Capítulo 15 - Mortalha (Parte 2)


         Quando Lohkar chegou à porta, Sorel protestava com os curandeiros, no mais próximo que chegava de gritar.

— Minha senhora, ele arde em febre — argumentou a fada curandeira. Um macho mediano de nariz adunco e cara cítrica. — Temos que conter essa febre. Algo dentro dele o envenena, é tudo que podemos fazer.

— Ele é o Lorde do Fogo Encarnado, vai desejar veneno se ele ficar congelado — falou Sorel. Não era uma ameaça, mas aquela promessa casual não convenceu o macho que voltou a insistir.

       A manhã estava mesmo fria.

— Chega, Sorel! — As palavras de Lohkar soavam frágeis tão logo percebeu com quem falava.

      Qualquer outro, o feérico podia supor sem forças depois de duas noites tão exaustivas, sem dormir e facilmente esquecendo de comer, ele próprio se encontrava numa versão débil de si; mas quando Sorel lhe dirigiu o olhar pétreo, Lohkar sentiu como se ele estivesse sendo soterrado por rocha sólida.

       Na manhã anterior, quando chegou à mansão após a explosão, quase não a reconheceu, a mulher alta e esguia usava vestes manchadas de sujeira e sangue, não era dela. Sua senhora não se encontrava assim desde, bem, nunca. E havia o cabelo. Ou a falta dele. Os longos cabelos bronze que assumiam um toque vermelho ao sol haviam sido ruídos até não passarem da orelha num corte impreciso. Quando lhe atentou ao fato, Sorel pareceu notar de súbito como uma alma que havia descoberto de sua morte.

— A tengu teria me arrancado a cabeça... De tão selvagem que estava, assustou o cão. — Ele a largou e Sorel quase não conseguiu se afastar da mordida da lâmina a tempo. Sua longa cascata, porém, não teve a mesma sorte, disse quando encontrou um Lohkar pálido e perdido. — Quero aquela cabeça maldita.

        A ideia de um dos cães com medo da tengu não o agradava, mas até a branah parecia abalada. Castelos realmente tremeram na noite do Maybh. Quando enfim, os corpos dos lordes foram achados na câmara de audiências, já chegava ao meio dia nublado, a cor havia desaparecido da face da feérica. Elawan foi encontrado sob um grande bloco de mármore. Ignorando o braço ferido, Lohkar foi um dos cinco que suspendeu a pedra verde para tirar o amigo de lá.

— Mestre Petrus — apelou o curandeiro. — Febre pode matar nobres feéricos, ainda que tendo sangue do Povo Ancestral; o que não é o caso. Temos que encarar a realidade que a...

— Deixe-nos! — Talvez sua voz fosse pedra, ou lhe soou isso e os outros pararam, como se atingidos.

       Sorel uniu as sobrancelhas. Antes de se deixar sentar no aparador quando todos saíram.

— Então todo o reino sabe. O que Moria diz a respeito?

      Lohkar respondeu, amassando o papelote entre o polegar e o indicador.

— O mais óbvio: o Senhor de Liffey não tem herdeiros para ser passado títulos e posses. Moria alega que se Elawan foi capaz de matar seu príncipe, Kara é sensata em questionar sua lealdade. Segundo ela, parte da corte pensa o mesmo, mas os pares que aqui não estavam, não ousaram se declarar. Se foi o responsável pelo Banquete Cinza e o assassinato de trinta seis pessoas, alguns de sangue nobre, ela pode retirar dele a posse do ducado e tudo que há nele. Mas... — Algo chamou a atenção de Sorel na cama do doente e, a princípio, supôs ser aquele cheiro. — Não é de bom tom tratarmos disso na presença dele.

      Conhecendo Elawan, era capaz das palavras do capitão o fazerem levantar só na base da consternação. Ele odiava ser humilhado. Havia algo mais humilhante que ter roubada sua própria casa? Contudo, o nobre feérico não se moveu de onde jazia.

      Agora, antes que perca a coragem, azarado de merda!

— Sorel — o capitão mordia o canto do lábio. — Os tengus, Sõjobõ matou Cardiff e os soldados. Fazedor de Reis, ele se chamava, o príncipe estava destinado a ser o maior monarca que já existiu. Sõjobõ treinou o príncipe, podia derrotá-lo, certo? Derrotar as águas de Nínive?

    Uma sombra de sorriso surgiu nela sem que desviasse do nobre feérico o olhar.

— "O que é o oceano se não a soma de muitas gotas?" — ela deu de ombros. — Posso dizer que se tirar uma delas fará das ondas, menor?

       Lohkar se adiantou, caminhar vacilante completava sua cara febril e marcada pelo sol.

— Cardiff foi descendente de Epony, com o futuro escrito nas águas de Nínive, mas...não quero que elas formem palavras... não agora. — Sorel soltou um muxoxo antes de continuar: — Elawan não tem sangue ancestral. Moria está certa, com Baranthir literalmente batendo a porta, a rainha não deixará Linmor em mãos incertas. Ademais, não vai querer uma branah flertando com o reino rival.

     A feérica solidificou sua postura. Uma fina tiara de prata mantinha preso o véu, lhe conferindo um solene ar que não pertencia a este mundo. Você está desesperada, compreendeu o lanceiro.

      Lohkar viu o desespero crescer em seu peito, somando a suas dores.

      Sem Elawan, a cidade seria sua única defesa contra o amargor de Kara. Abrigando dentro das muralhas trechos de cultivo e dispondo do rio, era improvável passar fome por um certo período que as mantivesse fechadas. Construída sobre um grande pântano drenado, os arredores encharcados de Liffey impediam o emprego de cavalarias e armas de cerco para assaltar as muralhas. A passagem do rio podia ser fechada para barcos nos limites setoriais e só restava o céu para atravessar suas defesas – em parte a razão de Elawan manter os gêmeos como aliados e Inari, outrora, em sua cama –. Segundo Sorel, Liffey era inexpugnável por ataques externos, Elawan alegava que nenhuma defesa o era. A noite do Maybh provou que a cidade era capaz de sangrar e suas defesas naturais de pouco serviram para um inimigo escondido entre eles.

      Antes de qualquer lamento, Sorel jogou a jarra com água, o cristal se partindo ao beijar o chão. Lohkar entendeu o gesto como: "Malditos!" e certamente significava que ela quebraria tudo antes de abrir mão do que tinha. Mas... ela já havia perdido algo. Quase parecia um fantasma envolta em névoa com aquele véu.

       As narinas do lanceiro se dilataram de susto quando ela lhe cravou os olhos.

"... Não foi minha intenção, senhora..." colocou depressa em pensamento. Era horrível que qualquer mentira que conjurasse se desmanchava com a própria invocação. Mas nem mesmo uma branah sabia de tudo.

— O que foi fazer no pantano? Além de ficar bêbado, claro — inquiriu Sorel. O capitão soltou um muxoxo. Papoula, não álcool. E exibiu as plantas em seu alforje. — Isso é veneno, Lohkar — exclamou ela.

— Elawan não está conseguindo respirar — acusou. — Não se preocupe, ninguém vai morrer até eu saber exatamente porque a Ordem das Bestas fracassou tão miseravelmente. — Sua queixa era sincera e, a essa altura, ela já sabia que o capitão tinha uma cópia do Manifesto de Kervan. — Não se preocupe, se o quisesse morto, optaria pela lança. Deixo o veneno para minha mãe e Carter.

       O peito dela se inflou, como se bebesse no ar a ponderação.

— Que Cernudos lhe carregue — suspirou a branah. — O anúncio da Banshee, é hoje.

     A essas palavras o capitão levou olhou de soslaio para ferida na mão e Sorel afagando os cabelos, sentia o grito em sua alma, sabia bem. Por isso, pegou o almofariz e pistilo e começou a esmagar a papoula e trombeta a outros compostos até formar um óleo encorpado.

      Sorel segurou sua mão.

— Minha mãe foi Mabon Presas de Cicuta, senhora, veneno está literalmente em meu sangue. Ele aguenta, Sorel. — A branah se demorou em seus olhos. Na marca maldita de serpente há muito extinta. "Ainda tenho a tratar com ele. E ... Não vou deixar que Kara a aprisione de novo. ... Deixe meus pensamentos, Sorel". Lohkar não esperou sua permissão, levou o odre aos lábios do lorde. Quando curvou seu dorso rígido, um grunhido de dor escapou de sua garganta. Ele luta, compreendeu, mas sofre. O lanceiro retraiu a mão ao primeiro toque, não sabia se Elawan estava frio ou ele ardendo. Ainda assim, preferia as dores ao remédio que dava ao nobre.

        Depois de toda a bebida lhe descer sob protestos pela garganta, a boca do feérico se moveu sem emitir som. Lohkar não deixou de compreender. O corpo do nobre feérico tremia em espasmos cada vez mais agitados.

— Segure-o e Epony o abençoe para não ter outro sangramento.

      O frio ciciava pela janela aberta.

— Ele está se engasgando no próprio sangue — constatou com terror.

        Elawan tremia, o líquido denso se acumulando enquanto ele gorgolejava em busca de ar. O lanceiro agiu antes do pensamento.

— Não vire, quebrou cinco costelas — protestou Sorel. — Cuidado, ele está se curando tão bem quanto a nobreza verdadeira, mas isso pode terminar por atrapalhar, infecções se espalham mais rápido.

       Ao longe, um uivo devorou o ar, sufocado e destemido. Moribundo, Lohkar levou a mão ao ombro ferido, teria Inari apanhado Klang com seu wyvern, ou pior, matado o líder da matilha de Elawan? Apenas o líder uivava para chamar os outros, aquele brado ressoava por oito, talvez nove quilômetros em todas as direções. Quase um clamor.

— Sorel, agora é uma boa hora para ele acordar! — Se soou uma emergência, Lohkar queria deixar claro que era um pouco pior que isso.

      Cardiff  morreu por nosso sonho, Elawan; agora tem que viver por ele, Cacete! 

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