sobre ela, vou me meter em confusão. Eu precisava falar com ela e perguntar como foram os exames da Keyla. ─ Ela comentou com frustração.
─ Eu acho que posso checar para você. Tenho a ficha médica dela registrada aqui. ─ Sandra sugeriu, fazendo Sofia se animar.
─ Sim, por favor, Sandrinha. ─ Sofia cruzou as mãos, agradecida pela iniciativa de Sandra. ─ Você não sabe o peso de preocupação que você acabou de tirar das minhas costas.
─ Imagina, Sofia. Capaz que eu ia te deixar sem notícias da sua amiga.
Sandra digitou os dados de Keyla que foram registrados no hospital e em cerca de cinco segundos, ela encontrou os resultados dos exames a que a loira foi submetida. Sofia batia o pé contra o piso liso do hospital, ansiosa e esperando.
─ Os resultados da tomografia mostram que está tudo ok e o raio-X também. ─ Sandra relatou mostrando a tela do computador para Sofia ler e verificar por conta própria. ─ Foram só alguns hematomas leves, felizmente. Já sabem o que aconteceu com ela?
─ É isso o que eu quero descobrir, Sandra. Vou ver se ela acordou. Em qual quarto ela está?
─ No 320. ─ Sandra respondeu. ─ Pode ir lá, Sofia. Acho que a sargentona não vai aparecer por aqui tão cedo, mas qualquer coisa eu te dou um toque para avisar.
─ Muito obrigada, Sandrinha. ─ Sofia agradeceu mandando um beijo no ar para a colega enquanto se afastava. ─ Você é o meu anjo da guarda.
Quando abriu os olhos, Keyla percebeu que estava em um lugar diferente do chiqueiro que era sua casa. Seus olhos verdes percorreram pelo cômodo e ela se deu conta de que estava em um quarto. Mas que quarto era aquele afinal?, ela se perguntou confusa. As paredes eram brancas com duas faixas em um tom de marrom claro; o chão era de madeira mogno e havia um tapete felpudo branco que Keyla imaginava que seria macio e delicioso de colocar seus pés ali. Na janela, cortinas na cor cinza chumbo impedia que a vista da cidade ficasse à mostra, combinando com um sofá cinza claro com almofadas pretas e brancas. Em ambos os lados da cama havia duas mesas de cabeceira, com um abajur no lado esquerdo.
Confusa, Keyla tentou entender que lugar era aquele, até que ela notou o monitor que mostrava a frequência de seus batimentos cardíacos ao lado direito da cama e então ela lembrou-se do episódio de horas atrás. Ela recordou do momento em que tinha chegado em casa durante o horário do almoço, da discussão com seu pai e dos socos e golpes que lançou contra ela.
Os dentes da loira rangeram de raiva. Seu próprio pai fez com que ela parasse no hospital sem remorso nenhum. Que tipo de pai faria isso com a própria filha? Para Keyla, um pai do tipo monstruoso como Joel era. O corpo da loira fervia de revolta e, ao mesmo tempo, um nó estava entalado em sua garganta enquanto ela repetia mentalmente que não choraria por causa de seu pai estúpido e bêbado.
Assim que Keyla tentou se levantar da cama, ela sentiu uma pontada de dor aguda em seu abdômen, fazendo-a recuar rapidamente. Ela suspirou com desgosto, percebendo que não poderia ignorar completamente os danos que havia sofrido.
Com cuidado, ela tocou a região machucada, sentindo os hematomas e a sensação dolorida que pulsava em seu corpo. Nesse momento, a porta do quarto se abriu lentamente, revelando a figura de Sofia parada no batente, com uma expressão de alívio e preocupação estampada no rosto.
─ Keyla, você acordou! Graças a Deus! ─ Sofia exclamou com alívio, se aproximando da loira. ─ Como você está se sentindo?
Keyla ergueu os olhos para Sofia, encontrando um misto de pena e preocupação nos olhos cor de âmbar da morena. Ela pensou em ser ríspida com Sofia, lhe dizer que odiava que a encarasse com pena, mas desistiu. Sofia não tinha culpa nenhuma do que tinha acontecido e não era justo descontar na amiga o ressentimento que ela estava nutrindo por Joel.
─ Só de eu não estar com nada quebrado, já é um começo. ─ Keyla respondeu com a voz rouca, sentindo a boca seca.
Sofia se aproximou mais, sentando-se na beira da cama e segurando suavemente a mão de Keyla.
─ Você nos deu um baita susto, sabia? ─ Sofia disse com um suspiro. ─ Mas o importante é que agora você está bem. O que aconteceu afinal?
Keyla hesitou por um momento, relutante em relembrar o momento da briga com seu pai. Pensar naquilo fazia sentir o nó na garganta que ela tanto evitava para não cair no choro.
─ Não é nenhuma novidade pra você e nem pra ninguém, Sofia. ─ Keyla riu sem humor nenhum, apertando a colcha azul da cama. ─ Meu pai sempre foi um bêbado escroto e todo mundo já se cansou de saber disso, mas dessa vez ele conseguiu se superar em todos os limites.
Um arrepio passou pela espinha de Sofia. Ela conhecia Joel desde criança e se lembrava muito pouco do pai carinhoso que Keyla teve um dia. Só conseguia recordar de escutar os gritos e choros da amiga que implorava para que o pai parasse de surrá-la.
─ Eu cheguei em casa no horário do almoço pra ver como o meu pai estava e como sempre, ele estava caído de bêbado no sofá. Ao invés de eu ter ignorado como sempre, eu comecei a discutir com ele até que ele tocou no nome daquela vagabunda que me deu à luz e eu revidei xingando ele. O resto você já sabe o que aconteceu.
─ Espera! Você está me dizendo que o seu próprio pai te espancou, é isso? ─ Sofia indagou, em choque.
─ Você sabe que não é a primeira vez que ele faz isso, Sofia. ─ Keyla deu de ombros fingindo demonstrar indiferença. ─ Quando eu era criança era muito pior. Ele me surrava quase todos os dias.
─ Só que dessa vez ele te bateu muito, Keyla. ─ Sofia apontou balançando a cabeça. ─ Ele te espancou.
─ Eu não quero nem imaginar o estrago que ele fez no meu rosto. ─ Keyla respondeu com a voz embargada e tocando levemente em sua face. ─ Ficou muito feio? Você deve ter ficado assustada quando me viu chegar aqui, né?
Sofia sentiu um aperto no coração ao ver a expressão preocupada de Keyla e sua tentativa de disfarçar a vontade de chorar. Ela se aproximou mais da amiga, segurando nas mãos da loira.
─ Keyla, você é linda de qualquer jeito, mas sim, seu rosto ficou um pouco machucado. Mas o importante agora é que você está segura aqui no hospital, recebendo os cuidados que você precisa. Os hematomas vão demorar um pouco pra sumir, mas felizmente você não sofreu nenhuma concussão e nem quebrou nada. Tudo o que você precisa fazer agora é descansar e se recuperar.
─ Vai ser difícil. ─ Keyla suspirou se encostando na cama. ─ Eu preciso trabalhar, Sofia. Tenho que pagar as contas de casa, tenho que comprar comida e manter aquele bêbado mesmo que ele não mereça. E eu não quero voltar pra casa pra ter que olhar pra ele e lembrar que eu estou aqui por culpa daquele velho escroto.
─ Ei, calma! ─ Sofia interrompeu Keyla. ─ Keyla, se eu pudesse eu até te levaria pra minha casa e você ficaria bem lá, mas infelizmente não tem como. Mas eu posso pedir pra minha madrinha te deixar ficar na casa dela até você estar totalmente recuperada. O que você acha?
Keyla balançou a cabeça, negando. Estava agradecida pelo gesto da amiga, mas ela não estava nada disposta a conviver sob o mesmo teto que Gabriela e Joana.
─ Eu agradeço, Sofi. De verdade. ─ Keyla afirmou com sinceridade. ─ Mas acho melhor não. Não quero abusar mais do que eu já abuso da boa vontade da Joana e eu nem mereço que ela me ajude.
─ Mas Keyla...
─ Está tudo bem, amiga. Eu vou dar um jeito. ─ A loira garantiu confiante.
Sofia assentiu, embora ainda estivesse muito preocupada. Se pudesse, ela mesma levaria Keyla para sua casa e deixaria a amiga ficar lá até se sentir pronta para voltar para seu lar, mas com Yara e Natália implicando, infelizmente não seria possível.
Joel estava sentado no sofá imundo da sala de sua casa em uma espécie de transe. O olhar do homem vagava em algum ponto distante, ignorando a presença de Yara e Joana em sua volta. Ambas as mulheres tentavam o chamar de volta para a realidade, mas ele se encontrava em lugar distante dali.
Nos últimos dias era raro que Yara saísse de casa, de dentro de seu quarto, para fazer qualquer coisa que envolvesse sair de sua depressão profunda no qual ela estava mergulhada há anos. No entanto, quando ela escutou a sirene da ambulância há algumas horas atrás, a curiosidade e uma certa preocupação abateu sobre a mulher, fazendo-a se obrigar a sair de casa para verificar se algo aconteceu com um de seus vizinhos.
Ao lado de Yara, Joana soltou um suspiro pesado que revelava a exaustão e o desgaste emocional que sentia. Seus olhos percorreram a sala inteira e Joana sentia uma energia muito pesada e carregada vinda de dentro daquela casa. Ela olhou para Joel sentado no sofá com suas roupas imundas e cheirando a cerveja, a barba suja e por fazer e o rosto desgastado pelos anos de bebedeira. Para ela, Joel estava irreconhecível física e emocionalmente.
─ O que foi que aconteceu com você, Joel? ─ Joana sussurrou olhando para o amigo com decepção e preocupação no olhar.
─ Ele está assim há horas, Joana. ─ Yara contou cruzando os braços. ─ Ele não falou nada nem quando a ambulância levou a Keyla pro hospital.
─ Ele deve ter recuperado o pouco de sobriedade e remorso que ele ainda sente e por isso está assim.
Joel não respondeu às palavras de Yara e Joana, como se estivesse em um mundo à parte, incapaz de enfrentar a realidade que o esperava. Ele estava afogado em um mar de culpa e arrependimento, mas também em uma tempestade de desespero para voltar à bebida para esquecer o que ele fez com a filha. O som das vozes das mulheres ao seu redor parecia distante, abafado pelos seus próprios pensamentos tumultuados.
Joana olhou para o amigo com uma mistura de compaixão e desgosto. Ela sabia que Joel estava se afundando cada vez mais na bebida e na desesperança, mas sentia-se impotente para ajudá-lo. Para ela, não tinha como ajudar Joel se ele próprio parecia não querer ser ajudado.
─ A Sofia contou o que você fez, Joel. ─ Joana se sentou ao lado dele no sofá. ─ Eu já sabia que você tinha piorado de temperamento junto com a bebedeira durante todos esses anos, mas eu nunca pensei que você seria capaz de mandar a sua própria filha pro hospital.
─ Joana, acho que não vai adiantar nada falar com ele agora. Olha como ele não reage a nada do que estamos falando pra ele até agora. ─ Yara apontou, cética.
─ Ele não vai ficar assim por muito tempo, Yara. Uma hora ou outra ele vai ter que falar. ─ Joana insistiu cruzando os braços.
─ Se você acha isso... ─ Yara deu de ombros. ─ Eu vou indo então. Vou deixar ele com você. Se precisar de alguma coisa você sabe que pode gritar.
Joana agradeceu com o olhar e Yara por fim foi embora, deixando a amiga e Joel sozinhos. Ela respirou fundo, sem tirar os olhos de cima dele. Poderia levar horas, mas ela não iria embora daquela casa sem antes fazê-lo voltar à razão.
─ Joel, eu sei que as coisas não estão fáceis pra você, mas precisamos conversar sobre o que você fez com a Keyla. Na verdade, nós precisamos falar sobre tudo. ─ Joana tentou chamar a atenção dele, colocando uma mão em seu ombro.
Joel ergueu os olhos, olhando para Joana com uma expressão vazia, como se estivesse tentando processar suas palavras. Por um momento, pareceu que ele ia dizer algo, mas então abaixou o olhar novamente, perdendo-se em seus próprios pensamentos.
─ Olha, Joel, eu estou chegando no meu limite! ─ Joana explodiu, se levantando do sofá e parando em frente a ele. ─ Eu entendo que você ainda sofre por aquela mulher, mas meu Deus! Já faz quase vinte anos que ela te abandonou! Até quando você vai remoer isso? E até quando você vai descontar o seu rancor na sua própria filha? Que culpa a Keyla tem pela atitude covarde e suja da mãe dela?
Joel olhou para Joana com seus olhos azuis cansados e opacos. Por um momento, a mulher sentiu um pouco de alívio por ver que ele parecia estar recobrando a consciência, mas ainda assim estava zangada e estressada com ele.
─ Você sabe como é olhar pra sua própria filha e se lembrar todos os dias que ela carrega o sangue daquela vagabunda nas veias dela? ─ Joel ficou de pé, passando a caminhar pela sala com as mãos bagunçando seu cabelo sujo e desgrenhado. ─ Não, você não sabe, Joana. Você não faz ideia do que eu sinto.
─ E eu realmente não vou saber se você não falar comigo e dizer o que você sente.
─ Todos vocês dizem que eu tenho que parar de beber e superar, seguir em frente. ─ Joel riu zombeteiro. ─ Como se fosse fácil. É mais fácil pra você falar do que se colocar no meu lugar. Eu amei aquela desgraçada, Joana. Eu amei ela como nunca amei ninguém nessa vida. Mas do que adiantou tanto amor se isso nunca foi o bastante pra ela?
─ Joel, eu sempre te alertei dizendo que você ia cometer a maior burrada da sua vida quando você embarcou nesse casamento sem futuro. Eu te avisei tanto, mas tanto... ─ Joana fechou os olhos, as lembranças estavam indo e voltando em sua mente. ─ Mas você nunca me escutou. E esse foi o seu segundo maior erro.
─ E qual foi o primeiro? ─ Joel perguntou, interrompendo Joana, com um olhar cético.
─ Foi ter deixado o seu rancor, o seu ressentimento e a sua raiva te cegarem, Joel. Você estava tão obcecado e cheio de ódio por aquela mulherzinha ordinária que acabou descontando tudo em cima da sua própria filha. A Keyla cresceu conhecendo o abandono da mãe e a agressividade do pai porque o seu ódio te cegou ao ponto de você culpar ela, uma criança na época, pelo fim do seu casamento. Joel, você feriu e magoou a sua filha de tantas formas que você não pode nem pensar porque a sua raiva te impede de perceber isso. E depois de hoje, eu acho que você acabou com qualquer resquício de amor que a Keyla sentia por você. Se é que sentia, não é? Porque com tudo o que ela passou até agora, eu tenho as minhas dúvidas se ela sabe amar alguém.
─ Como se amor valesse de alguma coisa, Joana. ─ Joel desdenhou. ─ Porque se valesse,eu não seria esse trapo humano que eu sou hoje.
─ Você chegou a esse ponto porque você mesmo quis, Joel. ─ Joana rebateu duramente. ─ Eu tentei te ajudar, todos tentaram. Mas você não quis receber ajuda. Então não venha tentar bancar a vítima porque não vai rolar.
─ E você espera que eu faça o quê, então?
─ Que você tome vergonha na sua cara e pare de beber. Isso não está fazendo nada a não ser estragar a sua vida. ─ Joana respondeu abrindo a porta para ir embora. ─ Ah, e tem outra coisa também. Espero que você esteja preparado pra assumir as consequências pelo seu ato cruel. Você é meu amigo, Joel. Deus sabe o quanto eu te considero, mas você agrediu a sua própria filha. Se ela quiser prestar queixa contra você, esteja preparado.
Sem esperar resposta, Joana foi embora batendo a porta. Joel se deixou cair no sofá novamente, com as palavras da amiga martelando em sua cabeça.
"O que foi que eu fiz da minha vida?", ele se perguntou repetidas vezes.
Na mansão dos Bittencourt, Isabel e Alberto já tinham se recolhido para dormir após uma longa noite de conversa com Rodrigo, extasiados com o retorno do filho. Gael passou o restante do dia trancado no quarto com a desculpa de estar analisando os documentos de um caso em que ele era advogado de uma das partes envolvidas. Contudo, Rodrigo conhecia o irmão suficientemente bem para saber que Gael estava o evitando.
Na madrugada, pensando que todos já tinham ido dormir, Gael desceu às escadas para ir até a cozinha preparar um lanche depois de passar horas sem comer e beber algo. Ele abriu a geladeira para pegar um suco e sentiu uma presença atrás dele no outro lado do balcão da cozinha. Surpreso, ele se virou e viu Rodrigo sentado em um dos bancos.
─ O que você está fazendo acordado a essa hora, Rodrigo? ─ Gael perguntou tentando fingir naturalidade. ─ Você não tem que ir para o hospital amanhã?
─ Eu poderia fazer a mesma pergunta pra você, Gael. ─ Rodrigo respondeu se debruçando no balcão. ─ Eu fiquei preocupado. Você não saiu do quarto o dia todo. Parece que você está me evitando.
Gael desviou o olhar, pegando uma fatia de pão e começando a passar maionese e colocar presunto, queijo e tomate para fazer um sanduíche. Era uma tentativa de evitar encarar o irmão e Rodrigo percebeu isso.
─ É impressão sua, cara. ─ Gael desconversou. ─ Fiquei só muito ocupado com um processo que eu estou trabalhando. Ultimamente eu estou cheio de casos no escritório pra resolver. Por que você acha que eu te evitaria? Você é meu irmão.
─ Eu não sei... Pode ser coisa da minha cabeça, mas eu senti como se você não estivesse feliz por eu ter voltado.
Gael parou o que estava fazendo e olhou para o irmão com seriedade.
─ Rodrigo, eu sei que a minha reação não deve ter sido como você esperava, mas se eu te fiz pensar que eu estou te evitando, eu sinto muito, cara, de verdade. ─ Gael suspirou sentando-se ao lado do irmão. ─ Não foi o que eu quis que você pensasse. É claro que eu estou feliz por você ter voltado. Eu acho que você anda viajando muito, literalmente. Quase doze anos em Boston afetaram a sua cabeça, hein?
─ Você nem imagina, Gael. ─ Rodrigo riu junto com o irmão.
Um leve silêncio confortável se estabeleceu entre os dois. Ainda havia uma barreira que os dividia e tanto Gael quanto Rodrigo sentiam isso, mas Rodrigo estava determinado a quebrá-la. E no meio da cozinha naquela madrugada, o primeiro passo para os dois irmãos se aproximarem novamente foi dado.
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