Capítulo 7: Pântano
Em toda parte, o rio Negro se recusava a ceder ao brilho das fogueiras. Liffey era, em contraste, uma cidade alva.
As casas em pedra caiada formavam um complexo harmonioso de moradias familiares e inúmeros carvalhos, com luxuriantes folhas rubras, espalhados pela região. A madeira destes era base da economia popular local, tanoaria. Barris de carvalho para a produção de vinhos. Todos mudas do grande Carvalho Dourado, de madeira que mais lembrava ao capitão feérico o marrom-alaranjado que propriamente o ouro. Mas quando bebidas eram colocadas nestes barris, era isso que valia. Vinhos tinham o sabor refinado, a tintura roubada pela madeira com tempo, até assumir colorações claras e distintas.
Miserável, Lohkar não pode evitar o pensamento passando pelo bulevar das Especiarias, o Senhor de Liffey lhe devia duas canecas de cerveja preta. Das poucas cabeças que viravam para ver o rosto dos cavaleiros, apenas os moradores locais reconheceram o grupo, outros tantos os cães. Elawan os cumprimentou com um aceno, alguns pelo nome. Uma vantagem em ser feérico era ter tempo para aprender, o amigo era bom nisso.
Evitando as vias principais, o grupo singrava os espaços no mar de gente. A tengu ainda dormia, ou fingia, atada a cela, com Elawan a seu lado. Ele estava satisfeito ao viajar em silêncio.
Carter cutucou o capitão, ficando em pé nos estribos para isso. A moça queria que o feérico levasse seu cavalo enquanto ela ficava para o Maybh.
– Para que a pressa – questionou o capitão de má vontade. Depois da demonstração de Carter no uso da besta naquela manhã, o feérico estava relutante em acreditar que saberia se cuidar. O Maybh trazia gente de todo tipo e parte. – Você nem tem companhia para vir.
Ela fechou o cenho, lhe estreitando os olhos, sabia que deixaria se continuasse por mais um segundo. Estava olhando para Carter quando seu pé, nos estribos, mandou longe algo. Uma menina protestou quando seu doce foi arrancado da mão.
A criança não tinha mais de cinco anos, cabelo escuro cortado reto e o capitão pensou o que dava na cabeça dos pais para usar uma tigela como molde. Os olhos finos da menina estavam tão arregalados quanto podiam, ela agarrava firme um animal de madeira como se temesse que ele também o arrancasse.
A essa altura Lohkar já havia saltado do castrado marrom.
Azarado, praguejou.
Percebeu que o olhar dela ia do feérico ao chão.
– Me desculpe – disse, vendo o doce se desmanchar aos seus pés.
Os pais a olharam com pena e o feérico fez o mesmo. O capitão balbuciou uma explicação atrapalhada para o casal humano com roupas no mesmo tom de amarelo. A mulher, de cabelos escuros, trazia o arranjo seco de uma coroa na mão e uma lanterna de papel na outra. Dançarina de Amat, concluiu o capitão. Como a natureza e o próprio Cernudos, se preparando para a passagem ao outro mundo, elas conduziram a ascensão das chamas, farol para a alma vagante da irmã de Niníve, Amat; e todas as outras que não cumpriram com seus destinos. Esse era o Maybh, uma grande reunião de almas, mortas ou apenas de passagem.
Apertando os lábios, a garota pediu autorização aos pais para pegar a moeda que o capitão oferecia. Ficou encarando o feérico até a mãe lhe dar um cutucão e Lohkar percebeu que eram seus olhos que a deixavam intrigada. O capitão desviou as fendas verdes e deu um sorriso constrangido para ela e os pais. Gostava de crianças, mas elas pareciam evitá-lo.
– Obrigado, senhor fada – gritou a menina quando o lanceiro se afastava. Lohkar fez careta em seu íntimo. – E cuidado por onde vai!
Levar bronca de crianças era o cúmulo dos seus séculos de existência.
– Não chegamos antes que acendessem as fogueiras – resmungou Carter ao seu lado. Lohkar já sobre o lombo do cavalo. – Da próxima vez mande esperarem – gritou para Elawan.
Quando ele se virou, o olhar do lorde induzia o silêncio. A humana desviou.
– Fomos abençoados com a colheita deste ano, milorde. – Alguém gritou quando passavam.
– Que Nínive lhes proteja – desejou-lhes uma mulher da varanda.
– Que ela os coloque em minha cama.
Fora um macho do povo silvestre que falara.
Lohkar ficou vermelho.
– Lorde Kanht terá justiça, milorde? – perguntou outro.
O amigo assentiu com a cabeça num tom solene.
O sorriso de Elawan não lhe chegou aos olhos. Era zombeteiro quando convinha ser, mas aqueles olhos não se deixavam mentir, eram capazes de atormentar homens feitos e feras. Um índigo que podia sustentar de tal modo que Lohkar chegou a acreditar ver as almas que o encaravam. Lembrou da vez, quando uma versão jovem de lorde Moullen debochou de Elawan numa caçada para ganhar sorrisos da rainha, solteira na época. O que começou com o intento de se mostrar corajoso, terminou com o homem caindo do cavalo em uma ribeira. O feérico nada fez além de encarar o nobre por uma coleção de minutos mais parecendo ser feito de pedra, até muito depois das risadas terem cessado. Até a manhã anterior, lorde humano não ousava encontrar o olhar inabalável do feérico.
A sua frente, a tengu parecia finalmente despertar. A garota esfarrapada olhava para os lados como se estivesse cercada por um formigueiro, as cabeças passando sem lhe dar atenção, mas ela, claramente incomodada. Aquilo satisfez Lohkar.
– Humanos e feéricos? – questionou a cativa.
– E também kapas e duendes. – Elawan tinha voz ausente. – Queria dizer que as fronteiras são apenas políticas e não sociais; não se deixe enganar tão fácil.
Awen, mesmo Liffey, estava longe de ser o ideal. Mas ainda era deles, todos ali lutaram para fazer dela seu lar. Sorel e Elawan mais que qualquer um. O amigo fez Kara engolir a própria provocação em praticamente exilá-lo nos limites do território. Em menos de meio século, Liffey fora de um grande pântano à quarta maior cidade do continente.
Lohkar sentiu se espalhar o eco frio que brotava do seu peito, se justapondo ao crepitar das fogueiras em pontos chave do floco de neve. Conhecia aquelas ruas, mas não pertencia a elas, tampouco o contrário.
(Liffey)
Estavam seguindo pelo Corredor das Tecelãs, um túnel com estrelas rubras atadas a véus, quando uma voz os alcançou. A princípio, Lohkar não distinguiu quem era o macho com um garoto sobre os ombros largos. O menino se elevava acima da multidão, mas não quem o erguia. Foi a espada que a criança humana brincava que o feérico primeiro reconheceu. Anglarita. Os tons do cabo variando do amarelo ao anil, como se tivessem sidos jogados no metal por acidente. O guarda mão eram asas membranosas e a cabeça de wyvern estava esculpida no cabo, olhos de granada. Tenno era exatamente assim, irreverente e temível, como sua arma.
– Finalmente voltaram. Vejo que minha irmã já sequestrou Sorel.
Felizmente não, a feérica havia escapado deste tormento. Sua senhora havia seguido na frente, em parte para repousar de sua dor de cabeça, principalmente para não comparecer diante dos lordes de vestes maltratadas.
– Meu corcel-serpente tem que proteger os inocentes do fogo de Cernudos, não pare cavalinho – protestou o garoto. Tenno deu tapinhas consoladores em sua perna.
O comandante das Tropas aladas parou para tomar fôlego, os cabelos cor de azeviche lhe aderido à face. Atrás dele, o Mestre das Mares da rainha vinha montado no baio marrom, flanqueado por meia dúzia de soldados para lhe abrir caminho. Argo fitou o grupo com desgosto na face fina e ossuda. Ninguém acreditaria que ele e Elawan eram parceiros de negócios e membros do conselho real.
– O senhor, milorde – disse, seco como uma madeira velha. O mestiço de sangue feérico tinha cara de poucos amigos. – Parece determinado a nos fazer pouco caso. Lorde Woody exige falar com o primo antes do julgamento. Lorde Sleine não atendeu a convocação da rainha então o assento no júri vai recair sobre um dos gêmeos ou o druida na comitiva da Senhora de Sneah...
– Que teve "problemas" na estrada – completou Tenno com impaciência. – E eu estou bem aqui do lado! Você daria um ótimo arauto, nem precisou de papel.
– Druida? Meu tio está vindo? – O olhar dos nobres se dirigiram a Carter com reprovação por ter falado.
O capitão estava preocupado, a humana não era alguém que se deixava intimidar, lhe faltava tato para com a nobreza, mas não a coragem. Algo estava errado, mas não era sua função se intrometer até que ela pedisse. Sabia que Carter fora ensinada pelo Mestre da Guerra a travar as suas em silêncio atento.
Caterida estava calada desde que iniciaram a marcha de retorno.
Quando, na noite anterior, ela havia se oferecido para acompanhá-los até o Limiar, sabia que a humana só queria ficar longe dos olhos de desprezo dos nobres, e suas línguas, ah, certamente de suas línguas, fofoqueiras e maliciosas. E isso era também novidade. Afinal, ela sabia lidar com qualquer tipo de veneno.
– Então é a bastarda do conde – questionou Tenno em tom curioso. Seus olhos escuros a perscrutando de cima a baixo.
Ela não negou nem assentiu. Parecia que estava prestes a vomitar. Engolia seco, mas por baixo da crina do cavalo, torcia as rédeas com força. Lohkar apostaria que suas mãos estavam suando.
O lanceiro sabia o quanto silêncio saia caro para aqueles que o mantém.
– E o senhor o que faz, além de substituir o cavalo? – Fora a tengu quem troçara dele.
O garoto em seus ombros pareceu gostar da brincadeira lhe chutando o flanco. Tenno se apressou em entregá-lo ao pai, recuperando sua lâmina. Argo olhou pela primeira vez a moça esfarrapada.
– Os bons modos não foram adotados nesta porção do continente – Não era preciso Sorel para saber o que se passava em sua mente. – Adoraria abordar o estado de saúde do Grão-duque e a mais recente taxa nos portos de Vineheim, mas meu filho deseja ver as fogueiras.
– É um pai invejável, milorde. Quanto às outras questões, trataremos disto dentro de uma hora – falou Elawan.
Argo colocou o filho no pônei que seus guardas traziam. Ele estava certo em aproveitar o tempo, com o garoto sendo humano. Mas o Mestre das Mares ainda era duro como um casco de navio e aproximou sua montaria a de Elawan. As cadelas ficaram em alerta.
– Disseram-me que estava caçando novamente, milorde. Vejo que cães realmente precisam de carne fresca. Todos nós, nobres de nascimento, ficamos felizes quando eles se contentam com lebres. Embora preze nossa amizade, não iremos tolerar se houver algum fundo de verdade nas palavras de lorde Kanht. – Suas palavras eram tão sombrias quanto o tema sugeria.
– Quanta ética para um contrabandista... Lohkar, leve nossa aprendiz de regicida à sala de interrogatório – ordenou Elawan. Displicente. Nidaly pareceu protestar. – Felizmente, milorde, lebres não estão escassas, a ponto que, até ignoramos alguns animais mais nobres. Quando primavera chegar, alguns cervos podem querer grama fresca, novos pastos. – O feérico assanhou os cabelos jovem fidalgo que lhe sorriu.
Embora fosse lorde por cortesia do cargo, Argo de Oak era bastardo da antiga senhora da região, as terras passaram para seu irmã mais nova e legitima, ele ainda se ressentia disso. Rico, mas sem terras ou títulos para passar ao filho. O nobre mestiço pareceu refletir.
– Não pode estar em dois lugares – interviu o lanceiro ao ouvido do lorde. – Como vai dar início a reunião enquanto tortura aquele demônio alado? Isso é importante. Falo como amigo, deve aproveitar a ausência da juíza e garantir o resultado desse julgamento.
Lohkar também era amigo de Kervan, mas Elawan era um irmão. Não queria escolher entre ambos. Talvez não precise.
O capitão se deixou ficar ao seu lado, encarando o nobre mestiço.
– Lohkar é o líder da minha guarda, zeloso demais.
Argo empertigou os ombros.
– Sim, Lohkar Petrus. Difícil esquecer dos membros da Ordem das Bestas quando um deles ocupa o trono.
Sua expressão vacilou.
A Ordem das Bestas, fazia tempo que não revirava este túmulo.
Agora havia três onde antes houve dezesseis. Companheiros leais, que se perderam nos anos. O Corvo era agora rainha de Awen; Elawan se tornara Senhor de Liffey e havia ele. Lohkar continuava sendo, acreditava, o mesmo; embora aqueles cinquenta anos tivessem mudado tudo em seu mundo, ainda era o Corcel Ruivo. Cardiff gostava de apelidos e cada um na Ordem das Bestas tinha sua alcunha animal. Mas um propósito. Um sonho.
Quando uma rusga de sangue dividiu a Ordem, Lohkar escolherá o Cervo, seu príncipe. Não se arrependia de ter escolhido errado. Se Elawan não tivesse barganhado com Kara... No instante em que a coroa pousou em sua cabeça, o propósito da Ordem se desfaz como folha seca aos pés. Não há espaço para sonhos na cabeça de reis. Fora uma das últimas tristes conversas que tivera com Cardiff.
O capitão voltou a si. O amigo lhe encarava cheio de significado. Elawan deixava os lordes esperando porque podia. Ignorava as palavras de Kervan para caçar uma tengu regicida porque isso fazia do homem um assunto menor. Elawan decidia o que era importante. Mas Argo não parecia convencido disso. O lorde teria aquela conversa com Argo de Oak, mas queria fazê-lo junto ao menor número de ouvidos. Tenno compreendeu o recado e desapareceu na multidão depois de Lohkar declinar do seu convite para bebidas.
– E uma pena, esperávamos aproveitar o Maybh com você e o filhote de humano que Sorel cria, regados pelo vinho dourado de Liffey.
Tenno falava de jeito preguiçoso, mas o sorriso em sua face se tornou mordaz. A última coisa que Lohkar queria era uma dose dos velhos tempos. Da última vez, tinha se declarado para Sorel, bêbado e sorrindo como um cavalo, e isso foi antes do escândalo envolvendo os gêmeos e um certo príncipe tengu.
– Lorde Kanht está louco e parece contagioso. Lorde Woody quer falar com o homem, mas para que ele lhe passe suas posses, como se já não fosse senhor do maior ducado do reino. Argo nutre o delírio que pode ser escolhido como próximo Grão-duque. Até eu estou repensando nosso acordo.
Lohkar revirou os olhos antes de se despedir.
– Milorde sabe que é um cretino?!
– É o único que fala as verdades que preciso ouvir – brincou Tenno com voz de coquete. – Awen não é um lugar para verdades, lanceiro. Até breve, bastarda de Colinaspardas e ... Sempre deixa o populacho aproveitar sua montaria?
Nidaly ergueu o dedo do meio, as correntes tilintando.
As sombras da tarde já se alongavam e a tengu estava inquieta na sela quando finalmente chegaram à mansão. Em uma palavra: simples, mas não taciturna. Construída em pedra branca trazida de Bai, Coillemori era, de longe, a maior construção de Liffey, como era próprio de um senhor. Contudo, não ostentava grandes ameias ou espessos muros. A proteção se limitava a espigões nas grades da frente e uma cerca-viva que se estendia até a faixa de pedras que separava a propriedade do bosque de macieiras.
– Quero um pedaço generoso de salmão ao molho e um copo de leite quente adoçado com mel – exclamou a tengu, feliz por deixar o lombo da égua.
– O que você quer um bolo recheado de pancada.
Fora Carter quem ameaçara. O feérico olhou-a intrigado. Tinha raiva em suas palavras.
– Você não conseguiria me acertar – Verdade. – Ademais, que coisa feia, te maltratam e você desconta em quem não pode se defender. – Exibiu as correntes, balançando negativamente a cabeça. – Cara de serpente, controle sua cria.
Lohkar demorou mais de um segundo para perceber que falava com ele. Quando conferiu a reação de Carter, a humana estava vermelha, inchando de raiva. Mas também buscando desaparecer entre as pedras do jardim.
– Devia controlar sua língua – Lohkar se apossou da situação. – Prisioneiros não fazem exigências, e não falam!
Satisfação travessa brotou na face da tengu.
– Elawan lamentará. Olhos de serpente ... o peixe ruivo está nadando para longe.
Carter largara sua montaria ali, a besta repousando na lateral da sela junto com sua mochila de couro. Lohkar bem se lembrava do aviso da banshee, na forma de gritos suplicantes. Estava certo de que Sorel pensava se referir ao tengu, cuja asa foi arrancada pela regicida. Elawan devia pensar o mesmo, estava calmo. Desde que fosse um tengu, estaria tudo bem. Três dias. Olhou Carter se afastando a passos largos na direção da praça central, a sombra do Carvalho Dourado. Que seu sonho não passe disso, criança humana.
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