Capítulo 1
"Quando Jaloria enfeitava-se de folhas cor amarelo-esverdeado, esculpida sob o tapete arbóreo que formava-se a cada período outonal, as Três Princesas Virtuosas exibiam a sua magia. Brilhantes, vívidas e extremamente deslumbrantes, as bolas de ouro adornavam o céu estrelado, explodindo em partículas de luz. As três jovens sorriam, recebendo o aplauso do público hipnotizado. Todo o ano, esperavam eufóricos pelo Festival das Luzes.
E no meio de todo aquele esplendor, estava ela. Não brilhava, não com magia. Caelene portava apenas um pandeiro e pés faceiros, que ela utilizava para bailar. Remexia o corpo alegre de acordo com os sons que ela própria produzia, dando vida às suas próprias bolas de luz, ainda que brilhasse de modo diferente das irmãs.
Toda aquela alegria era sempre vista por Bargar com desdém. O homem opaco, que apesar de ser o maior usuário de Magia Celestial pouco brilhava, levantava-se do Trono montado apenas para aquela ocasião com porte digno de um soberano e sem atrapalhar a apresentação das princesas, que hipnotizavam o público presente, arrastou a única naquela plataforma que não portava magia. Portanto, não merecia estar lá.
— O quê eu já lhe disse sobre não meter-se onde não é chamada!? — Perguntou Bargar enquanto fechava a grande mão ao redor do pequeno braço da menina. — Não é igual as tuas irmãs. Não brilha como elas.
— Mas papai...
— Não enxerga isso? Para mim, quando te vejo no palco, é nítida a diferença entre as tuas irmãs e ti. Não as atrapalhe, Caelene. Nada em sua existência é capaz de brilhar."
— Caelene? Caelene? Está prestando atenção em nossa conversa?
Caelene piscou duas vezes, até se dar conta de que havia se deixado levar pela imaginação. Voltando ao presente, onde estava em uma pequena audiência ao lado de seu futuro marido, inspirou fundo, se perguntando se o fato de ter regressado às memórias do passado se dava pelo fato de já estarem em vias do Evento Outonal.
— Eu... — Caelene pigarreou, assentindo. — Sim, sim, claro. Estava dizendo que...
— Seria ótimo se decorarmos as paredes com cabeças de javalis, já que é o símbolo da minha família. — Theodorus felizmente poupou-a do trabalho de relembrar as suas palavras; não conseguiria fazê-lo pois desligou-se da realidade assim que o futuro marido começou a tagarelar. — E em relação aos tecidos das toalhas que enfeitarão as mesas...
— Theodorus. — Caelene o silenciou de maneira gentil. — Tenho certeza de que tudo que decidir estará de ótimo gosto.
— Mas... mas... — O noivo entortou os lábios para baixo, assumindo uma feição desgostosa. — Não escolheu nada para o nosso matrimônio até agora e faltam poucos dias para nos tornarmos marido e mulher. Deve ter algo para representar a noiva.
— E eu sei que você fará isso por mim maravilhosamente bem. — Caelene sorriu enquanto reunia forças para conseguir engolir o pequeno pedaço de manga que dançava de modo rançoso em sua boca. — Além disso, não é dever das noivas adequar-se aos gostos dos seus futuros maridos?
Caelene não queria ter uma escolha que sabia ela não ter direito após se enlaçar, no entanto, Theodorus com seu ego altamente inflado, recebeu aqueles elogios como se aquelas palavras fossem o reconhecimento incondicional de sua futura noiva. Abriu um largo sorriso, em seguida uma risada ritmada que lembrou a jovem de suas comparações. Não só teria javalis em seu matrimônio, como se casaria com um deles.
— Oh, minha bela Caelene, tais palavras me enchem de vontade de partilhar uma vida contigo. — Caelene segurou aquele pedaço inimigo em seu estômago, impedindo-o de subir em forma de golfadas azedas. Forçou-se a sorrir, mas seus atos falavam mais alto, entortando os talheres com as mãos. Theodorus ainda se portaria como um pavão de penas cintilantes caso uma jovem criada não aparecesse naquele exato momento, a sua salvação, pensou Caelene. — Perdão minha amada, mas devo me ausentar. — Disse ele enquanto pressionava o guardanapo contra os lábios, escutando os cochichos da criada. — O dever me chama. Assunto de cavalheiros, você sabe. Seu pai quer ter comigo sobre os trâmites do matrimônio.
Caelene assentiu, virando o rosto para o lado em uma expressão de extremo nojo quando o noivo envolveu a sua mão com um beijo babado. Deixou o corpo repousar na cadeira e suspirou audivelmente, livre de mais papéis a desempenhar. A criada que outrora tirou Theodorus de seu campo de visão observava a cena com pesar, todos ali sabiam que Caelene estava sendo entregue a uma união que não queria.
— Princesa, recebi ordens para levá-la para os seus aposentos... Dona Irina a espera para a prova das vestes matrimoniais.
Caelene assentiu e deixou os talheres tortos em cima da mesa, tão tortos quanto os acontecimentos da sua vida. Levantou-se e seguiu a jovem um pouco mais velha que ela em silêncio, passando por corredores e salas que em pouco tempo ela não veria mais. Chegou ao seu quarto tão familiar e amedrontador naquele momento que o utilizaria para cumprir mais uma etapa de seu inevitável matrimônio. Entrou, encontrando Irina e mais três criadas que a auxiliariam na tarefa de vesti-la.
— Oh, mas que mocinha mais bonita eu tenho! Sim, esse traje foi feito especialmente para você.
Caelene sorriu agradecendo pelos elogios da mulher e logo subiu na banqueta indicada. As três mulheres ágeis a despiram e imediatamente começaram a vestir, tomando o máximo cuidado com a delicadeza do tecido.
— Sim, essa é a escolha perfeita... — Disse a mulher de olhar enrugado. Dona Irina era conhecida por ser a melhor costureira da Capital e rezava a lenda que para uma noiva obter a eternidade em seu matrimônio, era preciso que tivesse as mãos santas da costureira em sua roupa de noiva. Por isso Irina recebia múltiplos pedidos o ano inteiro, mas ainda assim, encontrou um espaço especial em seu apertado cronograma para a atender a princesa prestes a se casar. — Oh, isso me lembra o dia em que vesti sua mãe. A princesa é muito parecida com ela.
Caelene arregalou os olhos com a menção à sua mãe. Desde a infância, viveu de migalhas dos momentos de Eupherbia, sendo aquele o nome proibido de ser proferido pela boca das crianças. Lenne lhe contava diversas histórias, mas contadas sob a lente de uma menina de menos de quatro anos de idade, embaçadas e imprecisas. Por isso, mesmo sob a tensão das mulheres que ajudavam, ela decidiu arriscar.
— A senhora vestiu mamãe?
— Se vesti? — Irina deu uma risada divertida. — Lady Eupherbia foi a mulher mais bela que vesti. O vestido não era a razão de sua beleza, ele era apenas parte dela. Sua mãe era belíssima, tanto por dentro, quanto por fora. Que grande mulher tivemos zelando por nós...! Foi-se tão cedo, quem explica os mistérios do mundo...? Oh, querida, perdão! — Apressou-se Irina ao ver que a jovem órfã estava chorando. Caelene nem mesmo percebeu que estava liberando lágrimas, não entendeu inicialmente o motivo das desculpas. Apenas quando encarou-se no espelho a sua frente, notou as lágrimas que desciam como um córrego. — Tenho certeza que a sua mãe adoraria vivenciar esse momento com você. Ela está, de alguma forma que nem os Deuses podem explicar.
Caelene assentiu, permanecendo com o olhar fixo no espelho. Dividia-se entre observar suas lágrimas silenciosas e olhar para o tecido que cobria o seu corpo, o tecido que usaria para se casar. A túnica branco-perolado escorregava em suas curvas, presa na cintura por dois feixes de ouro reluzentes. O material dourado também brilhava em seus ombros no formato de suas argolas que prendiam o vestido atrás de suas costas, deixando parte de suas costelas nuas. Caelene suspirou, pensando que a partir do momento em que permitiu que tal peça se juntasse ao seu corpo, não teria mais volta.
— Posso tirar agora, por favor? — Pediu Caelene ao desviar o olhar para o outro lado. Sentiu uma pequena espetada causada pelo alfinete da mulher que a vasculhava, emitindo um "ai" fraco em resposta.
— Agora sim. Não precisamos ajustar muitas coisas, felizmente. Até o dia do casamento, sua roupa estará em suas mãos.
Caelene fez que "sim" com a cabeça e agradeceu a mulher pelo tempo cedido, vendo-a se afastar rapidamente enquanto dialogava com as duas criadas que a acompanhava, talvez para atender outra noiva que diferentemente dela, estava realmente animada para a ocasião.
— A princesa ainda precisará dos meus serviços? — Perguntou a criada que restou, observando-a.
— Não precisarei, Rebbeca, obrigada. — Caelene voltou o seu olhar para o lado de fora, onde folhas de outono se balançavam preguiçosamente. Estava um bonito dia e ela estava com mil pensamentos na cabeça. Não seria solicitada para nenhuma tarefa até o fim do dia e ainda faltava muito para acabar. — Acho que... sairei para tomar um pouco de ar.
Fazia muito tempo que Caelene não respirava o ar da cidade em época de Festival, mais precisamente, desde a noite das lembranças que a envolveram pela manhã. O Festival das Luzes, quando pequena, representava um dos poucos momentos em que podia sentir a liberdade. Amava ver as apresentações das irmãs, mas mais do que isso, amava senti-las. E era através dos sons e danças que podia se sentir viva. Agora, era apenas a noite em que assistia o show de luzes nas sombras que a envolviam, retendo-a na solidão.
— Olha o morango! Olha o morango! Esse tá docinho, quem provou não esqueceu! — Caelene aproximou-se da barraca de frutas, sentindo-se salivar ao encarar os morangos que preenchiam a bancada. O homem gentil ofereceu um e enquanto ela se preparava para pegar, foi surpreendida por um puxão em seu pulso.
— Pega ladrão! — Gritou uma mulher, acionando toda a multidão. Os cavaleiros foram os primeiros a disparar, chacoalhando as armaduras. Caelene os seguiu, enquanto parte do seu cérebro ainda tentava assimilar o acontecido. Seu pulso estava mais leve, faltava a pulseira. Que estava em posse do pequeno garoto encurralado, cercado pelos guardas pouco amistosos.
— Ladrãozinho petulante! — Ralhou um deles, aproximando-se com rispidez. — Devolva isso já!
O garoto, trêmulo dos pés à cabeça, apertava a pulseira brilhante entre as pequenas mãos que mal paravam quietas. Aquele ato na visão dos guardas era uma afronta.
— Não ouviu? Me entregue isso! — O segundo guarda cuspiu as palavras, empurrando o garoto que cambaleava para trás, tropeçando nos pés e caindo sobre a terra batida. Apesar de alguns olhares de desaprovação em relação as atitudes dos guardas, que confrontavam uma criança, ninguém ousou se meter.
— Parem com isso! — Pediu Caelene, aproximando-se do centro da confusão. Olhava para o garoto com uma expressão acolhedora, vendo-o fraco e sujo de areia, indefeso no meio daqueles olhares julgadores.
— Mas princesa... — Clamou o primeiro guarda, pedindo que a garota tivesse ciência de sua posição. Foi naquele momento que a fala do guarda foi interrompida por um novo participante daquele pequeno espetáculo, esse surgindo de maneira inesperada.
Ennore D'hooneeh é um homem de muitas ambições, pouco disposto a complicações e muito, muito bom de lábia. O homem que é conhecido como o "Delírio Galante das noites jalorianas" não recebeu esse peculiar apelido atoa. Sorrindo ladinamente, ele tentava sair de uma das situações que mais detestava: quando um de seus passatempos lhe pedia para ficar.
— Tem certeza que não pode ficar nem mais um pou-qui-nho? — Pediu a mulher de cabelo loiro escorrido, fazendo biquinho. — Nós três ainda podemos nos divertir tanto... Não é, Baltazar?
O homem mencionado assentiu, saindo das cobertas que preservavam a sua nudez. Foi ao encontro do rapaz que se vestia, arrumando os botões de sua calça surrada.
— Eu adoraria... — Ennore virou-se, encontrando o homem nu atrás de si. Abriu um sorriso ao lembrar que muito aproveitou daquele corpo na noite anterior, mas no momento em que a luz do sol aparecia, o conto de fadas invertido desaparecia. Bom, não a sua vontade. Ao se aproximar do homem e passar a mão nos longos cabelos negros, puxou-o para um beijo saudoso. — Mas meu pai vai ralhar comigo caso eu chegue tarde. Ele tem um assunto de família chato pra tratar comigo, algo sobre a continuidade do clã e blá blá blá...
— Ah, eu serei uma mulher vazia sem a sua atenção. — A mulher choramingou, murchando. Possuía os lábios manchados de batom, os olhos com resquícios da maquiagem bagunçada e um rosto espelhado pelo prazer. — Mal posso esperar para nos reencontramos.
— Esperarei por isso. — Ennore piscou, não indo embora antes de apertar a cintura da mulher. Ganhou as ruas após horas em companhia de Emília e Baltazar, casal endinheirado que nas palavras de Ennore, possuíam manias de gente rica. Apenas aqueles que tinham condições poderiam receber um homem como ele em sua residência e muni-lo de bebidas caras e tecidos mais macios que o pão que comia no café da manhã. Apesar de não suportar a boa vida em que eles se encontravam, esfregando-lhe na cara o quanto era miserável, gostava de passar o tempo com o casal. Ao menos, não estava na companhia da madrasta.
Que esticou-se entre a cozinha apertada e a sala de estar improvisada para vê-lo chegar. Olhou para as suas mãos vazias e estalou os lábios, balançando a cabeça em negação.
— Nada hoje? Aqueles ricos não estão te pagando direito?
— Eu não sou um puto, Mrycella. — Ennore bufou, fechando a porta com força atrás de si. Nunca havia falado de sua relação com Emília e Baltazar, mas notícias eram notícias e estas corriam tal qual a velocidade de uma flecha.
— Bom, escutando o que eu escuto sobre as suas andanças... Enfim, teu pai está te esperando na venda. Vê se toma um banho antes de ir, teu cheiro de putaria tá chegando aqui.
A mulher voltou para o seu afazer, não vendo o dedo do meio que recebeu de Ennore, que bufou, mas acatou a sugestão da madrasta, estava mesmo precisando se lavar. Despiu-se e entrou no lavatório, sentindo a água gelada em contato com o corpo quente. Abriu as mãos, lembrando da noite anterior e do modo como as usou no corpo do casal, arrancando suspiros e gemidos tanto deles quanto seus.
Encostou a cabeça nos joelhos, fechando a mão em punho e a desferiu contra a parede. Delírio galante, garoto atrevido, prostituto, uma ova... No final de tudo, sempre se perguntava por quê se deixava ser tratado e usado dessa maneira. No momento dos beijos e das trocas de experiência era bom, muito bom. Gostava daquilo. Mas passado o êxtase, só lhe restava perguntas. Por quê?
Encarou o seu reflexo na água, vendo o cristal do anel de sua mãe emitir um brilho arroxeado nas ondas que produzia. Desde menino, quando o chão abriu abaixo dos seus pés e levou embora o seu bem mais precioso, aquele anel virou parte de seu corpo, anexado por um colar em seu pescoço. Tocou o anel gelado, sentindo uma imensa saudade do sorriso gentil e das carícias aconchegantes de sua mãe.
Vestiu a sua camiseta e calça de sempre e nem esperou o cabelo secar para encontrar-se com o seu pai. Ignorou os comentários dos vizinhos que o tratavam como um vendido e atravessou a pequena ponte que levava à venda de seu pai. A "Império D'hooneeh" vendia de tudo, desde pedras sem graça até artefatos élficos datados como sendo feitos antes das civilizações. No entanto, a loja estava sempre vazia e com a expressão carrancuda de seu pai no centro.
— Se eu estivesse morrendo, acharia o meu corpo já servido aos corvos a essa altura.
— Se o senhor estivesse morrendo, chamaria Mrycella, não a mim.
— E o que Mrycella faria de útil? Aquela lá só é boa pra lavar e cozinhar.
— Então foi por procurar uma babá que se casou novamente? Bom, eu duvidaria se dissesse que foi por amor.
— Deixe de especulações, o meu relacionamento com Mrycella só diz respeito a mim e a ela. Não foi para pedir conselhos conjugais que te chamei, mas para falar do nosso destino como clã.
— O senhor não está morrendo, está? Não tenho intenção alguma de liderar amanhã.
— Pare de brincadeiras, Ennore. — O homem de aspecto curvado suspirou. — Isso é o que me desaponta em você, esse ar de relaxamento. Nosso clã está por um fio e tudo o que pensa é onde vai enfiar o seu pau amanhã.
— Não estou pensando onde vou enfiar o meu pau amanhã. — Ennore respondeu com um risinho. — Eu já tenho certeza.
— Ennore! — Sentenciou o mais velho. — A princesa Seabriar mais nova está para se casar, aquela que não tem magia. Está sabendo disso?
— E por quê eu ia querer saber do casamento ridículo da fulana princesa não sei quem!?
— É por isso que não é levado a sério, idiota! — Ralhou o pai. — O casamento dessa fedelha é a nossa sobrevivência.
— Ela vai nos convidar para ser babás dos filhos dela? Já aviso que não tenho o menor jeito com criança.
O pai meneeou a cabeça, olhando-o com total desaprovação. Ennore suspirou e cedeu; endireitou o corpo, mostrando que levaria a conversa a sério. Ou tentaria.
— Todo mundo sabe que essa garota é a mais fraca das irmãs e não representa perigo à nós por não possuir magia. E estando prestes a selar uma aliança entre famílias de alta classe, apesar da pouca força, ela ganha um valor inestimável pelo o que ela tem a oferecer como esposa de um Saintrenf. É por isso, meu filho, que Caelene Seabriar é a nossa galinha dos ovos de ouro.
Ennore resmungava a conversa que teve com o pai, achando absurda a proposta feita por ele. Não que se importasse com o destino da riquinha, mas propor sequestrar a filha dos Seabriar no dia do seu casamento era um pouco demais. E ser ele a liderar aquela loucura? Seu velho estava ficando senil.
Girava uma maçã entre os dedos, rindo consigo mesmo ao pensar que seu pai realmente estava disposto a lhe dar uma tarefa como aquela. Quando e onde havia subido na escala de confiança do seu velho? Acreditava mesmo que ele, um sedento que só pensava em orgias como um dia ele disse em sua cara, cumpriria com sucesso e sem deixar rastros uma missão que poderia estourar uma guerra em toda a capital? Não, não, que outro tomasse a responsabilidade. Aquilo era demasiado complicado para um libertino que absolutamente não gostava de complicações.
Até ver em sua frente mais que uma complicação, uma injustiça. Um jovem cercado por moradores e cavaleiros arrogantes e no centro de tudo a garota que decidiria a vida de seu clã. Que ótimo momento para os Deuses da comédia fazerem o seu trabalho.
— Parem com isso! — Gritou a princesa, intercedendo pelo menino. Mas aquilo não enchia os olhares de Ennore, que via todos os ricos no mesmo balaio de inúteis.
— Mas princesa...
— Vocês não a ouviram!? — Disse Ennore dando uma mordida na maçã, para em seguida jogá-la para o lado com desdém. — Ou precisam apurar os ouvidos? Posso ajudar nessa tarefa, se quiserem.
— Quem é você? E o que pensa que está fazendo se metendo em assuntos reais?
— "Assuntos reais" uma ova. Vocês estão intimidando um coitado que está se cagando de medo da arrogância de vocês, completamente rendido e mesmo assim o pisam como se ele fosse um carrapato. É pra isso que servem os cavaleiros!?
— Não iremos permitir que você...
— Ah, é mesmo? Lembrei, é só pra pisar em pobre que vocês servem né? Pelo o que eu me lembre há três anos atrás vocês não serviram para tirar a gente do caminho de fogo dos dragões. Muita gente morreu pela omissão dos seus guardinhas, sabia princesa?
Aquela foi a primeira vez em toda a conversa que Ennore dirigiu-se a Caelene, que presenciava toda a cena com uma expressão chocada. Primeiro por ter uma aparição repentina no enredo, segundo por essa aparição dirigir-se a ela com palavras tão cruéis. Há três anos atrás, quando Jaloria pegou fogo e muita gente pagou com a vida, os cavaleiros estavam incluídos. Mas ele parecia estar a culpando por tudo o que aconteceu.
— Ei, sua mimadinha. Você não vai falar nada? Vai mesmo deixar que esses ridículos surrem esse garoto até a morte por causa da porra de uma pulseira?
Em um segundo Ennore estava discutindo com os guardas e no outro a estava segurando pelo pulso, atiçando os cavaleiros que acionavam as suas armas. Caelene arregalou os olhos, levantando a cabeça; encontrou um rosto marcado pelo ódio fuzilando-a com o olhar.
— Afaste-se dela, maldito! — Gritou um guarda, ameaçando.
— Que guardas de merda vocês são. — Ennore ironizou, abrindo um sorrisinho sarcástico. — Se eu quisesse matá-la, vocês perderiam as suas cabeças. Amam tão pouco assim as suas vidas?
— Estamos avisando, afaste-se ou...
— Esperem! — Gritou Caelene sobressaindo-se a todas as vozes. Ainda estava sendo retida por Ennore, por isso dirigiu-se à ele, encarando os olhos castanhos escuros. — Não ficaria parada como insinuou. Se bem escutou antes de sair tomando conclusões por si próprio, eu estava ordenando que eles se afastassem do garoto. Nenhum cavaleiro em minha presença jamais fará mal a cidadão algum.
Ennore estreitou os olhos, encarando a garota que o rebatia com altivez. Relembrou as palavras do pai, uma garota delicada, frágil e inocente. Delicada e inocente ela poderia até ser, mas frágil...
— Se entendeu, solte o meu braço. Não é um ato cavalheiro segurar uma dama quando ela não quer ser segurada.
— Ah, eu já estava prestes a fazer isso. — Ennore abriu um sorriso ladino, prestes a soltá-la como indicou. No entanto, num rápido movimento a puxou para perto, colando a boca no ouvido dela para que só Caelene escutasse suas próximas palavras. — Mas se engana se pensa que sou um cavalheiro, princesa. Não me compare aos otários que já conheceu. Para longe da gaiola em que vive, há muitos, muitos modos nada cavalheiros de segurar uma dama e eu tenho certeza que uma vez em meu domínio, a princesa desejaria sim ser segurada. Até pediria por isso.
Para enfatizar suas palavras, Ennore deslizou os dedos pelo pulso trêmulo de Caelene, que sentia o peito apertar e ribombar em batidas frenéticas e descompassadas. O ar parecia rarefeito, ainda que fosse forte os ventos que balançavam as tendas das barracas.
— Agora garoto, devolva a pulseira. Você não quer ter mais problemas além dos que já teve.
O garoto assentiu, olhando para Ennore com uma familiaridade agradecida. No entanto, antes que a entrega fosse concluída, Caelene se antecipou, negando.
— Você pode ficar com a pulseira. É um presente meu.
— Não deve ficar. — Rebateu Ennore para a chateação de Caelene, que olhou feio para ele. O rapaz não pareceu se importar. — Não se recebe presentes de princesas. Ainda mais uma com uma horda de cachorros para protegê-la.
Os cavaleiros trincavam os dentes, irritados pelas provocações, mas no meio deles, era Caelene quem estava mais irritada. O que ela havia feito para receber aquela raiva gratuita?
Sem que nada pudesse fazer, viu o garoto devolver a pulseira para um dos guardas, que pegou com rapidez e a entregou. Suspirando de modo pesaroso, Caelene viu o garoto e o homem irritante se distanciar e estava prestes a voltar aos seus afazeres quando deu falta de seu anel. Procurou à sua volta e nos bolsos e nada encontrou e já estava o dando como perdido quando seu olhar voltou-se para o lado oposto, e encontrou o mesmo homem irritante girando o seu anel no dedo indicador com uma expressão zombeteira. Caelene mordeu as bochechas, praguejando-o e a si mesma quando permitiu que se aproximasse. Quando havia sido? No momento em que ele segurou o seu pulso e deslizou os dedos pela pele agitada? Ou quando a trouxe para perto, apenas para recitar indecências em seu ouvido e desviar a sua atenção? Seja como for, um objeto como aquele não lhe faria falta. Era a audácia do sujeito, que ela esperava nunca mais encontrar, que lhe irritava.
Ao voltar para os seus aposentos e observar o começo do luar, Caelene viu a cidade se iluminar no começo da apresentação das Três Princesas Virtuosas. Passaria aquele dia como todos os outros após as repreensões de Bargar; observando as luzes de sua janela. Seu quarto dava-lhe uma posição confortável e pelo menos estava na companhia de Cookie, sua familiar sonolenta que ronronava em seus braços. Ao acariciá-la e ver as luzes explodindo no céu, Caelene retomou o acontecido da tarde e a aparição daquele estranho homem que de alguma forma parecia-lhe familiar.
Ele apresentava ódio em suas palavras e uma certa tristeza quando mencionou o dia em que as chamas engoliram as luzes, e tal menção à fez se lembrar do momento em que deixou as irmãs para lutar. Ainda lembrava-se da sensação sufocante e escaldante que quase a incinerou, se não fosse o misterioso mascarado que transformou o seu algoz em pedaços de carne morta. Em seguida, passado o susto, Caelene se recompôs e viu-se cercada por dragonitos, dragões de menor escala mas que ainda causavam grandes estragos. A garota suspirou, era capaz de dar conta daquilo. Relembrou os seus treinamentos e brandiu a sua adaga vendo o mascarado tomar a frente com sua magia sombria. Não queria ficar para trás, então tentou o acompanhar, saltando quando estava prestes a ser consumida pelo fogo. Gritou, um som saído da garganta, dando-lhe força e brandindo a arma acima da cabeça, desceu como uma bomba, rasgando a carne do animal que rugiu. Caelene era rápida, desferiu inúmeros golpes brutais e espirrava sangue a cada perfuração, banhando-se com o líquido avermelhado. Ao olhar para trás, onde um dragão se rebatia preso por uma rede de sombras, viu aqueles olhos encobertos pela escuridão observando-lhe, mas não sabia dizer qual sentimento os movia. Apenas teve a certeza que aquele estranho olhava para ela quando seus braços se movimentaram na direção do animal, indicando que ela poderia finalizá-lo.
E a partir dali ela sentiu uma estranha afinidade com o desconhecido, como se algo além daquela noite os juntassem em um propósito maior.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top