Capítulo 12: Ás de Espadas
A confusão nos olhos da humana durou pouco.
Seu olhar correu do pórtico para a tengu e de novo para o umbral. O rosto foi do pálido ao vermelho num piscar. A humana ergueu a mão. Por um instante, Nidaly julgou que ela fosse avançar sobre si; por fim, a mulher estapeou um barril, com força demais para não ter doído. Mordendo os lábios, Lidney abafou o próprio grito.
– Nii, Yukue... eles ...– Já apoiava nos barris de carvalho.
Parecia ter sido assombrada por um tengu.
Nidaly não se moveu. Ocorreu que de fato a humana estava.
– Prometi que os protegeria, não importava o custo!
Não pense que não me saiu caro.
– Sõjobõ descobriu que Kervan pretendia expor Elawan e algo sobre o envolvimento do filho com isso. Era a desculpa que esperava para – Nidaly franziu as sobrancelhas. De repente com raiva. – Destruir Elawan por dentro, era isso que significava?
A tengu indicou os barris que se destacavam dos de carvalho por cheiro e coloração, neles, não havia vinho. Suas entranhas pareciam envoltas em farpas. Lidney não negou. As narinas da mulher se dilataram, a vulnerabilidade logo deu lugar a um ímpeto de defesa, como um animal se vendo encurralado e prestes a mostrar as garras.
– Sõjobõ ameaçou a vida do príncipe, da minha irmã, ele ia nos acusar de traição. Eu – Nidaly mal acreditava nas próprias palavras. – Ele queria... eu tive que matá-lo, Lidney.
Eu matei meu mestre. Era uma sensação amarga.
Sua irmã sabe a quem serve, ele sussurrou em seu ouvido. Sim, mas a que preço? Nidaly sabia onde estava sua lealdade e ela nunca pertencera a Sõjobõ, não depois.... Não falharia de novo, não desistiria.
A expressão da humana estava entre raiva e empatia.
– Ninguém te pediu para fazer isso.
Nidaly pareceu não compreender. O covil ficando maior, ela por consequência, menor. Lidney se colocou entre ela e os barris. Tinha por volta de quarenta anos, queixo afiado, grandes olhos escuros traziam marcas de noites em lágrimas, mas agora se tornavam severos. Mesmo em uma roupa de lã negra, ela ainda trazia a soberba comum aos nobres, não se duvidava que era uma lady.
– Não falo por mal, você pode vencer tempestades, mas não Destino. Sõjobõ é o rei por uma razão; Ele foi jurado de sangue da própria Niníve e você nem conseguiu forjar a própria espada. – A voz dela foi embebida em ternura, mas suas palavras não se fizeram mais afáveis. – Não conseguiria matar Sõjobõ nem se quisesse.
Uma prova de lealdade, Sõjobõ disse. Se a outrora nobre soubesse que o rei tinha pedido a cabeça daqueles que haviam travado contato com ela e o marido, incluído seus filhos, o descrédito dela se faria diferente?
Você é uma criança brincando com a espada. Maldito Sõjobõ, não saia de sua mente. Mas ainda não conheceu o gosto de seu corte, ele havia dito décadas antes, quando correu o aço pela carne dela.
Nidaly apenas bufou, impaciente, correndo o olhar pela adega e contando. Havia treze barris atrás de Lidney e dois as costas da tengu. Destampando um dos barris, a areia escura consumia a luz rubra da candeia. O brilho fraco não penetrava os espaços da adega, abafada, repleta de alcovas que se estendiam mais ao fundo. A tengu tinha plena ciência da criatura peluda vagava naquelas sombras e parecia inquieta com os movimentos da guerreira.
O rosto de Nidaly se contorceu, era uma visão assustadora na penumbra.
– Lidney, isso é pó negro! Não foi para destruir um castelo que lhe ensinei. – Uma risada de escárnio incrédulo tomou o rosto da tengu.
Não há inocentes em Awen, Lidney dissera certa vez.
Pousou a mão sobre a mulher.
– A distração que criei vai mantê-lo ocupados, deve ter cães a solta no raio de uma légua. A maior parte das pessoas está do outro lado do palacete. Vamos ficar bem se formos agora!
Lidney arregalou os olhos.
– Que merda você fez?
A criatura peluda deu uma risada debochada, reverberando na escuridão da adega. Não pode precisar se era macho ou fêmea, apenas um escárnio traiçoeiro quando falou:
– Agora, eu matava.
As duas o ignoraram.
– Eu trouxe Destino. – O mais certo seria: perdeu, mas achou um detalhe trivial, por hora. –Vamos encontrar ela e Kervan, sair daqui. Nada mais! A morte de Elawan não pode valer sua vida, sua família.
Lidney tirou sua mão.
– O que você sabe sobre família?!
O ar cortou a garganta da tengu. A boca entreaberta sem resposta nos lábios.
– Sõjobõ não lhe ensinou que nenhuma vitória é garantida até o inimigo estar incapaz? É tão ingênua a ponto de pensar que um dia, ele iria simplesmente nos deixar para trás? Uma das únicas coisas que pode destruí-lo?! É sobre poder, menina. Nessa luta, o mundo queima enquanto dançam com suas espadas e mentiras. Somos um risco para ele, caçados por quase vinte anos. Acha que meus filhos foram os únicos a morrer? Nem perto disso. Banquete Cinza, eles chamam. Gritavam em agonia enquanto os onis os estripavam, comiam... e aquele mestiço sorria...
Ela engoliu seco, usando os dedos para secar as lágrimas que se recusava a ceder.
– Ao longo dos anos, Elawan e aquela puta feérica mandaram outros tantos caçadores à nossa procura. Por causa dele meus filhos mais novos nunca tiveram um lar. As coisas que o senhor meu marido sabia... Quando a vitória é tudo o que importa, também vou jogar com as regras deles.
A humana se manteve imóvel, uma expressão dura no rosto.
Kervan não estava de acordo, a tengu tinha certeza, era um homem benevolente, paciente. Um homem de luto. É um jeito respeitoso de dizer que raiva se contorce, até muito depois da tristeza ser chamada de saudade. Ele e sua esposa uma vez plantaram sementes e esperaram as árvores crescerem, mas não há mais árvores, apenas mortalhas e lembranças, porque isso era tudo que eram; sentiam falta da vida que tiveram. Nunca planejaram voltar para casa, às Montanhas, para os filhos. Cada respiração uma prece para livrá-los da dor.
Não vou desistir só porque fizeram.
Tinha que ser diferente. Mas Lidney também não parecia disposta a abandonar seu plano, sua vingança. Sua justiça.
Nidaly chutou o barril mais próximo.
– Eu protegi sua mente contra a branah, a de Kervan! Sõjobõ mandou que enfiasse uma faca na minha garganta por isso. E você mentiu para mim, por quê?
– Kervan está morto!
A garganta de Nidaly ficou seca como osso e igualmente tesa. Morto, ecoou como uma pedra atirada em um lago. Não, estava errada. Haveria um julgamento, a tengu chegara antes. Cruzou as montanhas em alguns dias, não dormiu por dois. Trazia Encontro com o Destino, a espada consagrada pela própria divindade ancestral. Senti o cheiro dele nos canis...
– Há uma semana – informou ela.
Perdi? Apostara em si mesma e falhara?
– A puta feérica trouxe uma fetch para substituí-lo... mas ele se foi!
Nidaly se sentiu encolher. Sua mão iniciou espasmos involuntários e como se de novo com uma espada de bambu caída no chão. Apenas olhando, enquanto lhe roubavam quem era precioso.
– Estamos ficando sem tempo – exclamou a voz de pouco antes, o novo animal de Lidney, em tom pedante. Tinha um cheiro estranho de bicho molhado. – Ainda pode ser remediado.
Uma figura se colocou na altura de Nidaly, subindo em um barril. Sob a luz da candeia era assustador, ou bizarro. Tinha corpo peludo de símio, talvez, um lêmure que Sõjo disse existir além do Deserto de Mandalor. Dos braços, membranas se ligavam até a ponta dos dedos, formando o que parecia asas de morcego. As orelhas eram compridas como as de uma lebre, mas os olhos eram felinos, em tom azulado. Seu pelo, porém, o mais imaculado negro.
Uma pitada de bruma envolvia seu perfume, sua aparência.
Como tochas azuis na noite, os olhos da criatura se alumbraram. As pupilas dilatadas se tornaram famintas. Nidaly foi engolida pelo contorno azulado distinto. Sua mão parou de tremer, sua respiração vacilou e quando tentou desviar o olhar, a magia dele a penetrou.
Encanto de fada, tentou praguejar, mas as cordas vocais não se moveram. Seus joelhos vacilaram e o horror congelou em sua face. Nidaly desmontou no chão como se fosse feita de palha.
Maldita obra de tengu.
– A tengu é minha amiga, sua pooka traiçoeira, isso não seria necessário – censurou Lidney.
– Kervan também chamou Elawan de camarada – rebateu a pooka.
–Vá, leve-a para um lugar seguro! Verifique a outra passagem para o armazém, depois sabe o que fazer.
Lidney levou as mãos para amarrar sua espessa cascata escura em um rabo de cavalo. A fina trança foi junto, seria delicado se não indicasse que estava de mau humor.
– Teve sorte, da próxima ela te mata, não cai duas vezes no mesmo truque. – A humana acocorou-se ao lado de Nidaly, checando seu pulso com ares de preocupada. Um pedido de desculpas na face. – Sei o que quer, mas não posso fazê-lo. – Seu sorriso triste alargou-se, tirando o cabelo da tengu do rosto. – Tem agora o que a minha Avrian foi negado: tempo... O rei tengu, estando ou não morto, não vai mais ter correntes em você. Seja como for, está livre agora.
Liberdade não devia ser assim.
A humana fez um aceno com a cabeça. Pequenas mãos macias a arrastaram para a escuridão do que podia supor, ser outra entrada da adega.
– Os chifres de Cernudos, nem sabia que tinha tengu fêmea. Essa aqui não passa fome. Vou querer lingotes de prata por isso, Lady Kaht!
A pooka cantarolava.
Esse cheiro... não, Lidney. Nidaly moveu os olhos, frenética. Cuidado! Cuidado! Conhecia aquele cheiro estranho, tão indistinto. Havia grudado em seu nariz o dia todo.
– Como não sou eu que estou pagando, ofereço até ...
A voz de Lidney foi cortada por uma mão em sua boca.
A pooka minguou, a respiração morrendo na garganta. Então Nidaly viu o contorno de ouro e sombras. Apenas a camisa de linho contornava seu tronco, sombras dançavam em sua face impassível. Seu olhar perscrutou o lugar. Mesmo para a visão feérica, aquele era um espaço escuro, mas o lorde parecia sentir a presença de mais alguém, ainda que não soubesse precisar onde.
– Vocês são mesmo difíceis de separar – Elawan segurava Lidney, tentando imobilizá-la. – Não diria que são impossíveis de se livrar. Onde um vai o outro chega logo atrás. Ratos que sempre deixam migalhas no caminho.
Suas palavras não traziam mais que um baixo enraivecido, ademais, o lorde parecia feito de pedra.
Os dois ocultos seguraram o fôlego, a própria noção de viver diminuído diante da figura do feérico. Embora, no caso da tengu fosse mais um reflexo do encanto da criatura fada. A humana se debatia, chutando, na tentativa de se libertar do aperto férreo de Elawan, que tentava arrastá-la para fora do cômodo. Um dos esforços de Lidney derrubou o barril que Nidaly havia aberto minutos antes. O pó cinzento se derramando no chão de pedra e poeira.
O feérico pareceu vacilar pela primeira vez, reconhecendo o conteúdo. Lidney esticou a mão que mantinha a candeia. O fogo oscilando no recipiente de cobre. Foi nesse momento que um morcego voou através da escadaria e Nidaly podia jurar que era a fada peluda com seus olhos de azul vivo, para escapar da morte.
Elawan trincou a mandíbula, austero.
Lidney só precisava soltar e estaria tudo acabado. Cinzas e ruínas, como seu passado. A humana olhou para Nidaly, nas sombras, e de novo para o lorde feérico. Suspirando entredentes, antes que ele tomasse dela a candeia e apagasse a chama com a mão livre, a outra se apertando contra a humana.
Todas as luzes desapareceram.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top